Com um valor mínimo
garantido, três bilhões de pessoas na pobreza no mundo não seriam obrigadas a
sair de casa todo dia para ganhar o pão, e assim o vírus deixaria de se
espalhar.
Centenas de milhões de
pessoas enfrentam diariamente o dilema de se confinar para não contrair o novo
coronavírus, freando assim o avanço da pandemia, ou sair para trabalhar e
continuar comendo. A maioria —pobres em países pobres, trabalhadores informais
que vivem um dia de cada vez e não têm uma rede de apoio se sua renda sumir—
opta pelo segundo. Assim, é impossível dobrar a curva de contágios, como se
conseguiu nas economias avançadas confinando a população, e o SARS-CoV2
continua sua expansão incontrolável. Essa é a conclusão de um estudo do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que propõe que os
Governos das nações em desenvolvimento garantam uma renda básica temporária,
enquanto a pandemia durar, às pessoas em situação de pobreza ou em sério risco
de cair nela. E acabar assim com o dilema entre ter covid-19 e passar fome.
Concretamente, o
relatório Renda Básica Temporária: Proteção de Pessoas Pobres e Vulneráveis em
Países em Desenvolvimento, publicado nesta quinta-feira, propõe que 132 países
de renda baixa e média garantam um pagamento básico por um tempo limitado para quase
três bilhões de pessoas, 44% da população global. “Isto não é um apelo por
doações, não é uma ajuda do Fundo de Emergência da ONU para as nações mais
pobres, e sim uma proposta para que os Governos desses países examinem suas
opções para confrontar a pandemia”, esclarece Achim Steiner, administrador do
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em uma entrevista por
teleconferência.
A expansão do SARS-CoV2 se acelerou nas últimas semanas, sobretudo nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes, onde as taxas de trabalho informal, sem subsídios de desemprego ou outras ajudas públicas, são elevadas. “Necessitamos de soluções incomuns, temos que pensar de forma diferente, porque o maior desafio que enfrentamos neste momento é que, na ausência de tratamento e de vacinas, esta pandemia continuará se propagando”, comenta Steiner. “O problema é que, ao tratar de contê-la, provocamos um impacto no sustento econômico e social das pessoas. E claramente, e de forma particular nos países em desenvolvimento, onde não há uma rede de segurança social, onde entre 70% e 80% das pessoas ganham a vida através do setor informal, um confinamento significa não ter renda. Um apoio básico temporário é uma opção legítima a considerar nas estratégias nacionais”, detalha.
“As previsões feitas há dois ou três meses sobre a
pobreza e a perda de empregos e renda estão começando a se cumprir agora”,
advertiu o economista George Gray Molina, chefe de política estratégica do
PNUD, durante um encontro virtual com jornalistas. Segundo seus cálculos, entre
70 e 100 milhões de pessoas poderiam cair na miséria extrema (viver com menos
de 1,90 dólar por dia —cerca de 10 reais) devido à crise econômica desencadeada
pela covid-19. Essa previsão já é um problema real. Por isso, Gray urge que sua
proposta seja ouvida e adotada o quanto antes. Não há tempo a perder. “Chegamos
a mais de 14,5 milhões de casos nesta semana. Foram três meses até alcançar o
primeiro milhão, depois aumentou à razão de um milhão por semana, e
ultimamente, um milhão a cada quatro ou cinco dias”, alerta.
Perante a dúvida de como economias menos adiantadas
poderiam se permitir uma medida como esta, os pesquisadores do PNUD calcularam
seu custo e de onde poderia provir. “É factível”, afirma Steiner. “Os países
têm diferentes limites de pobreza”, observa Gray. A proposta do PNUD é que se
garanta que todos os cidadãos estejam acima desses limites, seja completando
seus exíguos ganhos ou transferindo uma quantia fixa, que calcularam em 5,50
dólares (28,16 reais) por dia, que é a linha de pobreza mais comumente adotada.
No primeiro caso —adaptar a ajuda ao limite nacional de
pobreza—, se a linha de pobreza estiver em 1,90 dólar por dia, seria preciso
garantir uma renda de 3,20 dólares a cada cidadão. Se o limiar for de 3,20
dólares, cada pessoa deveria obter um mínimo de 5,50. E onde se vive na pobreza
mesmo ganhando mais de 5,50 dólares por dia, como na maior parte da América
Latina e Europa, então seria preciso garantir até 13 dólares por dia. Promover
esta medida custaria aproximadamente 200 bilhões de dólares (pouco mais de um
trilhão de reais) por mês. A opção de uma ajuda uniforme de 5,50 dólares por
dia para 2,78 bilhões de pessoas representaria um investimento de 465 bilhões
mensais.
Esses recursos poderiam provir, segundo Gray, de três
fontes. “Não propomos impostos adicionais, porque esta é uma medida temporária,
que durará seis, nove ou 12 meses, até que se encontre uma vacina ou uma cura.
Mas falamos de reutilizar os recursos existentes”, explica. Um deles é a dívida
que os países em desenvolvimento pagam a seus credores. O G20 já concordou com
uma moratória no pagamento da dívida dos 77 países mais pobres do mundo, mas o
secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que essa suspensão seja
estendida a todos os países em desenvolvimento, incluídos os de renda média,
assim como os pequenos Estados insulares.
Se cumprida, essa suspensão da dívida estendida chegaria
a 3,1 trilhões de dólares neste ano, que é o que desembolsariam os países em
desenvolvimento a seus credores em 2020, calcula o PNUD. Uma quantidade que
cobriria total ou parcialmente —dependendo da opção— até o final do ano a renda
básica temporária que o organismo propõe. Outra fonte poderia ser, segundo o
organismo, entregar às pessoas os subsídios hoje destinados aos combustíveis
fósseis. E, finalmente, sugere uma espécie de sistema de autofinanciamento das
ajudas. “A maioria das transferências de dinheiro aos pobres ou vulneráveis vai
para o consumo e têm um efeito multiplicador muito forte em nível local. E
parte do investimento será recuperada mediante impostos diretos ou indiretos
que poderiam por sua vez financiar parte das próprias ajudas”, aponta Gray.
Além do financiamento da medida, há outros desafios, como
o administrativo. Como encontrar e fazer os pagamentos a tantas pessoas, muitas
delas não registradas e fora do sistema? “Vimos muita inovação com ferramentas
digitais nos últimos meses”, diz o especialista. E há a experiência dos países
que já implementaram pacotes de ajudas aos mais necessitados. A maioria é de
países ricos, mas também há nações em desenvolvimento que iniciaram programas
de proteção dos mais vulneráveis, como o Togo. Muitos, entretanto, terão que inventar
suas próprias respostas.
“Claramente, estamos em um território desconhecido. Mas
podemos tirar partido das melhores práticas de muitos países e tratar de
aplicá-las em uma situação excepcional para estabelecer um conjunto
extraordinário de medidas para abordar o que de outra maneira derivaria em uma
situação intratável em muitos países”, adiciona Steiner. “Estamos em uma
situação sem precedentes. Necessitamos respostas sem precedentes. O número de
infecções e mortes continua aumentando exponencialmente. O que fizemos até
agora não é suficiente.”
*Alejandra Agudo/El País
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