União deve 14 milhões de reais à mantenedora da
instituição, cujo acervo conta com mais de 250.000 filmes da história do Brasil
e é a quinta maior cinemateca em restauro do mundo.
O arquivo completo de Glauber Rocha, maior expoente do
Cinema Novo. As películas do cinejornal futebolístico Canal 100, feitas entre
1958 e 1986. As gravações de Marechal Rondon sobre as Forças Expedicionárias
Brasileiras. O original de O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que fez
sucesso em Cannes e é considerado o primeiro filme brasileiro com
reconhecimento internacional. Esses são alguns dos tesouros guardados no maior
acervo de imagens em movimento da América do Sul, a Cinemateca Brasileira, em
São Paulo, e que estão em risco de desaparecer por falta de financiamento do
Governo Federal. A Associação Roquette Pinto, mantenedora da Cinemateca desde
2018, afirma que o Executivo não repassou qualquer verba a ela neste ano e
acusa o Governo de Jair Bolsonaro de uma dívida de 14 milhões de reais. No
último capítulo dessa novela que se arrasta há meses, o Ministério Público
Federal (MPF) ajuizou, em 15 de julho, uma ação civil contra a União,
considerando que Executivo é responsável pelo “estrangulamento financeiro e
abandono administrativo” do local. O resultado de tal ação deve sair até o
final desta semana.
Criada na década de 1940 e conhecida como a quinta maior
cinemateca em restauro do mundo, a instituição abriga 250.000 rolos de filme,
sendo 44.000 títulos de curta, média e longa-metragens, além de programas de TV
e registros de jogos de futebol. O custo de manutenção é de 1,2 milhão por mês.
Há quatro meses, os 150 funcionários não recebem salários e entraram em greve,
incluindo a brigada de incêndio, fazendo pairar sobre o local o fantasma da
tragédia do Museu Nacional, que pegou fogo em 2 de setembro de 2018. Os rolos
de películas em nitrato de celulose, que correspondem aos filmes produzidos até
os anos 1950, são altamente inflamáveis, já que essa substância tem a
propriedade de entrar em combustão espontânea, ou seja, a capacidade de
incendiar-se apenas com calor. Por isso, algumas paredes da instituição têm até
dois metros de espessura e algumas salas contam com um sistema de refrigeração
específico.
Apesar dos cuidados, a Cinemateca já enfrentou quatro
incêndios. O mais recente, em fevereiro de 2016, destruiu definitivamente 270
títulos e outras 461 obras que tinham cópia de segurança. Em fevereiro deste
ano, uma enchente no depósito da instituição danificou 113.000 cópias de DVDs.
“Não existe uma consciência política ou social do que podemos perder, da
importância cultural da documentação de uma época. As épocas não são
documentadas através do PIB, através da política econômica, mas sim com a arte e
a cultura”, afirma ao EL PAÍS o ator Carlos Vereza, que denunciou a situação da
Cinemateca nas redes sociais.
Vereza, que foi um dos poucos apoiadores de Jair
Bolsonaro na classe artística —o ator rompeu com o presidente em abril, após a
demissão de Henrique Mandetta do Ministério da Saúde—, acusa o ex-ministro da
Educação Abraham Weintraub de ter começado o “desmonte” da instituição. Em
dezembro, Weintraub encerrou o contrato da Associação de Comunicação Educativa
Roquette Pinto (Acerp) para a realização da TV Escola, cujo orçamento de 400
milhões de reais ao longo de cinco anos subsidia a Cinemateca. Vereza, que
apresentava o programa Plano Sequência no canal público, foi chamado para uma
reunião. “Ele deixou claro que ele queria levar meu programa para a EBC [a
estatal Empresa Brasil de Comunicação] e esquecer a TV Escola. Eu disse que de
jeito nenhum. Mas ele acabou com a TV Escola e, em consequência, está acabando
com a Cinemateca também”, lamenta o ator.
Com o fim do canal público educativo, a situação virou um
imbróglio jurídico, já que o acordo original com a Cinemateca vai até março de
2021 e a Roquette Pinto continuou a manter a instituição com recursos próprios.
À dívida da União, de aproximadamente 14 milhões de reais, somam-se ainda
pendências anteriores: em 2019, o Governo só pagou sete dos 13 milhões de reais
previstos. “É uma prova de que não existe política cultural neste Governo. Pelo
contrário, existe um projeto frio e consciente de acabar com o pensamento, a
cultura e a arte no país”, afirma Vereza.
Além do bolso da Fundação Roquette Pinto, a Cinemateca
tem contado com ajuda financeira da Prefeitura de São Paulo, que, através do
SPCine (entidade municipal de cinema e audiovisual) e da Câmara de Vereadores,
têm pago uma equipe de segurança no local, além de algumas contas atrasadas.
“Eu expus ao prefeito Bruno Covas a ideia de pedir ao Governo Federal que o
município, através de um conselho administrativo com artistas e técnicos,
gerisse a Cinemateca. Dessa forma, poderíamos solicitar uma emenda parlamentar
de um milhão de reais e destiná-lo à instituição”, diz o vereador Xexéu Tripoli
(PSDB). Covas fez a solicitação formal ao Ministério do Turismo, responsável
pela Secretaria Especial de Cultura, mas não obteve resposta.
Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, e Mário
Frias, secretário da pasta cultural, visitaram a Cinemateca no dia 23 de junho
e publicaram, em um vídeo no Instagram, o compromisso de “resolver o impasse”.
Frias substituiu a atriz Regina Duarte na Secretaria de Cultura, para quem
Bolsonaro prometeu uma posição de chefia na Cinemateca. A vaga, que não existe,
virou mais uma das dúvidas em torno da instituição. Em outro vídeo, em 15 de
julho, Frias e o ministro do Turismo afirmam que técnicos do Governo foram
impedidos por funcionários da Cinemateca de entrar no local e negam a
responsabilidade de assumir a “dívida de um contrato que não está vigente há
mais de seis meses”.
O Ministério do Turismo afirma ainda que, desde a
rescisão contratual do Ministério da Educação com a Roquette Pinto, o Governo
não tem acesso aos dados que permitam tomar as decisões relativas à manutenção
do patrimônio público, como custos de água, energia, brigadistas e segurança,
entre outros. E, por isso, não fez repasses de verba à instituição neste período.
A Fundação Roquette Pinto garante, no entanto, que já enviou 1,5 terabyte de
informação ao Executivo. Marcelo Álvaro Antônio e Mário Frias chegaram a
especular a mudança da Cinemateca para Brasília e que o Governo passasse a
administrá-la, algo que seria ilegal. Isso porque o termo de doação em 1984 do
acervo cedido à União —lavrado em escritura pública e ao qual o EL PAÍS teve
acesso— pela sociedade Amigos da Cinemateca determina que a instituição deve
localizar-se em São Paulo e impede o Governo de empregar funcionários públicos
ou assessores de confiança na mesma. O documento, assinado pela União durante o
Governo militar de João Figueiredo, visa a proteção do acervo e a memória
audiovisual do país de ideologias políticas.
“Na Cinemateca não está só a história do cinema, mas uma
parte importante da história do Brasil. Lá está a Marcha da Família, de 1964, a
revelação do cineasta Marechal Rondon, que filmava e revelava na selva, fez o
primeiro nu cinematográfico de um indígena brasileiro... É um tesouro que não
dá para simplesmente transferir para outro lugar. Não é qualquer funcionário
que vai saber manusear o material”, argumenta Carlos Vereza.
O futuro da instituição parece estar, de fato, nas mãos do MPF, cuja ação pede, em caráter de urgência, a renovação de contrato com a Roquette Pinto até o fim de 2020 e dá 60 dias para a reestruturação, manutenção e empoderamento do Conselho Consultivo da Cinemateca, incluindo a ordem de que não sejam demitidos ou dispensados funcionários. “[Os documentos apresentados demonstram] a necessidade de se manter mobilizado o corpo técnico de funcionários especializados, com inigualável expertise na área cinematográfica, cuja desmobilização (por mera dispensa ou ausência reiterada de pagamento) causará irreparável prejuízo imaterial à União (que demorou anos, décadas, para formar ali um polo reprodutor de tal conhecimento especializado)”, diz o documento. “Enquanto esperamos, o que nos resta é fazer pressão política, popular e cultural para que eles resolvam a situação”, diz o vereador Tripoli.
Jornal El
País, Cultura
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