Visitação em 2019 no Museu da Abolição (PE) Foto: Camila Mendes |
Por Luiz Armando Bagolin, docente e pesquisador do
IEB/USP e ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade
Bastou as autoridades locais adotarem medidas de
relaxamento ao isolamento social, para as pessoas rapidamente saírem às
compras, lotando estabelecimentos comerciais de rua, shoppings populares e
feiras livres. O “novo normal”, pelo menos por aqui, é algo impensado, porque
as nossas gentes, por motivos diversos, alguns justificáveis, outros não, estão
dando pouca atenção às medidas coletivas de combate à pandemia. Vão retomando a
vida cotidiana de idas e vindas, de trocas, conversas e negócios, como se nada
de mais grave houvesse acontecido, ou pior, como se à nossa volta milhares de
pessoas não estivessem ainda doentes e outras muitas morrendo.
No campo da cultura, das artes e do entretenimento,
entretanto, a velocidade da retomada, mesmo quando em algum momento a pandemia
for debelada e a doença controlada (pois ela não desaparecerá), o comportamento
será bem diferente. Com museus, centros culturais, bibliotecas e outros espaços
dedicados à cultura fechados, exposições e espetáculos cancelados, e toda a
pirâmide de produção nos mais diversos gêneros, da assim chamada alta cultura à
cultura popular, bem como a de massa, atingida, não é possível ter prognósticos
muito positivos sobre o que acontecerá num futuro próximo.
Olhando na direção dos países desenvolvidos, que já
passaram pelo pico da pandemia, e estão planejando ou recomeçando a abrir
museus e instituições culturais, percebemos que mesmo em lugares onde, ao
contrário do Brasil, a visitação a espaços culturais, a exposições de arte,
livrarias, concertos etc. é um hábito cultivado, incentivado pelo Estado e caro
a uma percentagem grande da população, está havendo uma mudança quanto ao
padrão de comportamento em relação ao status anterior à disseminação da doença.
Em média, a nova circulação de pessoas nos principais
museus europeus foi reduzida de 30 a 40%. Erike Schmidt, diretor das galerias
Degli Ufizzi, declarou que agora é o momento “ideal para experimentar as
exposições de maneira calma, relaxada e tranquila, como era possível há décadas
e décadas atrás”.
Outros museus na Itália também estão reabrindo com
orientação de receber menos pessoas ou de controlar a entrada para receber
apenas pequenos grupos. Na Espanha, o Prado reabriu com a meta de receber no
máximo 1.800 pessoas por dia; o Museu do Louvre, assim como o Beaubourg,
promete reabrir a partir do dia 1º de julho também com controle e redução de
visitantes. No Reino Unido, as instituições nacionais abrirão a partir do dia 4
de julho; a Tate Modern, no entanto, não tem planos de reabertura para tão
logo.
Bernard Blistène, diretor do Pompidou, diz que é o
momento para se pensar numa nova relação com o público, mais qualitativa: é
hora para “desacelerar”. O KW de Berlim, instituição voltada à arte contemporânea,
abriu desde o final de maio, recebendo no máximo 40 pessoas por dia. Karoline
Köber, porta-voz do instituto, diz que “aqueles que vão ao museu ver arte
amarão o silêncio”.
No ambiente do mercado de arte, das grandes feiras
internacionais, como Basel, Arco etc., o tema é o mesmo: a desaceleração. Há
marchands, dealers, curadores e outros profissionais ligados às feiras que
passam meses viajando de um lugar para outro, de feira para feira, participando
de encontros, coletivas de imprensa, jantares e reuniões infindáveis no
intrincado e cada vez mais supérfluo e hiperinflacionado mercado da arte
contemporânea. Mas agora esses profissionais estão se perguntando: para que
isso tudo? O que realmente importa? O que é essencial?
O mercado, as galerias, suas feiras, assim como os
grandes museus e suas coleções continuarão a existir e a tendência é retornarem
à normalidade, à recepção tanto dos amantes das artes, especialistas ou não,
quanto dos amantes de selfies. Isso ocorrerá novamente, não tenho dúvidas, e dentro
de muito pouco tempo. Do ponto de vista psicológico, as pessoas tendem a voltar
a se comportar de acordo com os hábitos adquiridos, sobretudo quando se deseja
superar ou esquecer um processo traumático.
Com cuidados de higiene e limpeza ampliados e reiterados,
controle do número de acessos de visitantes e redução da programação de
mostras, ampliação do tempo das exposições, as coisas vão pouco a pouco se
ajustando. Concha Iglesias, diretora de comunicação do Museu Reina Sofia, diz
que “o pós-pandemia será um período sem exposições de grandes nomes e longas
filas. Esta é a hora de buscar novas colaborações entre as diferentes
instituições, entre o público e o privado, e intensificar o trabalho em rede”.
Resta, no entanto, saber qual será o impacto econômico
sobre essas instituições, haja vista que uma boa parte, 50% das suas receitas
ou mais, vem de ingressos e da venda de souvenirs, livros e catálogos.
Aqui no Brasil, no entanto, a situação das instituições e
lugares da cultura, que já era bem complicada, com um aparato que se espalha
por uma região de dimensões continentais, falta de recursos e principalmente de
políticas públicas abrangentes que entendam a cultura como um ativo econômico
importante, tende a se agravar ainda mais.
Nos últimos anos, o investimento em cultura, ainda que
tenha sofrido pequenos aumentos em aportes aqui e acolá, não foi
suficientemente significativo para salvaguardar o nosso patrimônio, aprofundar
as ações de pesquisa e de preservação de acervos, que são obrigatoriamente mantidos
por lei, assim como ampliar o interesse e a visitação do público, em seus mais
diversos estratos sociais, e que, em última análise, é o destinatário principal
dessas ações e o vedor destes acervos.
Houve nos governos anteriores uma preocupação mais
evidente, pelo menos, com a manutenção de grupos e dinâmicas sociais
descentralizadas, não necessariamente vinculadas às instituições culturais
formais, buscando iniciativas que pudessem ser expressões políticas do conceito
de “cidadania cultural” (Michel de Certeau reconhecera essas expressões como
“forças ou operações táticas”), o que favoreceu e dirimiu em parte, ainda que
minimamente, os agravos históricos cometidos contra as minorias sociais, assim
como a impossibilidade de acesso das mesmas aos bens culturais estabelecidos.
Houve o justo reconhecimento do Estado de que o que
faziam e ainda fazem é arte e é cultura. A Lei Rouanet continua sendo, por
aqui, o principal instrumento para o financiamento público da cultura (com
isenção ou devolução parcial de impostos devidos principalmente por pessoas
jurídicas), embora a maioria dos projetos contemplados ainda estejam muito
concentrados nas regiões Sudeste e Sul, e atendam particularmente à produção de
grandes espetáculos ou iniciativas com retorno comercial.
Se a lei já era insuficiente para dar conta da
abrangência e diversidade cultural brasileira num cenário com tíbia recuperação
econômica, na atual situação, com o aprofundamento da crise e diante da
recessão que se aproxima, sem precedentes na história do País, ela não poderá
ser vista como a única carta na manga para a recuperação das atividades
culturais. Soma-se a isso a percepção de que o governo atual não tem nenhum
projeto para a área, nenhuma política, a não ser a evidente habilidade de gerar
crises simultâneas.
As pessoas e instituições estão se reinventando, por
necessidade e iniciativa própria, desenvolvendo atividades que dependem cada
vez mais das plataformas digitais. As próprias atividades na Universidade
(aulas e reuniões, sobretudo) estão sendo feitas em formatos não presenciais.
Mas há uma gama enorme de outras atividades – aulas em ateliês, exposições,
encontros e pesquisas nos acervos físicos, além do contato in loco com o
patrimônio material e imaterial – que teve de ser suspensa, não se sabe por
quanto tempo ainda. Blistène acredita que “o espaço do museu terá que ser mais
do que nunca uma plataforma de intercâmbio e educação”.
Julgo ser interessante pensar nessa direção, investindo
em novas formas de comunicação que permitam às instituições, notadamente as
detentoras de acervos, sejam as públicas, sejam as particulares, institutos e
fundações, aproximarem-se cada vez mais de propostas educacionais e
interdisciplinares com conexões nacionais e internacionais.
A reconstrução de tudo que perdemos, por desventura ou
desgoverno, passa pela construção de um ambiente melhor do que o que
presenciamos até agora para as nossas crianças e jovens.
A universidade pública brasileira, junto a órgãos como o
Icom e outros, poderia ajudar no momento pós-pandemia a criar um observatório
sobre as dinâmicas e práticas culturais, mapeando o que se perdeu, o que foi
reinventado e se manteve, o que se transformou. Os dados obtidos pelas
pesquisas desse observatório seriam úteis para se traçar iniciativas de amparo
e apoio às instituições, aos coletivos e indivíduos relacionados direta e
indiretamente com o ambiente cultural, facilitando a criação ou a aproximação
de redes integradas interessadas em parcerias para a sustentação de nosso
sistema cultural.
A presença e apoio do Estado são muito importantes para
se atender não somente às necessidades das pessoas, consideradas
individualmente em seu bem-estar e segurança, mas também para preservar e
estimular aquilo que produzimos como comunidade e que nos torna parte dela.
Porém, somente com a ajuda de todos poderemos superar num tempo não demasiado
distante os efeitos danosos desta crise que é sanitária, econômica, cultural e
social.
Fonte:Jornal
da USP
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