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Pancc, MiT e Kake: gamers foram punidos após acusações de abuso sexual |
O que antes era um mero passatempo tecnológico para os jovens, hoje se converteu em uma indústria que movimenta mais de 1 bilhão de dólares por ano no Brasil, com direito a equipes, jogadores, torneios e transmissões profissionais. Por trás do cenário virtuoso dos jogos eletrônicos, porém, se camufla uma bolha habituada a normalizar assédios, atitudes sexistas, objetificação de mulheres e racismo. O comportamento tóxico de parte da comunidade gamer acabou exposto no início deste ano a partir de uma série de denúncias de violência sexual contra figuras reconhecidas do meio.
Pelo menos 15 gamers, entre jogadores e produtores de
conteúdo, são apontados como agressores sexuais. Um dos mais conhecidos é
Guilherme “Kake” Braga, treinador do time Academy de LoL do Flamengo. Ele foi
exposto por chantagear adolescentes entre 15 e 18 anos, ameaçando de expulsão
da equipe os que se recusavam a lhe enviar nudes. Kake acabou demitido pelo
Flamengo. “É importante repudiar qualquer tipo de assédio. Não só nos esportes
eletrônicos, mas na sociedade”, comunicou o departamento de e-sports do clube.
O treinador desativou suas redes sociais e não foi localizado pela reportagem.
Já Filipe “pancc” Martins, de 22 anos, jogador de
Counter-Strike, reconheceu ter solicitado fotos sensuais a uma garota de 15
anos, a quem ainda teria pedido para fazer sexo por meio de trocas de
mensagens. “Eu errei feio, esse tipo de coisa não se faz. Eu queria muito pedir
desculpa pra vocês, pras pessoas que eu gosto e vão ficar chateadas comigo. Eu
estou tentando melhorar e ser uma pessoa melhor, saber me portar como alguém
maduro”, pronunciou-se Martins. A yng Sharks Esports, equipe de pancc, anunciou
a suspensão do jogador, condicionada à obrigatoriedade de passar por tratamento
médico por um período de quatro a seis meses, além de redução salarial enquanto
vigorar a punição. “Uma sanção deve ter, acima de tudo, um caráter pedagógico e
se tornar exemplo para a sociedade”, informa a equipe portuguesa, que se
compromete a rescindir o contrato caso Martins não demonstre interesse em
cumprir o plano de reeducação ao longo do tratamento.
Após a série de denúncias, personalidades influentes do meio
manifestaram solidariedade às mulheres e criticaram o comportamento dos gamers
expostos. “Queria dizer às vítimas que vocês não devem justificar nada nem se
sentir culpadas ou erradas por algo que aconteceu. Aos abusadores, que a
justiça seja feita”, publicou o streamer Alexandre Gaules, que tem mais de 1
milhão de seguidores nas redes sociais. Felipe Gonçalves, o brTT, também se
posicionou ao ser cobrado por causa da amizade com MiT. “Comunidade de League
of Legends tá um lixo, um completo lixo. Isso aqui já foi a comunidade mais
linda que existiu. Hoje usam de um crime pra passar pano em outro, e tão
comemorando, tão aplaudindo”, postou o jogador ao admitir sua cota de
contribuição para propagar intolerância, agressividade e preconceito. “Eu me
responsabilizo completamente por ter contribuído pra isso, eu errei. Já fui extremamente tóxico, um completo babaca.”
Cultura tóxica ainda impõe barreira a minorias
Uma das mulheres que denunciou episódios de assédio e
abuso sexual contra um streamer diz ter recebido notificação extrajudicial para
retirar do ar as postagens em que expõe seu suposto agressor. Como a tentativa
de estupro teria ocorrido há mais de três anos, ela desistiu de levar o caso à
Justiça por não ter reunido provas nem prestado queixa na época. “Eu fiquei
muito traumatizada, sem saber como reagir quando tudo aconteceu”, recorda.
“Agora, fui aconselhada por amigos a apagar os posts, já que podem acabar me
transformando em culpada pela agressão que sofri. Meu intuito não é de vingança,
mas apenas mostrar como o nosso meio destrata a figura feminina.”
Para mulheres, sofrer ataques misóginos faz parte da
rotina no universo dos games. “A mulher tem que conquistar espaço na comunidade
geek e gamer na base da resistência. Ainda é uma área muito machista”, afirma a
youtuber Míriam Castro, 26, mais conhecida na internet como Mikannn. “Não é
todo mundo, mas existe uma parte bastante vocal da comunidade gamer que nos
persegue. Já foi pior, quando ainda éramos exceções. Felizmente, nos últimos
anos, temos visto mais mulheres no meio”, conta a produtora de conteúdo, que
começou a trabalhar com games em 2013.
Há dois anos, ela ajudou a puxar a campanha
#SouMulherSouGamer nas redes sociais, que coletou relatos de centenas de
mulheres vítimas de constrangimentos machistas. “Enquanto a gente joga, é comum
surgirem contas falsas assediando, mandando xingamento ou até mesmo fotos de
pênis. Nos jogos em equipe, ao usar o microfone e revelar voz de mulher,
corremos risco de arruinar nossas chances de ganhar por causa do preconceito.
Teve uma vez, por exemplo, que um jogador viu meu nome de usuário (mikannn) e
perguntou se eu tinha pênis ou vagina”, diz Míriam. Ela explica que,
frequentemente, sofre intimidações de outros jogadores para exibir sua “carteirinha
gamer”, uma espécie de passaporte que identifica o trajeto de cada usuário no
jogo, como se precisasse do aval masculino para se integrar à comunidade.
Não raro, homens sugerem às mulheres que coloquem o chat
e o microfone no mudo, além de se identificarem com nickname masculino, para
evitar assédios na rede. “Queria jogar Valorant (game de tiro em equipe)
sozinha sem ser chamada de vagabunda”, desabafou Daniela Li após expor o abuso
que sofreu de MiT. De acordo com Mikannn, a onda mais recente de denúncias
contra gamers notórios não é exatamente uma surpresa para quem conhece o
ecossistema. “Apesar de hoje termos mais mulheres com visibilidade, elas
continuam muito vulneráveis. Os jogadores profissionais são fruto desse meio
permissivo com o machismo. A fama faz com que pensem que podem tudo. Não
aprendem a lidar com a mulher de um jeito que não seja agressivo.”
Além do machismo, a tolerância ao racismo também tem sido
alvo de embates na comunidade gamer. No começo de janeiro, o jogador de
Fortnite, Orlando “kirito” Rodrigues, foi expulso da equipe norte-americana
TRNL Gaming devido a injúria racial cometida durante uma live. “Chama a mãe
dele de macaca”, escreveu ao se irritar com um oponente. “Queria pedir uma
segunda chance de provar com o tempo que não sou assim. Sei que geral vai me
odiar e eu entendo. Já estou pagando pelos meus erros e vou repensar minhas
atitudes”, publicou kirito depois de sua equipe anunciar a demissão.
No ano passado, um escândalo racista já havia sacudido o
circuito dos e-games. Publicações e comentários discriminatórios do canal Xbox
Mil Grau, um dos mais populares sobre a plataforma da Microsoft, foram
resgatados por seguidores. Uma mobilização nas redes, que envolveu inclusive o
movimento Sleeping Giants, conseguiu desmonetizar o canal através da retirada
de publicidade. A Microsoft impediu que os administradores continuassem usando
a marca Xbox no nome. Por fim, diante de recorrentes manifestações racistas, o
canal acabou banido do Youtube e da Twitch, plataforma que, em maio de 2020, já
havia suspendido a conta de Renan Bolsonaro, filho do presidente Jair
Bolsonaro, por violar suas políticas de conduta de ódio durante transmissões.
“Minorias costumam ser repelidas e perseguidas no
ambiente dos gamers”, diz Míriam Castro. Para a youtuber, reações de empresas e
equipes ao punir agressores e iniciativas como o Wakanda Streamers, coletivo
que luta pela inclusão de pessoas negras na cena dos games, são reflexos
positivos dos avanços em termos de representatividade. Porém, ela julga
necessária uma ação mais proativa das plataformas, principalmente na moderação
de comentários com teor discriminatório em chats e lives. “Marcas, consoles e
canais de streaming podem oferecer um serviço melhor e mais seguro para pessoas
negras, LGBTs e mulheres, ampliando seu público. Por muito tempo, empresas
endossaram comunidades supertóxicas e afastaram vários consumidores dos seus
jogos. As coisas estão mudando, e essa permissividade já não é mais
sustentável.”
Fonte:El País
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