Gazeta da Torre
Livraria Simples, em São Paulo |
Emparedadas entre as práticas agressivas de gigantes como
a multinacional americana e as ameaças tributárias de Paulo Guedes, o setor
editorial e livreiro resiste apesar da pandemia.
São as pequenas livrarias e editoras as mais afetadas
pelas práticas comerciais mais agressivas no mercado. No dia 10 de março, a
Amazon enviou um e-mail a diversas editoras sugerindo que ofereçam descontos
entre 55% e 58% sobre o preço de capa dos livros, além de uma taxa de 5% para a
publicidade das obras na plataforma —a praxe é oferecer entre 45% e 55% de
desconto, mais 2% ou 3% para marketing—, o que gerou uma resposta conjunta do
setor. “Hoje as editoras lucram, no máximo, 4% em relação à receita líquida. A
Amazon pede descontos de até 8% da receita líquida, é impossível atender essa
imposição. Ninguém em sã consciência acredita que seria possível repassar isso
no valor do livro para o consumidor”, explica Henrique Farinha, presidente da
editora Évora e porta-voz da iniciativa Juntos pelo Livro, composta por 130
pequenas e médias editoras. Todas elas enviaram à Amazon uma carta na qual
afirmam ser inviável conceder descontos maiores, pois “as condições solicitadas
estão muito além das nossas possibilidades”. A gigante tecnológica afirma, em
nota, que não comenta acordos específicos com seus parceiros comerciais e que
“autores, editores e livreiros trabalham juntos para conectar os leitores aos
livros”.
Se em outros países, principalmente na Europa, já faz
anos que a Amazon “ameaça” acabar com as livrarias de rua, no Brasil, esse
fenômeno é recente, conforme explica Marisa Midori, professora especialista em
História do Livro da Universidade de São Paulo (USP). “O movimento de venda de
livros por e-commerce ainda era incipiente no Brasil antes da pandemia. A
Amazon tinha chegado com timidez, mas, a partir do ano passado, ganhou mais
terreno rapidamente. As condições que oferece são boas para grandes editores,
mas não para as menores”, avalia.
A pressão por mais descontos, no entanto, não é exclusividade
das vendas online e tampouco foi inventada pela multinacional, conforme conta
Ivana Jinkings, publisher da Boitempo, editora que também participa do Juntos
pelo Livro. “Sempre tivemos o cuidado de não concentrar muito nossas vendas em
uma só livraria, porque as grandes redes faziam o mesmo que a Amazon faz hoje,
e me orgulho em dizer que a gente não caía nesse tipo de chantagem. Elas
ameaçavam não comprar mais com a gente se não aumentássemos os descontos.
Ficavam duas semanas sem comprar, mas depois voltavam”, relata. Jinkinks
reconhece, no entanto, que a plataforma virou uma “grande tábua de salvação”
para algumas editoras, uma vez que a empresa chega a oferecer pagamentos à
vista, quando a praxe em algumas livrarias é pagar em até dois meses ou mais.
A esperança do preço fixo
O preço é o principal fator de decisão na escolha de um
título e influencia 22% dos leitores brasileiros na hora da compra de livros,
de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto
Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. Os dados também mostram que cerca de
27 milhões de brasileiros da classe C consomem livros, número que contraria a
tese de Paulo Guedes, ministro da Economia, de que apenas os ricos leem livros
no país. Esse é o argumento usado para justificar a incidência da alíquota de
12% referente à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) apresentada na Reforma
Tributária que tramita no Congresso —a venda de livros e do papel destinado à
impressão é imune à cobrança de impostos, segundo determina a Constituição, e
uma lei de 2014 concedeu isenção de Pis e Cofins sobre a receita da venda de
livros e do papel usado para a fabricação desses produtos—.
Em um recorte socioeconômico, a pesquisa revela um
paradoxo entre as classes sociais: A e B têm níveis mais altos de leitura do
que C, D e E, mas também tiveram as maiores quedas entre 2015 e 2019: enquanto
o número de leitores diminuiu 12% na classe A e 10% na B, a queda entre D e E
foi de apenas 5%. No mesmo período, os preços dos livros caíram em 20%, apesar
do aumento do preço do papel e do fechamento das grandes livrarias, como mostra
o balanço de mercado feito pela Nielsen Books. “Não tem lógica impor tributo a
um setor que gerou redução de preço para o consumidor. Além disso, a tributação
geraria um efeito bumerangue para o próprio Governo, que é o maior comprador de
livros didáticos no país, sendo responsável por metade das vendas do setor”,
explica Henrique Farinha. Em 2019, o Governo federal gastou 1,1 bilhão de reais
para adquirir 126 milhões exemplares no PNDL (Plano Nacional do Livro
Didático).
Para Marisa Midori, o tributo geraria uma arrecadação
“ínfima”, já que, segundo ela, “o Brasil está longe de ser uma potência
editorial”, setor que contribui com menos de 0,1% do PIB nacional. “Se o
Governo quer engordar o Tesouro, deveria criar estratégias para, de fato, taxar
os mais ricos, como o imposto sobre grandes fortunas. Na Suíça, esse imposto tem
impacto de 11% na arrecadação. Na Noruega, esse impacto corresponde 7%”,
exemplifica a especialista.
Midori considera que o imposto sobre os livros teria,
isso, sim, um impacto simbólico, já que o país ainda está em formação de
leitores. “É uma mostra de que o Governo se recusa a amparar a população do
ponto de vista da educação e da cultura”. Daniel Lameira, um dos sócios da
editora Antofágica, concorda. “A proposta não visa um ganho tributário, é
apenas um ataque a um setor que forma massa crítica”, diz. Lameira acrescenta
ainda que o aumento nos preços de livros, caso a tributação fosse aprovada,
aumentaria a pirataria e complicaria a diversidade literária, afetando o
mercado nacional como um todo. “As editoras nacionais perderiam terreno para
aquelas estrangeiras, como a Planeta [espanhola] e a Harper Collins
[norte-americana]”, explica.
O publisher da Antofágica, que publica clássicos da
literatura em edições especiais ilustradas artistas —um cuidado estético também
presente na escolha de fontes e na diagramação de cada obra— também contesta o
argumento de que apenas ricos leem. Com títulos que custam até 70 reais,
Lameira arrisca dizer que o leitor e cliente da sua editora pertence,
majoritariamente, às classes C e D. “É um leitor que responde muito bem às
promoções. Por isso, fazemos uma pré-venda agressiva, em que um livro de 70
reais sai por 30 reais. Em uma outra ação, vendemos 70 mil e-books por 25
centavos, um preço meramente simbólico”, conta.
Todos os publishers, livreiros e especialistas ouvidos
nesta reportagem concordam que uma medida que ajudaria a desafogar o setor
seria a aprovação do Projeto de Lei do preço fixo do livro, que propõe que
todas as livrarias (físicas e virtuais) poderão oferecer no máximo 10% de
desconto em uma título durante o primeiro ano após o seu lançamento. Depois
disso, caberia a cada loja decidir oferecer descontos superiores. De autoria do
senador Jean Paul Prates (PT/RN), o projeto de lei —similar ao aplicado em
países como a França— está estacionado na Comissão de Assuntos Econômicos do
Senado desde 2017.
“Essa medida serviria justamente para barrar políticas
agressivas de empresas como a Amazon, que, muitas vezes, vende mais barato que
a própria editora. O mais grave é esse tipo de política pode ditar o que se publica,
porque se eles só compram determinado tipo de livro, os demais podem deixar de
existir”, diz Ivana Jinkings.
Sobrevivência graças às redes
Apesar de o mercado editorial e livreiro depender quase
exclusivamente de tinta e papel —a última pesquisa sobre as vendas de e-books
no país, divulgada em 2017, mostrou que os livros nesse formato correspondiam a
apenas 1,09% do setor— é no mundo digital que está chance de sobrevivência das
pequenas editoras e negócios livreiros. Foi precisamente da inquietude sobre
como se comunicar com o público que nasceu a Antofágica, em 2019, criada por
sócios que trabalharam durante anos em editoras como Intrínseca e Aleph.
“Antes, as editoras não precisavam falar com o leitor, mas isso mudou. Queríamos ser menos como um varejista que só vende um produto e mais como uma editora que cria experiências para o leitor”, diz Lameira. Por isso, a editora mantém um grupo com leitores no Telegram, e alguns títulos vêm com QR codes que levam a aulas online sobre aquela obra. “É essa relação com o leitor que pauta as decisões editoriais. O fato de a quarta capa de cada livro ser apenas uma frase, por exemplo, foi pensado para o formato dos stories do Instagram. A escolha dos títulos passa por isso, toda a estética foi pensada para a dinâmica de redes”, acrescenta Lameira. Curiosamente, os livros da Antofágica podem ser comprados apenas na Amazon ou em livrarias independentes.
Na livraria Simples, localizada em uma charmosa casinha azul no centro de São Paulo, a presença nas redes sociais tem sido fundamental para manter o funcionamento da loja. “Tivemos que migrar para a venda online por conta da pandemia. Até abril do ano passado, sequer tínhamos um site institucional”, conta Beto Ribeiro, dono da Simples. Agora, à medida que vai registrando as entradas de livros no catálogo da livraria, ele mesmo já vi postando fotos e vídeos das obras para gerar interação com os leitores. “Essa comunicação é um diferencial, mas é um trabalho quase artesanal e que demanda muito tempo e dedicação. Às vezes, você troca mais de dez mensagens com um cliente para fechar a venda de um livro de 15 reais”, explica. Ribeiro acrescenta ainda que o que tem “segurado o rojão” da crise —para ele e outras fontes ouvidas na reportagem— é o espírito de comunidade em torno das livraria de rua, a fidelização dos clientes. “É só com os leitores que podemos contar”, conclui.
Fonte:El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário