Gazeta da Torre
Dois dias antes de morrer, na tarde de 26 de julho de
1938, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, fez uma lista de compras para a
temporada que pretendia passar no acampamento na grota de Angico, a cerca de
mil metros da margem sergipana do Rio São Francisco. No lado oposto, já no estado
de Alagoas, funcionava uma das mais sortidas feiras da região, na linda cidade
de Piranhas — localidade que, em 1859, recebeu a visita do então imperador Dom
Pedro II.
Entre os itens que constavam da lista havia arroz,
feijão, carne seca, farinha, sal, rapadura, frutas e muita, muita bebida. Coube
a um jovem de sua confiança, o coiteiro Pedro de Cândido — que, mais tarde,
mediante tortura, denunciaria a localização do grupo para a polícia —
providenciar o abastecimento.
Como a lista era comprida, serviu-se de um jegue tão logo
chegou a Piranhas. Equipou-o com dois cestos presos à cangalha e lotou-os de
mantimentos. Horas depois, Lampião recebia, no conforto de sua barraca, os
produtos que compunham a dieta básica dos cangaceiros.
Em épocas de deslocamentos, cangaceiros alimentavam-se,
basicamente, de carne de sol e farinha. Conservada no sal, a carne resistia às
altas temperaturas. Os produtos eram adquiridos nas feiras das pequenas
cidades, ocasiões em que Lampião, segundo consta, pagava os preços cobrados
pelos comerciantes, sem pechinchar — o choro por um desconto, prática habitual
nestes comércios ao ar livre, era evitado por Virgulino.
As compras ficavam guardadas nos bornais, as bolsas
típicas dos bandoleiros que até hoje inspiram estilistas. A água, mais difícil
de transportar em grandes quantidades, era extraída das raízes do umbuzeiro,
típica da caatinga, tida por alguns sertanejos como uma espécie de árvore sagrada.
Nos acampamentos, quando havia a oportunidade, abatia-se
animais para o consumo de carne fresca. Bodes estavam entre os preferidos dos
integrantes do grupo. Na véspera da chacina de Angico, na qual seriam mortos
Lampião, sua companheira Maria Bonita e outros nove cangaceiros, o almoço
consistiu de dois bodes assados — e enormes quantidades de cachaça.
Cabra macho na cozinha
Entre os cangaceiros, a culinária não era uma tarefa tida
como essencialmente feminina — aqueles eram os anos 30 (Lampião morreu na tarde
de 26 de julho de 1938), uma época em que poucos homens frequentavam a cozinha.
Mas Lampião e seus súditos estavam habituados a preparar suas próprias
refeições desde quando tocavam o terror pelo sertão sozinhos, sem a companhia
das mulheres.
De forma geral, após a entrada das cangaceiras no bando,
cabia a eles caçar os bichos e, a elas, lavar e temperar. Os cabras reassumiam
o serviço no momento de levar as carnes ao fogo.
Para não chamar a atenção das forças volantes — os
comandos de caça aos cangaceiros — o preferível era cozinhar à luz do dia. Uma
fogueira em meio à escuridão poderia denunciar a localização do grupo.
Os bandoleiros também agiam assim porque, após a
refeição, ainda haviam de lidar com um trabalho ingrato — abrir profundos
buracos no chão para enterrar vísceras, ossos e pele dos animais abatidos. O
objetivo era não atrair urubus — o voo das aves agourentas também poderia
entregar o ponto exato do esconderijo.
Passarinho ao vinho
Havia ocasiões em que alguns cangaceiros cuidavam de todo
o processo. Quando o pouso era confortável — por exemplo, nas fazendas dos
coronéis aliados dos cabras — Lampião fazia as vezes de um chef de cuisine.
Quem experimentou assegura que o passarinho ao vinho, uma
de suas especialidades, era iguaria de não deixar nada a dever aos melhores
chefs da Europa — de onde vinham, inclusive, alguns dos itens mais apreciados
pelo cangaceiro, como uísques e perfumes a ele ofertados por políticos e
coronéis do nordeste.
*Adriana
Negreiros - jornalista freelancer, ex-editora das revistas Playboy e Claudia;
*A fotografia que ilustra é, originalmente, em preto e branco. Ela ganhou cores pelas mãos do artista e geólogo Rubens Antônio, de Salvador, por meio da colorização digital;
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