Gazeta da Torre
Enquanto governo não adotar postura baseada na Ciência,
com incentivo ao uso de máscaras, e distanciamento social – além de um programa
de vacinação em massa –, a pandemia no Brasil continuará em ritmo desenfreado
A política, mais uma vez, se embaralhou com a ciência e
produziu um novo episódio com sérios reflexos no combate à pandemia, cuja
vítimas crescem em velocidade assustadora por todo o País.
Pressionado pelo avanço dos óbitos, pela exaustão da
capacidade de atendimento do sistema de saúde, pelo desespero dos governadores,
pela pressão parlamentar, até por parte do a ele simpático, mas voraz, Centrão,
por sua queda de popularidade nas pesquisas e mesmo pelo retorno à cena de seu
antípoda, Lula, o presidente Jair Bolsonaro resolveu substituir o ministro
Pazzuelo, da Saúde, apontado como o nó cego que possibilitava a disparada da
pandemia. Nó cego, que, como ele próprio admitiu, cumpria ordens emanadas do
Palácio do Planalto. Assim, armou-se o seu desmanche, em nome de um suposto
combate mais eficiente, necessário e urgente, à pandemia.
Num primeiro movimento, o presidente Bolsonaro, convidou
para conversar a médica Ludhmila Hajja, contumaz crítica do modus operandi do
Ministério da Saúde em relação à pandemia, nome incensado por importantes
parlamentares como o presidente da Câmara Artur Lira e outros parlamentares, e
que até tratara do ministro Pazuello quando acometido pela covid. Como era
possível prever, prevaleceram na troca de ideias as visões diferentes que as
partes têm para o combate à pandemia e a conversa não prosperou, deixando
claro, pela enésima vez, que o Palácio do Planalto não abre mão de impor a sua
visão ao ocupante do Ministério da Saúde.
Seguiram-se e prosperam ainda mil versões díspares sobre
as motivações dos atores dessas conversas e dos acontecimentos que a rodearam,
tanto do lado do presidente como da dra. Ludhmila, mas que já fazem parte do
atualmente conturbado universo de fatos, interpretações e versões que marcam a
política e o jornalismo nos dias atuais.
No lance seguinte, mexendo numa pedra cantada, o
presidente Bolsonaro convidou para o cargo o dr. Marcelo Queiroga, presidente
da Sociedade Brasileira de Cardiologia, seu apoiador desde algum tempo, a quem
já nomeara para a Agência Nacional de Saúde, mas ainda não fora sabatinado pelo
Senado Federal. O cargo de ministro da Saúde volta assim a ser ocupado por um
civil e um médico, como recomenda a tradição.
A questão que se coloca, de agora em diante, é saber
quanto poder o novo ministro terá diante das ideias fixas do Palácio do
Planalto a respeito do combate à pandemia. A necessidade de acelerar a
vacinação, recuperando o atraso provocado pelas equivocadas decisões
anteriores, parece ser um ponto pacificado, mas enfrenta desafios para
implementação. E há muitas outras, como estímulo a medidas de isolamento, até
mesmo lockdowns, campanhas pelo uso de máscaras, entre outras, e a adequação do
discurso do próprio presidente Bolsonaro ao país.
O que ocorrerá?
Ao chegar, na terça-feira, 16/3, no Ministério da
Saúde, Queiroga declarou à imprensa: “A política é do governo Bolsonaro, não é
do ministro da saúde. O ministro da Saúde executa a política do governo”.
Vale lembrar que o novo ministro já se pronunciou
anteriormente em defesa do isolamento social, do uso de máscaras e reconheceu
que a cloroquina não tem eficiência científica comprovada, afirmando, porém,
que médicos têm autonomia para prescrever. E vale lembrar que a não ser na
questão da autonomia dos médicos, o presidente Bolsonaro não concorda com
nenhuma das outras posições manifestadas pelo ministro.
“A estratégia precisa mudar”
Em entrevista ao Jornal da USP no Ar 1ª edição, na Rádio
USP, a professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP,
editora do boletim Direitos na Pandemia, lembrou que o governo federal não tem
política voltada para evitar o espraiamento do coronavírus e o consequente
aumento do número de infectados e mortos. “Não adianta o novo ministro ser um
nome bom ou ruim se a estratégia não mudar. Se a estratégia do governo federal
persistir, o nome do ministro é indiferente”, afirmou.
A professora Deisy aponta que, em um cenário de colapso
no sistema de saúde e de recorde de número diário de mortes, os desafios do
novo ministro da Saúde não são poucos. Lembra que, nesta gestão que se encerra,
o papel dos técnicos do Ministério foi relegado a segundo plano. “É evidente
que a primeira grande questão para um ministro da Saúde é organizar o Plano
Nacional de Imunização contra a covid-19. O Brasil até hoje não tem Plano
Nacional de Imunização”, apontou a professora.
Ela lembra que é necessária coordenação do combate à
pandemia a partir do nível federal. Com o próximo passo sendo a vacinação, o
governo deve evitar que esse ônus recaia sobre os governadores, o que abriria
margem para o agravamento de desigualdades regionais. “É inaceitável que o
Brasil, que é referência internacional em programas de imunização, não tenha
organizado até hoje o seu programa de imunização”.
Receita conhecida: máscaras e distanciamento
Enquanto as vacinas não chegam em quantidade suficiente,
o distanciamento social e o uso de máscaras continuam sendo as medidas mais
importantes de enfrentamento da pandemia; e é imprescindível que o Ministério
da Saúde estimule a adesão da população a essas medidas — até mesmo de forma
compulsória, se necessário —, segundo especialistas ouvidos pelo Jornal da USP.
“Evitar aglomerações e promover o uso das máscaras são as
medidas mais urgentes para controlar a pandemia nesse momento”, diz o médico
Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da USP, especialista em doenças
infecciosas e parasitárias. Se as políticas do governo continuarem as mesmas e o
comportamento das pessoas não mudar, ele prevê que o número de mortes por covid
no Brasil poderá chegar a 500 mil até o mês de agosto. “Muita gente ainda vai
morrer se não houver uma consciência das pessoas para evitar aglomerações”,
alerta o médico.
A postura negacionista do Ministério da Saúde e do
governo federal — com o presidente e seus ministros constantemente se recusando
a usar máscaras, promovendo aglomerações e negando a gravidade da pandemia — é
diretamente responsável pela baixa adesão da população às medidas de proteção
sanitária, e também pelo caos que se instalou no País durante a pandemia,
avalia Boulos.
O presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM),
Rubens Belfort, também critica a atuação do governo e torce para que o novo
ministro adote uma postura mais responsável perante a opinião pública. “Não
adianta só dizer que é a favor de alguma coisa: tem que mostrar”, afirma
Belfort. “A falta de bons exemplos por parte das autoridades é extremamente
negativo.”
O fato de o novo ministro ser médico aumenta ainda mais a
sua responsabilidade de seguir as orientações da Ciência, diz Belfort. “Espero
que ele consiga conquistar um mínimo da credibilidade que o governo perdeu”,
diz. “A longo prazo sou otimista; mas a curto prazo as perspectivas ainda são
muito ruins”, completa o médico. “Infelizmente, está evidente que o ministro
não terá nenhuma autonomia.”
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina
da USP, concorda que a medida mais emergencial a ser tomada é a restrição da
circulação de pessoas, para reduzir as taxas de propagação do vírus na
população e, consequentemente, aliviar a pressão sobre os sistemas de saúde.
Ele defende, inclusive, a restrição de voos e outros meios de transporte
intermunicipais e interestaduais. “A comunicação entre cidades deve ser
restringida o máximo possível”, afirma Lotufo.
Paralelamente a isso, diz ele, é preciso organizar
urgentemente a vacinação no País (com metas e prioridades claras); expandir o
número de leitos de UTI para tratamento da covid e “encerrar de uma vez por
todas essa fábula do tratamento precoce” com hidroxicloroquina, ivermectina e
outros medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença. “O Ministério
da Saúde tem plenas condições de fazer tudo isso”, ressalta Lotufo. Assim como seus
colegas, porém, ele tem poucas esperanças de que haverá alguma mudança
significativa na postura do governo com relação à pandemia. As primeiras
declarações do novo ministro, segundo ele, “sinalizam que tudo continuará
igual”.
“O ponto principal é que o ministro tem que ter autonomia
para decidir com base em critérios técnicos e evidências científicas”, diz o
pesquisador Dario Zamboni, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
(uma das cidades mais impactadas pela pandemia no Estado de São Paulo) da USP e
secretário geral da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI). Além de tomar as
decisões certas e dar os exemplos corretos, diz ele, é preciso que o ministério
“atue energicamente” contra a propagação de notícias falsas e outras formas de
desinformação da população — por exemplo, em relação ao chamado “tratamento
precoce” da covid-19. Segundo Zamboni, é equivocado dizer que “não há consenso”
na comunidade científica sobre a ineficácia desses tratamentos. “Já está muito
claro, demonstrado por vários estudos, que eles não funcionam.”
Uma tarefa nacional
Para o cardiologista do Instituto Dante Pazzanese e
professor da Sanar José Nunes de Alencar Neto, a mudança no Ministério da Saúde
tem um impacto simbólico imediato de maior confiança entre os profissionais. “A
escolha do Queiroga me parece apontar exatamente nesta direção: um profissional
da saúde que tem um nome a zelar entre os pares, mas que deve ser político para
acalmar a parte da população que alimenta isso de ‘autonomia médica’”, comenta
o cardiologista. “Espero que, pelo menos no que diz respeito à vacinação,
tenhamos um avanço, mas não espero que a farsa do tratamento precoce seja
finalizada porque essa me parece ser uma das principais bandeiras eleitorais de
Bolsonaro.”
á para Marcio Bittencourt, médico e epidemiologista do
Centro de Pesquisas Clínicas da USP, o novo ministro tem perfil mais político
do que médico na visão de seus pares. “Mas, considerando a média dos ministros
políticos, ele tem algum background técnico sim”, comenta. “Acho que ele vai se
virar para se adequar muito ao governo. Se conseguir dobrar o Bolsonaro em algo
além de acelerar a vacinação, me surpreenderá.”
Se a relação do novo ministro com o presidente da República
representará a continuidade das ações do general Pazuello ou alguma mudança de
rumo ainda é uma questão incerta, mas que não suscita muitas esperanças entre
os especialistas ouvidos pelo Jornal da USP. Mas Bruno Caramelli, professor da
Faculdade de Medicina da USP, tem uma visão ainda mais pessimista da situação.
Para ele, Bolsonaro não vai deixar nenhum ministro tomar uma atitude que tenha
implicações políticas e eleitorais. “Podemos trocar quantos ministros
quisermos, não vai mudar absolutamente nada. Tem gente no Brasil para implantar
uma estratégia que una a vacina ao lockdown? Aos montes! Vivemos num País onde
tem gente muito boa, tem sanitarista bom, pesquisador bom, tem o SUS, estrutura
para vacinar… Não precisa reinventar a roda.”
Na verdade, o enfrentamento eficiente da pandemia vai
além da adoção de medidas técnicas da área do Ministério da Saúde que combatam
sua expansão, acompanhadas por uma política coerente e nacional de vacinação,
que ainda não existe.
Também é necessário casá-las com um amplo programa de
apoio financeiro às atividades econômicas sejam individuais, familiares, de
empresas, especialmente pequenas e médias, para que possam atravessar este
momento de paralisação ou diminuição do nível de atividades produtivas. A
fragilidade fiscal do governo retarda e limita o espaço para essas decisões.
Trata-se de um esforço que aponta para a necessidade de
atuação conjunta de todos os poderes constituídos, governo central,
governadores, prefeitos, o Congresso Nacional. É uma tarefa nacional.
Fonte:Rádio USP
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