Gazeta da Torre
Músico e filhos fizeram 'live' com seu maiores sucessos,
surpresas delicadas no repertório e política. Houve críticas a Bolsonaro e
apelo pelos povos indígenas e pelo Balé Folclórico da Bahia.
Foram quase cinco meses de quarentena assistindo a um
reality show com fragmentos do cotidiano de Caetano Veloso, filmado por uma
insistente Paula Lavigne. A companheira e empresária do artista cobrou tanto
por um show aos fãs que acabou popularizando nas redes sociais a hashtag
#LiveALenda. Depois dos flashes de genialidade sobre os mistérios da kombucha,
seu gosto por paçoca, suas críticas sobre como pessoas escrevem errado palavras
relacionadas a sexo, suas leituras de Heidegger e Nietzsche, Caetano finalmente
aceitou fazer a tão esperada live. O pijama ao estilo João Gilberto ficou de
lado, mas o sapato dado de presente por Preta Gil estava lá. Estava também toda
a potência de quem, aos exatos 78 anos na sexta-feira 7 de agosto de 2020,
canta com voz limpa, reflete sobre si e sobre o mundo e tenta reanimar o
Brasil.
Com seus três filhos, Moreno, Zeca e Tom, Caetano cantou
grandes sucessos, alguns catapultados pelas novelas da Globo — que agora também
lhe servia de palco, via streaming. Em Trilhos Urbanos, Reconvexo e Sertão
fomos lembrados que o melhor desse Brasil é a Bahia. O novo baiano Moraes
Moreira finalmente teve a homenagem que merecia. Morto em 13 de abril após
sofrer um infarto, já em plena quarentena, foi lembrado em Coisa Acesa, samba
que compôs com Fausto Nilo.
Teve também a envolvente Tigresa, inspirada na atriz Zezé
Motta, assim como as recordações das dores de cotovelo com Queixa. Zeca cantou
seu recente sucesso, Todo Homem, Tom lançou a sua Talvez e Caetano interpretou
pela primeira vez Pardo, canção composta por ele no ano passado e gravada pela
cantora Céu. Mas também fomos brindados com algumas pérolas sacadas do baú,
como Diamante Verdadeiro, lindamente cantada por Maria Bethânia nos anos 70.
Sucessos como Sampa, Qualquer Coisa, Leãozinho e Desde que o Samba é Samba não
ficaram de fora.
E teve chamado à reação. Caetano recordou das centenas de
mortes de indígenas durante a pandemia e cantou que “um índio descerá de uma
estrela colorida, brilhante”. Fez questão de pedir apoio à mobilização da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil no domingo, assim como para a
campanha de arrecadação do Balé Folclórico da Bahia. O protesto de quem se vê
perdido diante de tanto sofrimento e incerteza política ganhou forma com
“enquanto os homens exercem seus podres poderes / morrer e matar de fome, de
raiva e de sede /são tantas vezes gestos naturais”. Caetano também nos fez
lembrar, em Nine Out of Ten, que aqui estamos, vivos.
Em certo momento, fez uma crítica direta ao Governo
Bolsonaro. “O negócio é duro mesmo, o Brasil não tem um ministro da Saúde que
tenha chegado como tal. E o Ministério do Meio Ambiente parece ser contra o
meio ambiente”, afirmou Caetano. “São situações muito graves que nós, os
brasileiros, estamos enfrentando. Mas a gente vai? A gente vai, o Brasil é o
Brasil”, completou. Soou como um chamado otimista, à resiliência, tingido de
melancolia.
Foi o que fez Nú com minha música ganhar novas camadas de
sentido: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor / Vertigem
visionária que não carece de seguidor / Nu com a minha música, afora isso
somente amor / Vislumbro certas coisas de onde estou”. A live evocou a mesma fé
convicta e corpórea que emerge de sua escrita em Verdade Tropical. “É que penso
e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil,
por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas —e simplesmente não
concluo que somos um mero fracasso fatal”, escreveu Caetano no capítulo em que
narra sua experiência no Carnaval de Salvador em 1972, auge da ditadura militar,
depois de dois anos de exílio em Londres.
Na mesma sexta-feira em que ficamos sabendo da história
de Matheus, um entregador de aplicativo negro que foi humilhado pelo cliente
branco por causa de sua classe social e cor da pele, o enésimo caso de racismo
sem pudor neste país, Caetano e seus filhos foram, em uma hora e meia de live,
da celebração ao povo negro em Milagres do Povo ao samba de roda How Beautiful
Could a Being Be. Tudo para lembrar que ainda existe um Brasil que vale a pena,
e que está longe de ser um clichê. Como disse certa vez o escritor português
Valter Hugo Mãe sobre Caetano e Chico Buarque, “em qualquer cabeça sã do mundo
eles representam o Deus possível”.
*Fonte: El País
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