Gazeta da Torre
Lenne Ferreira, jornalista e produtora cultural |
Como falar de abolição no país que manda matar uma
vereadora negra em pleno exercício de um mandato em prol de políticas públicas
para o povo preto? Como falar de abolição no país onde um adolescente é
assassinado em casa por policiais militares durante uma operação? Como falar em
abolição em um Brasil cuja população negra ocupa o primeiro lugar dos piores
índices? Como falar em abolição 133 anos após a assinatura de uma lei que, além
de assinada tardiamente, não representou dignidade para negros (as) e ainda
tenta colocar nas mãos de uma personagem branca o que só foi possível graças ao
suor e sangue de homens e mulheres sequestrados de África.
Os minguados capítulos dos livros de História não dão
conta de toda a articulação protagonizada por lideranças negras até o momento
em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888. Aqualtune, Zumbi dos
Palmares, Acotirene, Ganga Zumba, Maria Firmina e tantos outros (as)
personagens que precisam ser difundidos como centrais na luta pela abolição.
Lida por muitos como redentora, a segunda filha de Dom Pedro 2º, Isabel, na
verdade, atendeu à pressão de países como a Inglaterra, que, no auge da
Revolução Industrial, já não viam sentido em manter o regime escravocrata.
É preciso pontuar, inclusive que, o “fim” da escravidão e
do tráfico de africanos escravizados através do oceano atlântico colocou o
Brasil em situação de confronto com a Inglaterra em vários momentos durante o
século XIX. Uma dessas tensões foi intensificada com a promulgação, em 1845, no
Parlamento inglês, do Bill Aberdeen, ou em português, a Lei Aberdeen, que
estipulava que qualquer navio negreiro, de qualquer nacionalidade, poderia ser apressado
por navios da marinha britânica no Atlântico e mesmo em águas brasileiras. Seus
tripulantes seriam presos e julgados por um tribunal inglês. No Brasil, a lei
foi repudiada por prejudicava um dos pilares da economia nacional, o tráfico de
escravos.
Mas, voltando à princesa Isabel, que foi declarada
herdeira do trono brasileiro aos 11 meses de idade, é preciso negritar que a
condição de monárquica a colocava num lugar de beneficiada pelo regime
escravocrata ao longo de praticamente toda sua vida. Será que ela abriu mão de
serviçais para ajudar a fechar o espartilho? Segundo o historiador Henrique
Silva de Oliveira, a tentativa de destacar a atuação da Princesa no processo
abolicionista já ensaiava a intenção de preparar terreno para que ela assumisse
o trono imperial.
O especialista explica que o que sustentou o governo
imperial no Brasil foi justamente a exploração dos negros e negras. Uma prova
disso é que, no ano seguinte à abolição, o império foi desmontado dando luz à
República, regime que também não proporcionou dignidade para a população negra.
“O fim da condição jurídica da escravidão não garantiu
liberdade para a população negra. Pelo contrário, o regime republicano passou a
promover a perseguição por meio de leis como a Lei da Vadiagem, criada para
criminalizar os negros. Ao invés de garantir igualdade de direitos individuais
e irrestritos, ele vai fazer de tudo para preservar desigualdades”, destaca o
historiador.
Com a ausência do senhor “proprietário” do escravo, era
preciso encontrar formas de fazer o controle social dos ex-escravizados. “O
primeiro decreto do governo provisório republicano foi determinar que os
estados poderiam ampliar suas polícias sem precisar passar pelas assembleias
legislativas. É nesse momento que a polícia é reformulada”, pontua Henrique.
No dia seguinte ao 13 de maio, negros e negras, a maioria
analfabetos e sem posse de terra, precisaram encontrar formas de sobreviver. O
eterno dia 14 é vivenciado até hoje pela população negra brasileira. São os
corpos negros que ocupam o topo das estatísticas dos piores índices: maioria na
população carcerária; maioria nos números de homicídios; maioria quando o
assunto é desemprego. Esta população é a que, ainda hoje, sofre com a falta de
políticas de reparação que não foram colocadas em prática no momento em que a
Lei Áurea foi sancionada.
“Precisamos pensar que a igualdade não se dá no campo
formal. A legislação que diz que somos iguais não é capaz de tocar na vida real
das pessoas. A gente pode até não desprezar o 13 de maio, mas ele não pode ter
o sentido que os brancos querem dar, de que a Lei Áurea foi um presente ou uma
concessão”, reforça o historiador.
Avanços precisam ser reconhecidos em diversos campos, mas
mesmo após 133 anos da abolição, eles não serviram para garantir o direito
básico à vida para quem luta por ela. A morte de Marielle Franco, uma pós
abolicionista do nosso tempo, é um exemplo do quanto estamos distantes de um
ideal de liberdade. O assassinato do menino João Pedro, de 14 anos, baleado
numa operação policial no Rio de Janeiro, ou a morte do menino Miguel, no
Recife, que caiu de um prédio por negligência da patroa branca da mãe, que não
dispensou a empregada negra nem quando ela contraiu Covid-19, são triste
exemplos do quanto a abolição segue inconclusa e comprova: “13 de maio não é
dia de negro”.
(O título do texto é uma citação da música “Quilombo Axé”
(Dia de Negro), do grupo pernambucano Afoxé Oya Alaxé e de autoria de Zumbi
Bahia.
Texto da jornalista
e produtora cultural Lenne Ferreira – ALMA PRETA
ALMA PRETA - O Alma Preta é um portal de notícias fundado em 27 de Abril de 2015, em Bauru, interior de São Paulo, com a proposta de cobrir a realidade brasileira a partir das perspectivas de raça, classe, gênero e sexualidade. O portal também tem o objetivo de construir uma identidade negra positiva.
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