Pelo comportamento do artista nos últimos anos de vida,
dá para fazer um exercício de como seria sua atuação como influencer
Um desafio de Facebook fez saltar na tela uma lembrança:
Cazuza tinha saído de cena havia exatos 30 anos. A missão implicava em publicar
capas de dez álbuns importantes, e o último da lista era “O tempo não para”,
gravação ao vivo lançada em 1988. Àquela época, o artista lutava contra uma
doença sem cura, preconceitos medievais e contra a política elitista
estabelecida – o establishment.
Nos últimos anos de vida, sua militância contra a
caretice vigente ganhou contornos de linchamento público típico das atuais
redes sociais. Se estivesse vivo, Cazuza teria 62 anos e, provavelmente, muitos
perfis para divulgar sua obra e ideias. Ele foi no passado e poderia ser hoje
um grande influenciador – ou influencer, no idioma dominante nas redes. E,
certamente, acumularia muitos haters, palavra em inglês utilizada como
eufemismo para definir o comportamento de ódio na internet.
Assumidamente bissexual, Cazuza não se acovardou diante
da fábula da “doença gay”, propagada por hipócritas da época para se referirem
ao vírus da Aids, que acabou tirando a vida do jovem poeta. A malandragem
heterossexual do tipo “não tenho nada com isso” se repetiu recentemente na
disseminação da ideia de um tal “kit gay”, que nunca existiu. Em suas redes
sociais, o artista teria denunciado a mentira em alto e bom som até ser ouvido
por todos. A comunidade LGBTI+, que foi abandonada a própria sorte no Brasil
contemporâneo, teria um aliado importante nesse esclarecimento público.
Há 30 anos, o HIV provocava a morte de milhares de
brasileiros, a maioria por desinformação – ainda não tinham inventado o termo
“fake News”. Ao falar abertamente sobre seu caso, Cazuza salvou vidas na mesma
proporção em que atraiu ataques discriminatórios. Todo cidadão com mais de 50
anos hoje e com vida sexual ativa desde a adolescência deve um pouco de sua
existência a pessoas que se expuseram, como o fez Cazuza.
Por ser uma doença transmitida principalmente por contato
sexual, era um tabu falar sobre ela e uma vergonha muito grande exigir
camisinha no ato – tido como coisa de “bicha aidética”, xingamento comum à
época, lamentavelmente. Cazuza escancarou o tema nos palcos e nos discos sem
pudores, disseminou informação e realidade. Entender para prevenir foi a máxima
que ele aplicou ao vírus e que, se tivesse sobrevivido, teria utilizado agora
para desmascarar a “gripezinha” em seus hipotéticos perfis sociais.
Ao ser transparente, Cazuza implorava por ajuda, por
mobilização em relação à propagação da Aids, não para si próprio, que era
apenas um CPF no meio da multidão. Fugia de apelos sentimentais ou de piedade,
mostrava-se forte em público. Demonstrava saber que enquanto fosse tratado como
um “câncer gay”, o HIV estaria distante de tratamentos eficazes. O preconceito
e a ignorância mataram e matam muitos cidadãos. Se tivesse conta no Twitter,
talvez se tornasse uma versão mais experiente e desbocada de Felipe Neto, e se
dedicaria a abrir corações e mentes contra atos discriminatórios.
Mesmo sem a toxicidade das redes atuais, pairava no ar
daquela época uma certa acusação moral contra o cantor, uma caretice velada
sempre sugerida nas entrelinhas, como se fosse um problema exclusivo de
“minorias promíscuas”. Não era. Desde 1981, o HIV matou mais de 35 milhões no
mundo e, atualmente, 37 milhões convivem com a doença, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS).
Pelo menos duas reportagens em mídias importantes
naqueles tempos explicitaram o tom discriminatório a que Cazuza foi submetido.
Uma reportagem afirmando que o artista estava agonizando em praça pública
arriscou-se numa profecia de araque: “É até discutível se sua obra irá
perdurar, de tão colada que está no momento presente.” (Revista Veja,
26.abr.1989). Hoje, sabemos que a análise é que estava descolada da realidade e
queria apenas “lacrar”, no jargão da sociedade 2.0.
Em outra matéria de destaque naquele ano, um texto
crítico detonou a qualidade de seu último álbum - “Burguesia” (Polygram, 1989)
-, em que parte foi gravada com o cantor deitado em uma maca. Até aí, tudo
normal em criticar um trabalho artístico. Mas o inferno está nos detalhes e nas
ironias desnecessárias e reveladoras. O artigo termina desejando “Melhor sorte
no próximo” ao artista (Folha Ilustrada, 13.ago.1989). Cazuza morreu um ano
depois, em 7 de julho de 1990, muito debilitado pela doença, com a própria
reportagem já havia detectado e explorado.
A propósito, está neste último trabalho a música
“Manhatã” (Cazuza/Leoni), uma piada sobre como o brasileiro pronunciaria o nome
da ilha de Manhattan, em Nova York. A composição descreve o deslumbramento de
um nacional ao se deparar com as “maravilhas” do primeiro mundo e com o idioma
inglês.
Se fosse hoje e o cantor estivesse atuante nas redes, é
de se crer que teria desmascarado a farsa da objetividade e da impessoalidade
daquele jornalismo, muito alinhado com o pensamento das elites que tanto Cazuza
criticava. E o poeta tinha lugar de fala – como se diz atualmente -, pois
nasceu em “berço de ouro” – como se dizia antigamente. Sua indignação com os
rumos políticos e sociais do país explodia nos palcos. Expressões como “jogando
pérola aos porcos” e “caipiras endinheirados” eram, segundo relatos, repetidas
por ele para se referir ao público, que pagava caro para ver seus shows ao vivo
- ou em tempo real, fosse hoje.
Assim, Cazuza ia deixando de ser o roqueiro rebelde da
época do Barão Vermelho e virando o artista engajado explicitado desde o álbum
“Ideologia” (1988). Em 10 de janeiro de 1989, chegou ao horário nobre da TV
aberta com o especial “Uma prova de amor”, da Rede Globo.
Em tempos atuais, seria como se tivesse transmitido uma
live da sacada de seu apartamento no Leblon, no Rio de janeiro, com transmissão
simultânea em todas as plataformas, cantando “Vamos pedir piedade/ Senhor,
piedade! / Pra essa gente careta e covarde”. Ou ainda “Te chamam de ladrão, de
bicha, maconheiro/ Transformam um país inteiro num puteiro / Pois assim se
ganha mais dinheiro”. Certamente alcançaria os trending topics – como um
punhado de brasileiros costuma chamar os assuntos que estão fazendo sucesso –
ou bombando – na internet naquele momento.
Em um desafio de Facebook, Cazuza provavelmente teria
dificuldade para escolher dez discos que o influenciaram, dada a diversidade e
riqueza de sua obra. Certo é que, se felizmente estivesse vivo, “aquele garoto
que ia mudar o mundo” não estaria assistindo “a tudo em cima do muro”. Estaria
por aí postando verdades inconvenientes e denunciando o “museu de grandes
novidades” que se tornou o amado “Brasil, mostra a tua cara!”.
Composições citadas:
Blues da Piedade - Frejat/Cazuza
O Tempo não para - Arnaldo
Brandão/Cazuza
Ideologia - Frejat/Cazuza
Brasil - Cazuza/George Israel/Nilo
Romero
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação.
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