Gazeta da Torre
Relatórios apontam lentidão em cumprimento de grande
parte das metas do Plano Nacional de Educação, que prevê objetivos a serem
alcançados até 2024 em temas como permanência dos jovens nas escolas, adequação
idade-série, nível de aprendizagem e financiamento do ensino público.
Alguns dias antes da posse do novo ministro da Educação,
Milton Ribeiro, em 16 de julho, um relatório oficial voltou a jogar luz sobre
os desafios das escolas brasileiras para atingir patamares adequados de
inclusão e de ensino de qualidade — desde um significativo déficit de vagas na
educação infantil até a dificuldade em manter os adolescentes na escola e com
alto nível de aprendizagem.
Esses desafios constam do Plano Nacional de Educação
(PNE), aprovado em lei em 2014 pelo Congresso e que estabelece um conjunto de
20 metas e submetas para o ensino no Brasil, a serem cumpridas entre 2015 e
2024. Essas metas abrangem, por exemplo, a universalização do ensino, a
erradicação do analfabetismo e valorização da carreira de professores.
As metas são monitoradas por 57 indicadores. Deles,
apenas 7 (ou 13,4%) foram cumpridos até agora, segundo o relatório do governo.
Em 41 indicadores (ou 73% do total), passou-se da metade do patamar previsto
pela meta (veja mais detalhes abaixo), segundo um relatório de monitoramento
divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira
(Inep), autarquia ligada ao Ministério da Educação, no início de julho.
Segundo o Inep, o "nível médio de alcance das metas
está em 76,22%".
"Reconhecer esses números é rejeitar a compreensão
simplista que afirma que 'tudo vai mal na educação brasileira'; é reconhecer o
esforço coletivo dos profissionais da educação que, mesmo que enfrentem
adversidades, apostam na escola como o local da esperança e da transformação
nacional", diz o relatório do Inep, destacando, porém, que "os
resultados estão bastante aquém daqueles que desejamos para a educação
nacional".
Para a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação,
entidade que também monitora em relatório o avanço do PNE, os números até agora
apontam para um "descumprimento quase total da lei".
"No ritmo que se tem avançado, cerca de 85% dos
dispositivos (indicadores) das metas do PNE não serão cumpridos até o prazo de
2024", critica a organização em nota, em junho, acrescentando que, em alguns
pontos, há estagnação ou mesmo retrocesso.
Embora o ritmo lento venha desde antes do governo atual e
alguns problemas sejam de longa data, críticos afirmam que, sob Jair Bolsonaro
— que tem em Milton Ribeiro seu quarto ministro da Educação em um ano e meio de
mandato —, o ministério vive um cenário de paralisia, com poucos projetos
voltados aos problemas-chave do ensino e com baixa capacidade de execução.
Em entrevista coletiva sobre o relatório, o presidente do
Inep, Alexandre Lopes, disse que o cumprimento das metas do PNE exigirá também
o esforço de Estados, municípios e universidades, e citou a crise financeira do
país. "O MEC (Ministério da Educação) se enfraquece um pouco diante da
questão fiscal que o Brasil vive", afirmou.
A BBC News Brasil destaca, a seguir, alguns dos
principais gargalos apontados pelo relatório do governo, que desafiam as
políticas públicas do país:
Mais crianças nas creches e pré-escolas
A fila de espera por creches nas cidades do país ilustram
um desafio nacional: ainda é preciso incluir 1,5 milhão de crianças de zero a
três anos em creches até 2024. É o que prevê a Meta 1 do Plano Nacional de
Educação.
Em 2018, segundo o relatório do Inep, o Brasil conseguiu
ofertar vagas para 35,7% das crianças nessa faixa etária (ou 3,8 milhões), e o
objetivo é chegar até 50%.
Esse acesso também é bastante desigual entre as crianças
mais vulneráveis e as que vivem em famílias com boas condições financeiras:
"A diferença no acesso (a creches) entre as crianças 20% mais ricas e as
20% mais pobres é de 25 pontos percentuais", explica à BBC News Brasil
Anna Helena Altenfelder, diretora-executiva do Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
A meta 1 do PNE também previa que todas as crianças de 4
e 5 anos estivessem matriculadas na pré-escola até 2016 — o que não aconteceu
até hoje. Ainda faltam vagas para estimadas 330 mil crianças, segundo dados de
2018.
"Também não podemos perder de vista a necessidade de
garantir a qualidade do ensino para todas as crianças da educação
infantil", aponta o Observatório do PNE, feito pelo movimento Todos Pela
Educação. Alguns especialistas apontam que, para crianças pequenas, uma creche
de má qualidade (sem estímulos e cuidados adequados) pode ser ainda pior para o
desenvolvimento social e cerebral do que não estar na creche.
Em contrapartida, oferecer mais vagas em instituições
públicas de qualidade pode ajudar as crianças pequenas a desenvolver
habilidades e funções cognitivas úteis ao longo de toda a vida.
São, também, consideradas um passo importante para
permitir o acesso de mães ao mercado de trabalho.
A persistência do analfabetismo — absoluto e funcional
O Brasil conseguiu praticamente alcançar, em 2019, uma
meta que estava prevista para quatro anos antes: alfabetizar 93,5% de sua
população com mais de 15 anos. Mas, na prática, ainda faltam 11 milhões de
brasileiros a serem alfabetizados até 2024 — um contingente equivalente à toda
a população do Estado do Paraná.
E se o analfabetismo absoluto persiste, o analfabetismo
funcional é ainda mais abrangente.
Ser analfabeto funcional significa ser capaz de ler e
escrever, mas ter dificuldade em entender e interpretar textos, em identificar
ironias ou sutilezas nesses textos e em fazer operações matemáticas simples em
situações cotidianas.
A Meta 9 do PNE é de reduzir o índice de analfabetismo
funcional pela metade nos próximos quatro anos. Como base, o Inep usa os dados de
uma pesquisa do IBGE, que apontava 18,5% de analfabetismo funcional na
população em 2012. O objetivo, portanto, é baixar esse índice para 9,2% até
2024.
Mas alguns outros indicadores apontam que esse problema
pode ser ainda mais amplo: segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional
(Inaf) de 2018, praticamente 30% da população entre 15 e 64 anos tinha essa
dificuldade em leitura e compreensão.
No que diz respeito às crianças pequenas, a meta é
garantir até 2024 que todas estejam alfabetizadas, no máximo, até o final da
terceira série do ensino fundamental, por volta dos 8 anos de idade.
Os dados mais recentes da Avaliação Nacional de
Alfabetização, de 2016, apontam que apenas 45,3% das crianças nessa etapa
tinham aprendizagem adequada em leitura, 66,1% em escrita e 45,5% em
matemática.
O Ministério da Educação, sob o governo Bolsonaro, lançou
no início do ano o programa Tempo de Aprender, que prevê ações de incentivo à
alfabetização para as redes estaduais e municipais que aderirem. O MEC afirma
que 3.231 municípios e Estados aderiram ao programa até maio.
Mas Altenfelder, do Cenpec, afirma que o programa não
pode ser considerado uma política pública. "É um programa com algumas
diretrizes feito em total falta de diálogo com os municípios e com a produção
acadêmica nacional (sobre os processos de alfabetização)", diz.
Muitos jovens fora da escola ou atrasados no ensino
A cada 100 crianças brasileiras que entram no ensino
fundamental, apenas 65 concluem os estudos, explica Ricardo Henriques,
superintendente-executivo do Instituto Unibanco. "Os que terminam já são
sobreviventes", diz ele.
Ou seja, ao longo dos 12 anos da educação básica, muitos
alunos ficam pelo caminho — ou porque não conseguem acompanhar as aulas, porque
perdem o interesse na escola ou porque precisam trabalhar, por exemplo.
O custo anual da evasão escolar é de R$ 214 bilhões, ou
3% do PIB (Produto Interno Bruto), por conta do impacto do abandono nas
possibilidades de emprego, renda e retorno para a sociedade das pessoas que não
concluem a educação básica, segundo cálculos do economista Ricardo Paes de
Barros.
Especialistas temem que esse quadro de evasão escolar se
agrave com a atual pandemia.
Algumas metas do PNE se referem justamente a manter os
jovens por mais tempo na escola e para concluir as etapas da educação na idade
certa, por exemplo:
- Garantir que, até 2024, 95% dos alunos concluam o
ensino fundamental até os 16 anos (por enquanto, esse índice é de 75,8%,
segundo dados de 2018).
- Matricular todos os jovens de 15 a 17 anos na escola
até 2016 (meta que já foi descumprida, uma vez que, segundo os dados mais
recentes, 8,5% desses jovens ainda estão fora da escola).
- Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29
anos, para que todos tenham completado 12 anos de educação formal até 2024. A
meta prevê também reduzir as diferenças entre população rural e urbana, entre
negros e não negros, e aumentar o tempo de escolaridade no Nordeste do Brasil
(que tem os menores índices do país).
Até 2015, porém, segundo o Observatório do PNE, a
escolaridade média da população do campo era de 8,3 anos; a da população do
Nordeste, de 9,3 anos e a dos negros, 9,5 anos (contra 10,8 anos da média da população
branca).
- Garantir que, até os próximos quatro anos, 85% dos
jovens estejam no ensino médio, ou seja, nas séries corretas para a sua idade.
Ainda estamos longe disso: apenas 68,7% dos adolescentes dessa idade cursavam o
ensino médio até 2018.
O desafio, segundo o Observatório do PNE, é "tornar
o ensino médio mais atrativo, com a diversificação do currículo, (...)
introduzir uma melhor qualidade e equidade e reduzir as taxas de evasão na
etapa".
Também é um desafio colocar em prática a Base Nacional
Comum Curricular do ensino médio — um conjunto de diretrizes para essa etapa
que ainda não se traduziu em ações práticas nas escolas. Nesta semana, São
Paulo anunciou ser o primeiro Estado ter formulado um currículo para o ensino
médio tendo a base como referência, para começar a ser implementado em 2021.
No geral, diz o relatório do Inep, "as questões mais
preocupantes em relação à educação brasileira continuam sendo o baixo nível de
aprendizado dos alunos, as grandes desigualdades e a trajetória escolar
irregular, que ainda atinge porção significativa dos estudantes das escolas
públicas brasileiras".
Mais dinheiro para a educação pública
A meta final do PNE determinava aumentar o investimento
público na educação, para alcançar 7% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro
até 2019 e 10% até 2024.
"No entanto, os resultados observados de relativa
estagnação dos gastos em torno de 5% e 5,5% do PIB, com indicativo de pequena
queda, apontam grande desafio para o atingimento das metas intermediária e
final", diz o relatório do governo.
Neste mês, a Câmara dos Deputados aprovou a proposta de
emenda constitucional do novo Fundeb, fundo que financia a educação básica. O
texto aprovado prevê mudanças nos aportes públicos à educação que, segundo
especialistas, podem aumentar o montante investido nas escolas e garantir que
mais municípios pobres recebam recursos.
A proposta, agora, tramita no Senado.
O Plano Nacional de Educação tem muitas outras metas. Por
exemplo, aumentar a oferta de escolas em tempo integral; melhorar a formação e
equiparar o salário médio de professores da rede pública aos profissionais com
o mesmo nível de escolaridade (em 2015, os docentes ganhavam apenas 52,5% do
salário médio das pessoas com escolaridade semelhante); triplicar as matrículas
na educação profissional e aumentá-las no ensino superior; entre outras.
Muitas delas ainda permanecem distantes de seu
cumprimento, e muitos especialistas da educação pedem mais protagonismo do MEC
no esforço para alcançá-las.
"Neste ano e meio (de governo Bolsonaro)
infelizmente não vimos nada (em iniciativas) de implementação ou acompanhamento
das metas do PNE", diz Altenfender, do Cenpec.
Onde o Brasil avançou
Alguns pontos em que o Brasil avançou, em contrapartida,
são o aumento da nota média das crianças da 1ª à 5ª série (a nota média de 5,7,
almejada para 2019, foi ultrapassada ainda em 2017), embora preocupe o fato de
que, depois da quinta série, o desempenho dos alunos comece a cair.
No ensino superior, o Brasil bateu a meta de ter mais de
75% dos professores de educação superior com cursos de mestrado ou doutorado e
também já tem, desde 2017, mais de 60 mil pessoas com títulos de mestrado
(outra meta do PNE).
Outro avanço é que 98% das crianças brasileiras de 6 a 14
anos estão matriculadas no ensino fundamental — perto de universalizar o
acesso, esperado para 2024. O problema é que esses 2% restantes fora da escola
"são, na maioria, famílias mais pobres, negras, indígenas e com
deficiência", exigindo políticas públicas específicas para garantir que
elas de fato consigam estudar, diz o Observatório do PNE.
Para Anna Helena Altenfelder, apesar dos enormes desafios
restantes, é um erro achar o Plano Nacional de Educação
"inexequível".
"O plano não é uma utopia", diz ela. "Ele
tem uma força grande pela forma como foi construído (aprovado pelo
Legislativo), de modo participativo, e por ser um parâmetro de referência para
secretários de Educação estaduais e municipais. Ele é a síntese das aspirações
do Brasil para a educação."
Fonte: BBC News Brasil
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