quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Açaí e inajá têm propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias

 Gazeta da Torre

Uma pesquisa de doutorado desenvolvida com resíduos de inajá e de açaí, resultantes da prensagem da polpa das frutas para a extração de óleo, revelou que eles são ricos em compostos bioativos com atividade antioxidante e anti-inflamatória. Publicados nas revistas científicas Food Research International e Foods, os resultados do estudo são inéditos, já que esses resíduos ainda não haviam sido investigados cientificamente.

“As atividades agroindustriais geram grande quantidade de resíduos, muitas vezes em volumes superiores ao produto que é comercializado. Uma indústria que processa frutas para extração de óleos e outros compostos ativos veio até nós para que estudássemos os óleos essenciais, a princípio. Conhecendo o processamento, sugerimos investigar os resíduos, visto que possuem maior rendimento do que os respectivos óleos ao final do processo e são comumente descartados e inexplorados”, conta a primeira autora dos artigos, Anna Paula de Souza Silva, que é cientista de alimentos e foi bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.

Segundo a pesquisadora, que investiga desde o mestrado o potencial bioativo dos resíduos de açaí e inajá, frutas nativas brasileiras da região amazônica, a literatura já reporta propriedades bioativas muito importantes de diversos outros subprodutos do processamento de alimentos, como hortaliças e frutas, bem como os agrícolas.

“Vimos uma grande oportunidade de estudar esses resíduos de açaí e inajá que, até o presente, não têm uma destinação específica, sendo geralmente descartados no ambiente ou destinados à alimentação animal. Mas, dependendo do processo, da fruta e do seu rendimento em óleo, esse resíduo pode representar de 60 a 90% do volume total de matéria-prima”, revela.

Flavonoides e antocianinas

Geralmente, para a extração dos óleos, frutas como o açaí são maceradas em água quente, as sementes são removidas e a polpa é extraída, seca e prensada. No caso do inajá, o processo se repete, porém, a casca é removida logo no início. O que sobra na prensa é chamado de “torta”. Silva fez uma caracterização inicial desse material e desenvolveu métodos de extração que possibilitaram a produção de um extrato rico em substâncias antioxidantes. Então, usou diversas metodologias para analisar as propriedades dos extratos.

“Para avaliar a capacidade antioxidante geral, submetemos os extratos a uma análise do teor de compostos fenólicos totais e, posteriormente, determinamos o perfil em relação aos compostos bioativos. Para isso, separamos e identificamos diversos compostos por meio de cromatografia líquida de alta eficiência [técnica usada para separar cada um dos componentes de uma mistura] acoplada à espectrometria de massas de alta resolução [técnica de detecção e identificação de moléculas pela mensuração de sua massa e que também possibilita a caracterização da estrutura química]. Os principais compostos identificados no extrato de inajá foram procianidinas e, no de açaí, antocianinas, flavonas e flavonoides. Determinamos pela primeira vez o perfil dos extratos desses resíduos, relativo à presença de compostos fenólicos. E descobrimos que ele é bastante diverso no que tange às demais atividades analisadas, ou seja, anti-inflamatória, antioxidante e antimicrobiana.”

O grupo interdisciplinar que assina o trabalho fez, ainda, análises relacionadas ao sequestro de espécies reativas de oxigênio (ROS) – sendo algumas radicais livres que, quando presentes em excesso no organismo, podem gerar diversos tipos de prejuízo à saúde humana. Esses oxidantes têm efeitos nos alimentos também, por exemplo, diminuindo sua vida útil. “Com teores muito baixos dos extratos, conseguimos diminuir a concentração de algumas espécies reativas em 50%. É um indicativo de que o material tem uma potente ação antioxidante.”

Para analisar a atividade anti-inflamatória, os pesquisadores trataram macrófagos murinos, que são células do sistema imune de camundongos, com os extratos das tortas de açaí e de inajá em diferentes concentrações após o estímulo com um composto bacteriano (lipopolissacarídeo ou LPS) que desencadeia um processo inflamatório. Depois da indução, essas células produzem NF-κB (complexo proteico envolvido na resposta celular a estímulos, como o estresse e a ação de radicais livres) e citocinas como a TNF-α (com ações pró-inflamatórias).

“Avaliamos a inibição do fator NF-κB e os teores de TNF-α em células tratadas com os extratos. O resultado foi bastante animador. Com uma concentração de 100 microgramas de extrato por mililitro de meio de cultura [mcg/ml], conseguimos inibir o fator NF-κB deixando-o praticamente no nível das células usadas como controle, que não foram estimuladas com agentes inflamatórios. Nessa concentração, também conseguimos reduzir drasticamente os níveis de TNF-α nas células tratadas com os extratos, igualmente a um valor que não difere do controle”, resume Silva.

O grupo analisou, ainda, a atividade antimicrobiana do extrato da torta de açaí, selecionando algumas cepas de bactérias e leveduras relacionadas a doenças de origem alimentar e a enfermidades em ambientes hospitalares. “Os resultados indicam uma possível ação antimicrobiana, porém, novos estudos são necessários para detalhar esse potencial”, conta a pesquisadora.

Economia circular

Severino Matias de Alencar, um dos autores do trabalho, afirma que o grupo partiu da identificação da vocação dos resíduos, daí o uso de diversas metodologias de naturezas biológicas e químicas. “Vimos que eles têm vocações antioxidante e anti-inflamatória, indicando um alto potencial de reaproveitamento e contribuindo com a economia circular, que é o que queremos.”

Alencar reitera que os resíduos de açaí e inajá são muito ricos. “Dali só se retirou o óleo, ficou todo o material residual. É um material que pode ser reaproveitado tanto na indústria de alimentos quanto na farmacêutica e cosmética. Aliás, já fomos procurados por algumas empresas, que têm muito interesse, pois não querem usar nada de origem animal em seus produtos.”

Ele lembrou que Anna Paula Silva também simulou a digestão humana desses extratos in vitro, concluindo que eles conservam suas propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes na fração intestinal, onde seriam absorvidos (dados em processo de publicação).

“Agora, queremos estudar o transporte celular dos compostos da fração intestinal em modelo de células do intestino humano para verificar se os compostos bioativos são absorvidos e se as atividades biológicas são preservadas. E, na sequência, fazer protótipos de alimentos enriquecidos com os extratos estudados”, adianta o pesquisador.

Fonte - Agência Fapesp | Karina Ninni

 


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

A curta vida das tendências, impulsionadas pelas redes sociais, mudou a forma como consumimos

 Gazeta da Torre

Unhas metálicas, uma das microtêndencias
do momento. Foto:GETTY

A micro minissaia, o vestido de The Dream of My Life ou o vestido preto recortado de Maddy em Euphoria , as gargantilhas com flores... Estas são algumas das microtendências que nos chamaram a atenção nas últimas temporadas. Antes da pandemia e do TikTok, as tendências saíam das passarelas e pequenos toques culturais eram incorporados ao longo do caminho. Agora, como isso muda quando a moda encontra novas raízes em uma geração constantemente conectada à internet?

As tendências são um dos pilares da moda, mas as redes sociais aceleraram drasticamente a sua velocidade. Antes o ciclo de tendências era de 5 a 10 anos e eram apresentadas por cantoras, atrizes, modelos... figuras públicas. Agora, porém, eles também são criados por influenciadores ou qualquer pessoa presente nas redes que consiga atingir determinado público. Essas tendências de curta duração são chamadas de microtendências.

Microtendências são modas que aumentam em popularidade antes de diminuir com a mesma rapidez. Muitas vezes surgem naturalmente em plataformas como o TikTok, onde nascem das mãos de criadores populares, crescem rapidamente e infiltram-se nas páginas “Para você” de todos os usuários. Em um período aproximado de um mês, menos ainda, a microtendência sai de moda e ninguém mais fala sobre isso.

O problema surge quando redes de fast fashion como a Shein ecoam isso e as tornam facilmente acessíveis, perpetuando o consumo excessivo. Para que todos os novos produtos cheguem a tempo, as condições em que são produzidos tendem a ser antiéticas, são utilizados materiais de má qualidade e até foram encontrados vestígios de produtos químicos tóxicos nas peças de vestuário.

Carolyn Mair em seu livro The Psychology of Fashion reflete sobre o desejo de comprar tendência após tendência e como isso não tem nada a ver com capacidade de atenção, mas com hábito. Quando os espectadores testemunham como outras pessoas ficam felizes ao serem percebidas pelas roupas que vestem, eles sentem o desejo de comprar essa mesma peça. Acostumar-se com essa sensação motiva você a continuar comprando na esperança de reacender esse prazer e emoção.

'Desinfluência'

Como contraponto, os criadores de conteúdo estão se unindo para “desinfluenciar” ou fazer anti-hauls . Esses dois termos se baseiam em ensinar e explicar ao telespectador tudo o que ele não precisa, o que não vale a pena comprar. É uma crítica ao consumo excessivo e às compras impulsivas que visa provocar uma reflexão geral sobre como os produtos populares nem sempre são os melhores ou o que é preciso ter, aconteça o que acontecer.

Ao ver repetidamente as microtendências, a associação com elas torna-se mais forte, influenciando assim a decisão de consumo. É preciso levar em conta que a frequência com que vemos os chinelos UGG, por exemplo, não significa que sejam os preferidos do momento ou a estrela. Deinfluence é mostrar que todos podemos levar esses fatores em consideração, incluindo por que realmente queremos fazer uma compra, antes de adicioná-la ao carrinho.

É verdade que graças às diversas estéticas que o TikTok popularizou, é mais fácil adaptar o guarda-roupa ao estilo pessoal de cada pessoa, pois oferece guias de estilo em constante evolução. Porém, é aconselhável deixar claro o motivo dessa compra. Tomar decisões tendo como ponto de partida o que favorece cada pessoa e não a micro tendência do momento será sempre a chave do sucesso.

Por Ane Briones, SModas – El País          

 

CARLITOS BURGUER

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domingo, 17 de setembro de 2023

Crianças viciadas em telas e sem contato humano serão uma geração de conformistas, diz socióloga francesa

 Gazeta da Torre

Vivemos em um mundo rápido, acelerado, mediado pelas novas tecnologias, onde a premissa é ver e ser visto.

E isso, claro, influencia irremediavelmente a forma como nos relacionamos com os outros e o tipo de sociedade que construímos.

Essa é a visão de Claudiene Haroche, socióloga e antropóloga francesa que iniciou sua carreira no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) até se tornar diretora emérita da entidade.

Slaudiene Haroche, socióloga

Para ela, se antes havia um sentimento de pertencimento por conta de nossos laços estreitos e calorosos, agora enfrentamos vínculos sociais que se caracterizam pelo anonimato frio e pelo isolamento, processo que se intensifica cada vez mais nas sociedades individualistas.

Haroche trabalha com uma abordagem transdisciplinar para compreender como os modos, os comportamentos, os sentimentos e a personalidade podem ter mudado nas sociedades contemporâneas.

Claudine Haroche é autora de livros como História do Rosto: Exprimir e Calar as Emoções (1988) e Tiranias da Visibilidade: o Visível e o Invisível nas Sociedades Contemporâneas (2011).

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ela durante o Hay Festival Querétaro, que aconteceu entre os dias 7 e 10 de setembro no México. Confira a entrevista abaixo.

BBC - Você diz em seus livros que, ao longo da história, o ser humano mudou o valor de cada sentido. Se na Idade Média o tato e a audição eram muito mais valorizados, agora é a visão. Isso significa que perdemos o contato com as pessoas?

Claudine Haroche - De fato. Temos muito menos contato com as pessoas mas, ao mesmo tempo, estamos sempre, por exemplo, com o celular, que é tátil. E isso nos dá uma falsa sensação de realidade e tato.

É um momento complexo porque perdemos o contato direto com as pessoas, a comunicação próxima, o toque. E, ao mesmo tempo que aumenta a distância entre as pessoas, cada vez mais nos expomos e nos mostramos à sociedade, ainda que de forma superficial.

Isso nos afeta muito psicologicamente, porque não se perde apenas o contato, mas também a profundidade das relações com os outros e com nós mesmos.

E isso acontece porque a sociedade atual nos pede para estarmos ocupados o tempo todo. Como estamos sempre fazendo algo, nem paramos para pensar, não processamos o que nos acontece, entramos no automático. É quase um decreto moral: você tem que dizer que está ocupado o tempo inteiro.

Isso significa não pensar no que sentimos, não olhar para dentro, o que afeta a nossa saúde e também a sociedade.

A sociedade em que vivemos exige que tenhamos muitos laços, por exemplo por motivos profissionais, mas não são laços verdadeiros, tão importantes para a construção de um bom tecido social.

BBC - Quem se beneficia desta ruptura do tecido social, deste isolamento?

Haroche - Os Estados, os governos, o próprio sistema atual.

Os espaços para criar comunidades estão sendo perdidos. Agora você pode assistir a um filme em casa, mas não é a mesma coisa que assistir em grupo, com alguém, e depois conversar sobre o que viu, na presença do outro.

As conversas, como já disse, tornam-se extremamente superficiais. Não pensar beneficia o sistema.

Reclamo muito do sistema neoliberal, que individualiza muito. E isso torna os indivíduos muito dependentes. É um paradoxo, porque por um lado o sistema "nos liberta", mas, ao nos tornarmos tão independentes, ficamos mais isolados e vulneráveis, portanto, mais dependentes.

Neste sistema, a competição tem precedência sobre a emulação. Há uma visão muito competitiva das pessoas à qual me oponho. É muito melhor, quando você está em grupo, imitar e brincar de ser você mesmo. Você aumenta sua criatividade, aprimora sua mente, não tenta estar acima do outro. Deveríamos tentar restaurar isso em nossa sociedade.

BBC - Nos seus artigos e livros você se refere em diversas ocasiões ao conceito de sociedade líquida do escritor Zygmunt Bauman, uma sociedade em constante mudança, em permanente transição e incerteza. Quais são os perigos, na sua opinião, desta sociedade líquida?

Haroche - O perigo está dentro do ser humano, no seu espaço interno, em sua consciência. Você tem contatos, pessoas com quem você conversa o tempo inteiro, em todos os lugares, nas redes sociais, mas contatos sem profundidade e sem tempo para entrar em si mesmo, para pensar.

E isso leva ao conformismo.

Mas, ao mesmo tempo, o perigo nesta sociedade onde não há limites entre o nosso mundo interno e externo, onde que não podemos nos expressar livremente. Nos últimos tempos há cada vez mais pessoas fazendo julgamentos, grupos que te julgam em massa pelo que você escreve, comenta. Assim, surge o assédio online.

Passou do assédio sexual ao assédio moral. Há alguns anos se dizia que o assédio moral não existia, que isso é ridículo, mas ele existe e é muito importante e perigoso.

Por exemplo, num lugar com tantas regulamentações, como as universidades dos Estados Unidos, as aulas agora são de "portas abertas" e qualquer um pode reclamar da atitude de qualquer um. Foi feita uma tentativa de regular alguns problemas, mas outros foram criados.

Isso também fala da atual cultura do cancelamento, algo sobre o qual devemos ser muito cautelosos. É preciso evitar o radical. É, talvez, uma forma de apagar a história.

BBC - Tudo isso que você está falando está intimamente relacionado ao uso que fazemos das redes sociais hoje em dia.

Haroche - Isso acontece nas redes sociais porque estamos o tempo todo conectados e pelo tipo de contato que ali se estabelece.

Por exemplo, imagine que uma pessoa busca ter milhares de seguidores em uma rede social. Esta é uma forma de mercantilizar a cultura, tal como Adorno e Horkheimer falaram no século passado com a Escola de Frankfurt.

É uma forma de comercializar tudo, a cultura, a ciência. Mas também está deixando uma lacuna perigosa para que possamos "ser produtivos" o tempo todo.

Às vezes somos produtivos, às vezes não. Nesse espaço devemos permitir que as pessoas desenvolvam livremente as suas mentes e a sua própria capacidade de pensar e, assim, evitar toda a enorme violência que é gerada nas redes.

Há quem tente resistir, que não caia nessa, mas é complicado com a atual sociedade hiperconectada e acelerada.

BBC - Você fala de sociedades que vivem no "calor", tendo laços reais e estreitos, e outras na "frieza", onde predominam a superficialidade e o anonimato. A nossa sociedade é de frieza?

Haroche - Sim, totalmente. Por conta dessa super individualização e da constante falta de contato real entre as pessoas.

Por exemplo, existem diferentes tipos de proteção na sociedade, como a que um membro da família pode oferecer. Mas agora, cada vez mais, há famílias monoparentais e isto contribui para a migração constante, para o fato de termos de nos deslocar de um lugar para outro e isso pode criar uma falta de proteção, de desenraizamento.

Por um lado, temos mais liberdade, mas também menos proteção quando estamos sozinhos.

É difícil ter liberdade, conexões profundas e proteção ao mesmo tempo.

Este sistema atual funciona para aqueles que são suficientemente fortes para viverem sozinhos, mas é muito difícil. Estamos nos tornando cada vez mais uma sociedade superficial.

BBC - Com esse panorama, qual o papel dos sentidos, da sensibilidade e da percepção hoje em dia?

Haroche - Isto tem tudo a ver com a aceleração e limitação que existe na sociedade atual.

Há uma parte muito positiva: por um lado, muitas pessoas estão ficando muito mais conscientes do seu corpo. Mas, ao mesmo tempo, surge na sociedade uma série de regras e regimes que impõem limitações, como métodos para impedir as mulheres de adquirir conhecimento, de estudar.

Portanto, há um duplo desenvolvimento na forma como nos percebemos.

Há abertura por um lado, em que as mulheres conquistam cada vez mais espaços, mas também há outros onde aparece uma educação mais radical e limitadora. A complexidade entre religião e política é sempre uma tragédia.

BBC - Você se refere também à dominação histórica que as mulheres sofreram, mas também como os homens sofrem as exigências ou os termos do exercício dessa dominação.

Haroche - Acredito realmente que hoje devemos exigir do feminismo não só a proteção das mulheres, mas também dos homens. Existe uma relação entre os dois.

Há sempre uma mistura de homem e mulher dentro de um homem e uma luta nisso.

Você vê um exemplo de como os homens sofrem as exigências dessa dominação na reação dos ditadores, por exemplo alguém como Vladimir Putin, com total falta de humor e obsessão pela dominação, dominação masculina, masculinidade exacerbada. Acontece com Putin, mas também se vê em Jair Bolsonaro.

As pessoas se tornam dependentes dessa dominação, num duplo sentido. E não sabem como sair dela. Os homens devem ser fortes e, além disso, mostrar-se fortes.

Todos os seres humanos têm medo, mas somos fracos de nascença. E é normal que queiramos proteção, mas o grande problema agora são os homens que querem se livrar das mulheres e as mulheres querem se livrar dos homens. É uma radicalização tremenda.

E a questão é que é necessário ver como olhamos para as nossas identidades, e não como confiná-las em termos como "masculino" e "feminino".

BBC - Pelo que você diz, não estamos buscando proteção neste momento através da nossa vulnerabilidade, mas sim expondo uma aparente força e frieza.

Haroche - Fingimos que somos fortes, mas não somos.

Note-se que um dos elementos do nazismo foi justamente o fortíssimo desenvolvimento da masculinidade física, a dominação e o ódio à homossexualidade. Havia muito medo da homossexualidade, entendida por eles como uma fraqueza.

Vemos isso agora também em muitos lugares, esse medo da homossexualidade, até mesmo por meio da proibição. É um reforço disso, de frieza e domínio versus calor e vulnerabilidade.

Vemos isso em países como o Afeganistão, com o domínio sobre as mulheres.

É muito complicado mudar esse tipo de sistema de fora, tem que ser feito de dentro. E é difícil. É um grande problema. Há muita discussão no meio sobre o respeito à cultura, a gestão dela.

BBC - Voltando ao início, aos sentidos, a dar prioridade ao toque pessoal e ao contato real com os outros: voltarmos ao nosso corpo, à sensibilidade e ao calor, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de estar em contato com outras pessoas. É isso?

Haroche - Por um lado, no mundo de hoje temos que tornar visível o nosso próprio eu, a nossa vida visível dentro deste mundo tão conectado.

E isso implica mais tempo nas telas, e menos tempo para a interioridade.

Isso é algo muito problemático, porque não há tempo para intimidade, para nos conectarmos verdadeiramente com a nossa diversidade.

Dou como exemplo algo que acontece nos Estados Unidos, onde em muitos lugares, para diminuir o racismo, as pessoas criam um currículo neutro, sem foto.

Isto por um lado é bom, mas por outro temos que aprender a diversidade.

Temos que aprender que todo ser humano tem medo, medo do que é diferente. Justamente temos de aprender que somos todos diferentes, mas que conseguimos fazer conexões, que existem diferenças que não conseguimos compreender plenamente, mas que é preciso entendê-las.

E uma das coisas que pode nos ajudar nisso é, sem dúvida, a conversa. Conversas profundas, conversas reais e profundas.

Outra coisa importante para essa resistência é o humor. É uma forma de resistir a esta aceleração, a esta distância.

Você vê isso agora com as crianças, que passam muitas horas nas redes, conectadas, sem contato real com os outros e sem tempo para pensar e refletir. E isso pode fazer com que tenhamos adultos conformistas no futuro.

Assim como é importante que os adultos retornem a essa interioridade, parando, pensando e se conectando com os outros por meio de uma conversa boa e profunda, para as crianças é essencial uma boa educação que as torne capazes de olhar para dentro, sentir e cultivar esse mundo interior.

Alicia Hernández - BBC News Mundo

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Bolsa Família, 20 anos: 'Meus pais foram beneficiários, hoje sou engenheiro de software'

 Gazeta da Torre

Dener Silva Miranda em frente ao logotipo
da Universidade de Dundee, na Escócia,
onde ele estudou pelo programa Ciência Sem Fronteiras

"Na nossa família, o ciclo de pobreza estrutural foi quebrado. Mas não foi fácil. Quando paro para pensar na minha história, sei o quanto de tempo levou para isso acontecer. Não é trivial, de maneira alguma", diz Dener Silva Miranda, de 31 anos e morador de Parnaíba, no Piauí.

Dener é engenheiro de software e trabalha à distância para uma empresa de Los Angeles, nos Estados Unidos. A irmã dele, Vitória, de 23 anos, atualmente estuda Medicina em São Paulo com uma bolsa do Fies, programa de financiamento estudantil do governo federal.

Não seria nada demais, se Dener e Vitória fossem filhos da classe média brasileira, mas esse não é o caso. Ou não era o caso na infância dos dois, no início dos anos 2000, quando a família de Dener e Vitória recebeu o Bolsa Escola e fez parte da primeira geração de beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda que completa 20 anos em outubro de 2023.

Daquela primeira geração, apenas 1 em cada 5 filhos de beneficiários do programa continuava recebendo o Bolsa Família 14 anos depois, segundo levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social publicado em abril de 2022.

Dener e a irmã fazem parte do grupo de "filhos do Bolsa Família" que conseguiu deixar o programa na vida adulta. A BBC News Brasil ouviu também a experiência de quem precisou voltar a receber o benefício.

Avós analfabetos, pais no Bolsa Família, filhos na universidade

"Dos meus avós, só um foi alfabetizado. Minha mãe estudou até a quarta série e meu pai nunca concluiu o ensino médio", conta Dener.

A pernambucana Luzinete e o maranhense Francisco foram para São Paulo nos anos 1980, lembra o filho do casal.

"Eles foram naquela última grande leva de imigrantes nordestinos – minha mãe, aos 15 anos, para ser empregada doméstica. E meu pai um pouco mais tarde, aos 18 anos, e foi lixeiro, porteiro, mecânico e operário industrial, mas sempre com vontade de voltar ao Nordeste."

Depois de uma primeira tentativa fracassada, Luzinete e Francisco se instalaram em Parnaíba, no Piauí, no fim dos anos 1990, ela para trabalhar como cabeleireira e ele, como mecânico de motos.

"Minha mãe cortava cabelo e cobrava R$ 2 por corte, mas tinha dia que cortava três, quatro cabelos, e tinha dia que não cortava nenhum, então não tinha uma estabilidade de renda", lembra Dener, observando que a situação do pai, como mecânico autônomo, era similar.

"Foi quando surgiu o Bolsa Escola, ali em 2001, e a gente começou a receber esse benefício, que na época era de R$ 15", recorda.

Criado durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o valor do benefício do Bolsa Escola era pago por criança entre 6 e 15 anos (até um máximo de R$ 45), às famílias com renda abaixo de R$ 90 por pessoa, com a contrapartida de manutenção das crianças na escola.

Em 2003, logo no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a família passou a receber o Bolsa Família, lembra Dener.

'O Bolsa Família deu para a nossa família
uma estabilidade, pelo menos para
o básico do básico', diz Dener

O Bolsa Família reuniu num só benefício quatro programas de transferência de renda do governo FHC (Bolsa Escola, Vale Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação). Inicialmente, o programa previa um benefício básico de R$ 50 para famílias com renda por pessoa de até R$ 50 e um benefício variável de R$ 15 (também até um limite de R$ 45) para famílias com crianças com renda per capita até R$ 100.

"O Bolsa Família deu para a nossa família, naquele tempo, uma estabilidade, pelo menos para o básico do básico. Não salvava o mundo, obviamente, mas você sabia que tinha aquilo ali, que você ia receber e ir mantendo as coisas girando", diz o filho de beneficiários.

Mas a vida não era fácil. Dener lembra, por exemplo, que nessa época recebeu uma bolsa parcial para estudar em uma escola privada, mas não havia dinheiro para o lanche.

"Eu ficava com vergonha, e minha mãe usava o dinheiro do Bolsa Família para pagar parte da mensalidade da escola. Acho que era R$ 50 à época, mas eu sentia que esse dinheiro fazia falta", conta o hoje engenheiro de software.

"Então pedi para eles me colocarem na escola pública, porque isso resolveria dois problemas – eles ficariam com o dinheiro e a escola pública tinha merenda, então eu não ia mais ter esse problema de ficar com fome às vezes durante as aulas."

A 'grande virada'

Assim, Dener estudou a maior parte do ensino fundamental em escola pública.

Já a irmã mais nova, Vitória, num momento em que a vida da família já estava um pouco melhor, estudou no Sesi (Serviço Social da Indústria) e em escolas particulares de Parnaíba.

Dener e Vitória são a primeira geração
da família a cursar ensino superior

"Recebemos o Bolsa Família até 2006 ou 2007, daí o Brasil começou a dar aquela melhora econômica, a atividade aqui em Parnaíba melhorou bastante e meus pais começaram a melhorar de vida."

Dener conta que lembra quando a assistente social visitou a casa da família na época da renovação do benefício, e sua mãe disse a ela que não precisaria mais do auxílio.

Mas, segundo ele, a "grande virada" para a família veio quando o pai se tornou professor de mecânica de motos do Pronatec, programa de estímulo ao ensino técnico criado durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT).

Em 2007, Dener começou a estudar numa escola técnica estadual e depois foi inaugurado o Instituto Federal do Piauí em Parnaíba, onde ele também foi aluno e bolsista, e teve acesso a professores de programação com mestrado e doutorado.

Com a expansão das universidades públicas, ele foi o primeiro da família ir para a faculdade, estudando Ciência da Computação na Universidade Federal do Ceará (UFC), e teve a experiência de ser bolsista no exterior pelo programa Ciência sem Fronteiras.

Aos 23 anos, pouco mais do que a idade do programa Bolsa Família, Vitória segue o mesmo caminho, estudando Medicina em São Paulo graças a uma bolsa do Fies. 

"Eu sempre gosto de pontuar uma coisa: o Bolsa Família não veio sozinho, ele foi apenas uma das ferramentas empregadas na época", diz Dener. "Então se você olha o programa de transferência de renda e pensa que apenas ele resolve a situação, não resolve. Porque a transformação social e a saída da pobreza crônica exigem investimento em educação, em infraestrutura, em várias áreas."

'A transformação social e a saída da pobreza crônica
exigem investimento em educação, em infraestrutura,
em várias áreas', diz Dener — na foto, ao lado dos
pais Francisco e Luzinete e da irmã Vitória,
na sua formatura na UFC

'Bolsa Família sozinho não é suficiente'

O que Dener conclui a partir da trajetória de sua família, o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), fundado pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner, constatou em uma série de estudos sobre o destino dos filhos de beneficiários do Bolsa Família publicados no ano passado e neste ano 

Esses estudos mostram que 64% dos beneficiários dependentes de 7 a 16 anos do programa Bolsa Família em 2005 não se encontravam mais no Cadastro Único 14 anos depois, em 2019. Naquele ano, essas pessoas tinham entre 21 e 30 anos.

Da parcela que permanecia no Cadastro Único (registro do governo das famílias de baixa renda do país), 20% continuavam recebendo o Bolsa Família no início da vida adulta, enquanto outros 14% constavam do cadastro, mas não recebiam o benefício – ou seja, conjunturalmente estavam acima da "linha de pobreza", mas ainda sob risco de voltar a ela a qualquer momento.

Os dados revelam que a crítica de que o Bolsa Família criaria dependência para as famílias beneficiárias não se sustenta na prática, com a maioria encontrando a "porta de saída".

Os estudos também mostram que 45% desses jovens acessaram o mercado de trabalho formal pelo menos uma vez entre 2015 e 2019, com esse acesso sendo mais frequente entre homens (51%) do que mulheres (39%) e entre brancos (55%) do que negros (45%) ou indígenas (31%).

O nível de escolaridade dos pais também influencia, com o acesso ao mercado de trabalho mais frequente entre os filhos de pais com ensino médio completo (51%), do que entre aqueles com pais com os anos iniciais do ensino fundamental incompletos (38%), por exemplo.

"A taxa de saída do Cadastro Único nos leva a entender que as condicionalidades do programa surtiram efeito, ou seja, a manutenção da criança na escola e os cuidados com sua saúde permitiram que essas crianças acumulassem capital humano que lhes garantisse um emprego formal que lhes tirasse da pobreza, embora um choque como a pandemia possa jogá-los novamente nessa condição", observa Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS.

É um bom resultado, observa o economista, mas há determinantes que facilitam que as crianças beneficiárias consigam alcançar um emprego formal com uma renda suficiente para tirá-las da pobreza na vida adulta.

Crianças beneficiárias de municípios com melhor infraestrutura –
com boa oferta de escolas, equipamentos públicos como praças, bibliotecas,
centros de saúde – têm probabilidade de sair da pobreza maior',
diz Paulo Tafner, do IMDS

Um desses elementos são as condições locais de onde estão essas crianças.

"As crianças beneficiárias de municípios com melhor infraestrutura – com boa oferta de escolas, equipamentos públicos como praças, bibliotecas, centros de saúde – têm probabilidade de sair da pobreza bem maior."

Outro fator são as condições familiares. Os "filhos do Bolsa Família" de famílias chefiadas por mulheres sem a presença masculina têm desempenho pior, em relação aos filhos de famílias com dois adultos. Isso acontece pois as mães sozinhas têm uma renda mais baixa e maior dificuldade de conseguir empregos que garantam a elas uma autonomia e permita-lhes investir nos filhos.

"Se há boas pré-condições, que permitam a ascensão dessa criança e, além disso, você amplia as possibilidades de formação superior dela quando jovem adulto, isso amplia o horizonte dessas crianças. São políticas que vão muito além do Bolsa Família, complementares", diz Tafner.

"O Bolsa Família em si tem um mérito de aliviar a pobreza no curto prazo, mas ele sozinho não é suficiente para tirar a criança do ciclo da pobreza, são necessárias outras políticas públicas."

De volta ao Bolsa Família na vida adulta

Roberto Calvelo, de 23 anos, é parte do outro grupo de "filhos do Bolsa Família" da primeira geração: aqueles que continuam como beneficiários do programa no início da vida adulta.

Roberto conta que foi a única testemunha ocular do assassinato do pai, quando tinha quatro anos. O crime aconteceu na porta da casa da família, na entrada da favela da Tieta, região central de Fortaleza, no Ceará.

Roberto testemunhou o assassinato do pai
aos quatro anos e foi criado junto ao irmão apenas pela mãe,
que cuidava ainda do avô com problemas de saúde

"Minha infância foi bem complicada por essa questão do meu pai, que partiu de maneira trágica quando eu era muito pequeno", lembra ele.

Após a morte do pai, a mãe ficou responsável pela criação dos dois filhos e pelos cuidados com o avô de Roberto, um idoso com a saúde debilitada após alguns AVCs (acidentes vasculares cerebrais).

"Minha mãe, por conta dessa situação do meu avô, nunca conseguiu trabalhar fora de casa, e acabou se privando de muitas coisas da vida", afirma, lembrando ainda que a mãe engravidou do primeiro filho – o irmão mais velho de Roberto, hoje policial militar – aos 17 anos.

Nesse cenário, a renda da família de quatro pessoas era composta à época apenas da aposentadoria do avô, em grande parte destinada à compra de remédios para o idoso, e do Bolsa Família.

"Eu pequeno, não tinha essa perspectiva da importância do programa. Eu sabia que aquilo ajudava a gente, que tinha o dia de ir na Caixa sacar, mas o impacto desse dinheiro eu só fui perceber com o decorrer do tempo, quando vi que minha mãe tirava uma parte do valor para pagar o curso."

O curso era de técnica de enfermagem, profissão que a mãe de Roberto exerce até hoje.

'O Bolsa Família deu uma profissão à minha mãe',
diz Roberto — na foto, ao lado de Andrea, que usou parte
do valor do programa para pagar curso de técnica
de enfermagem, profissão que exerce até hoje

"O Bolsa Família deu uma profissão à minha mãe", resume o jovem, lembrando que a primeira vez que ele comeu pizza na vida também foi com o dinheiro do programa.

"Eu não consigo imaginar o que seria [de nós] sem aquela ajuda que muitos chamam de 'esmola'. Para quem recebe uma grana, o valor é pequeno, mas para nós foi determinante para minha mãe ter a profissão que tem até hoje."

A família deixou o Bolsa Família quando a mãe de Roberto passou a trabalhar de madrugada como cozinheira num albergue da prefeitura, enquanto durante o dia terminava o curso. Em 2013, desempregada e em meio a um relacionamento abusivo, ela acabou voltando ao programa, mas conseguiu sair novamente ao voltar a trabalhar em hospital, seguindo fora do programa até hoje.

Com a melhora de vida da mãe, Roberto e o irmão foram a primeira geração da família a entrar no ensino superior – assim como Dener e Vitória, no Piauí.

O irmão mais velho de Roberto cursou Filosofia na UFC, fez pós-graduação e chegou a começar uma segunda graduação em Letras, até passar num concurso para a Polícia Militar de Alagoas, onde atualmente é tenente.

Já Roberto começou uma graduação em Administração numa universidade privada, mas acabou trancando o curso no quinto semestre.

Ainda no ensino médio, ele começou a trabalhar como bancário e seguiu trabalhando no setor financeiro até ficar recentemente desempregado. Casado, pai de duas filhas e até há pouco morando com os sogros, viu sua família novamente dependendo do Bolsa Família na vida adulta.

'Faço um paralelo entre a minha história e a do Brasil –
da mesma forma que, junto com o Brasil,
a gente saiu da fome e da miséria, a gente junto com
o Brasil também voltou', diz Roberto

"A ideia do programa era que as pessoas utilizassem, ascendessem e saíssem, e isso de fato aconteceu com muita gente – eu puder ver isso acontecer com a minha família. Mas faço um paralelo entre a minha história e a do Brasil – da mesma forma que, junto com o Brasil, a gente saiu da fome e desse processo de miséria, a gente junto com o Brasil também voltou", diz Roberto.

"Acho que essas idas e vindas têm muito mais a ver com a situação política do país do que com o sucesso ou não do programa. Mas o aumento do valor [para R$ 600 mais benefícios variáveis] tem sido uma mão na roda."

Como tornar o Bolsa Família mais efetivo em tirar famílias da pobreza

Para Laura Müller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, casos como o de Roberto, um "filho do Bolsa Família" que se viu de volta ao programa na vida adulta num momento de desemprego, não denotam um "fracasso" do auxílio.

"Sempre vai ser necessário um programa de assistência de renda focalizado para quem mais precisa, é normal as pessoas precisarem [do benefício] em caráter temporário ao longo da vida."

Machado lembra ainda que o valor de R$ 175 bilhões atualmente destinado ao programa é sem precedentes na história, vindo de um orçamento que antes era de cerca de R$ 30 bilhões.

"Agora, em diversos outros aspectos, eu acho que andamos para trás", avalia a pesquisadora, sobre o novo desenho do programa após seu relançamento, depois do breve hiato em que a transferência condicionada de renda tornou-se "Auxílio Brasil" sob o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Para a economista, o Bolsa Família nunca teve a preocupação de auxiliar as famílias na busca de sua autonomia. Isso envolveria essas famílias terem um plano de acompanhamento para superação da pobreza, defende a pesquisadora, que escreveu um estudo sobre isso em coautoria com um dos "pais do Bolsa Família", o também economista Ricardo Paes de Barros. 

"As pessoas que deixaram o programa, como mostram as pesquisas, conseguiram por conta própria, mas o Bolsa Família não é orientado para tal. Então precisaríamos, junto à transferência, fazer algo como o Chile e o Paraná já fazem, que é ter uma orientação para a superação da vulnerabilidade."

Machado também avalia que, ao determinar uma transferência de R$ 600 para todos, sem considerar o que a família já recebe através do trabalho, o Bolsa Família atualmente tem um resultado desigual para as famílias.

Além disso, com a faixa de corte de renda de R$ 218 por pessoa para ser elegível ao programa, uma família que recebe R$ 216 por pessoa tem direito ao benefício de R$ 600, mas uma que recebe R$ 219 não teria direito a nada – outro fator de desigualdade.

Para corrigir essas distorções, Machado defende um modelo similar ao do Benefício de Superação da Pobreza da época do governo Dilma Rousseff, que previa a complementação de renda das famílias até um certo patamar.

Essa seria também, na visão da pesquisadora, uma forma de incentivar mais beneficiários a trabalhar, já que o afastamento do mercado de trabalho por períodos longos gera impactos negativos de longo prazo.

Uma mudança feita nesse sentido na nova versão do Bolsa Família foi a introdução da chamada Regra de Proteção, que estabelece que, mesmo elevando a renda a partir da conquista de um emprego, ou pelo empreendedorismo, a família beneficiária não precise deixar imediatamente o programa.

Em julho deste ano, por exemplo, das 20,9 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família, 2,18 milhões estavam na Regra de Proteção, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Machado também defende uma melhor focalização do programa nas famílias com crianças e o pagamento de um bônus para as famílias que se engajassem no programa de superação da pobreza por ela defendido.

"Hoje o programa desincentiva a pessoa a declarar uma renda do trabalho – se ela declara, pode perder o benefício inteiro. Então precisamos que isso mude e que essas famílias sejam acompanhadas com um plano claro", afirma, defendendo um uso mais intensivo de tecnologia no processo de cadastro de beneficiários, para liberar as assistentes sociais para esse acompanhamento.

Machado defende uma melhor focalização
do novo Bolsa Família nas famílias com crianças

É preciso visitar as famílias e entender os motivos da pobreza, diz Machado.

"Tem mãe que não tem creche, têm famílias que não conseguem trabalhar porque têm um idoso que requer cuidado integral, têm pessoas de mais idade cuja profissão desapareceu e elas precisam de uma nova qualificação, ou às vezes a questão é apenas precisar de um emprego", enumera a pesquisadora.

"Tem que ter alguém que avalie o problema e desenhe uma solução, conectando essa família com os serviços públicos e a sociedade."

Já Roberto, o "filho do Bolsa Família" que voltou a depender do benefício na vida adulta, avalia que o programa hoje está muito melhor do que no passado, e defende outro caminho para a melhoria do auxílio.

"O ideal seria uma renda básica", afirma, citando a proposta – historicamente defendida no Brasil pelo deputado petista Eduardo Suplicy – de um pagamento periódico em dinheiro feito pelo governo para todas as pessoas, independentemente do nível de renda ou do cumprimento de contrapartidas, com objetivo de garantir um nível de vida mínimo a todos os residentes do país.

"Defendo um programa de renda básica extensiva, que dialogasse mais ainda com a população e trabalhasse o preconceito das pessoas, porque hoje há muito preconceito com quem é usuário do Bolsa Família."

Fonte: Thais Carrança Role, BBC News Brasil - São Paulo

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Problemas no Brasil são tão enraizados que se tornam invisíveis

 Gazeta da Torre

Diego Costa, CEO do Instituto Millenium

A intrincada teia de obstáculos que envolve o empreendedorismo e a inconstante insegurança jurídica fazem do Brasil um país hesitante para os responsáveis pelas decisões de investimento na hora de iniciar ou expandir os negócios. O excesso de regras — muitas impraticáveis, ou difíceis de serem aplicadas, e outras reinterpretadas conforme a conjuntura política — impede que a Nação leve adiante grandes projetos.

“Há, na Ciência Política, o termo ‘vetocracia’, que explica que, em várias democracias, há um exagero nos pontos de veto para iniciativas empreendedoras. O emaranhado de indivíduos e comitês que têm o poder de negar uma proposta é excessivamente amplo. O que ocorre é que, justamente quando um empreendedor acredita ter superado um obstáculo, outro surge, interrompendo abruptamente a execução do projeto. No contexto brasileiro, a situação é ainda pior. Como as interpretações das regras mudam várias vezes, isso nos torna uma ‘hesitocracia’”, adverte Diogo Costa, CEO do Instituto Millenium. “A própria insegurança jurídica é uma inimiga da produtividade e da capacidade de prosperar.”

Apesar disso, Costa destaca que houve alguns avanços recentes, como a Lei de Liberdade Econômica, o Marco Legal de Saneamento e regulações de transportes e telecomunicações. “Houve também em gestão pública. O governo digital brasileiro, hoje, ocupa as primeiras posições dos rankings internacionais. Contudo, esses avanços não são garantidos. Houve pressão para retrocessos no Marco do Saneamento e na agenda trabalhista — essa que conseguiu reduzir muito a insegurança jurídica do País.”

Problemas crônicos

Ainda segundo Costa, apesar de, atualmente, dispormos muito mais de tecnologia e engenharia do que no passado, enfrentamos mais dificuldade para tirar grandes projetos do papel. “Isso se dá por causa do ambiente regulatório nacional. Os problemas são tão crônicos que se tornam invisíveis.”

“Precisamos que haja diálogo entre setores público e privado para que as empresas possam trazer as inovações que necessitamos à infraestrutura brasileira. O Brasil deve se atentar ao que dá escala, e isso ocorre quando há boas parcerias entre ambos os setores”, salienta.

Agenda Brasil

Para o CEO do Instituto Millenium, o debate em torno da Reforma Tributária chega a um ponto em que a prioridade do governo é o de expansão da receita, o que foge completamente do objetivo central de uma reforma: almejar a simplificação e o aumento da produtividade. “Outra das nossas agendas prioritárias é a Reforma Administrativa, pensando não só no custo da máquina pública, mas também na eficiência e na capacidade de os servidores entregarem melhores serviços à população”, frisa. Ele ainda comenta que o atual sistema, além de ser “irracional”, não foi planejado. “Cada carreira criada no setor público, cada gratificação, foi feita muito no improviso. Temos, hoje, um sistema feito de gambiarras.”

*A entrevista, comandada por Thais Herédia, é mais uma produção do Canal UM BRASIL — uma realização da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) — em parceria com o Instituto Liberal de São Paulo (ILISP), que conta com o apoio do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica (CMLE).

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