Gazeta da Torre
Nova edição é impregnada do medo do cancelamento e poesia
ao ‘fada sensatismo’, mas mesmo aí as lentes do racismo se apresentam
Um ano se passou, a pandemia de covid-19 segue firme e
forte, Lurdes, de Amor de mãe, ainda não achou Domênico —sua busca também foi
interrompida pelo coronavírus— e o telespectador brasileiro se vê mais uma vez
pregado ao sofá, de certo modo, mais confinado do que as 20 pessoas que dividem
a casa mais vigiada e, quiçá, a que melhor espelha o país. De antemão, o Big
Brother Brasil de 2021 já prenunciava polaridades: ao elenco com mais pessoas
negras de todas as temporadas, incluindo os cantores Nego Di, Projota e Karol
Conka (a própria rainha do tombamento), somaram-se os chamados agroboys, homens
brancos e de estética padrão. Foi o suficiente para que se acendessem os
alarmes de possível masculinidade tóxica, uma das marcas registradas da edição
anterior.
“Parece a Batekoo versus o Villa Mix”, brincaram nas
redes sociais quando o elenco foi anunciado, em referência ao evento de celebração
da cultura negra LGBTQ+ e à casa de festas de música sertaneja que é um dos
points de paquera heterossexual em várias cidades. Quatro dias depois da
estreia, no entanto, reina o clima de primeiro dia de aula e todo mundo se dá
bem. Para quem pratica distanciamento social, o gatilho é inevitável ao ver os
participantes aglomerados no sofá, se amando à primeira vista, bebendo, cantando,
dançando e chorando na festa.
O marketing por trás do programa —capitaneado por José Bonifácio,
o Boninho— faz um trabalho primoroso ao ler o subconsciente coletivo do país,
que já parou de contar seus mortos (porque nunca os chorou de fato, mas já são
mais de 220.000 vidas perdidas para a covid-19) e está cansado de um escândalo
atrás do outro de corrupção e desrespeito no Governo de Jair Bolsonaro. Nesse
contexto, alienação e alívio cômico não fazem mal a ninguém. Não à toa, a
estreia do BBB virou uma espécie de Super Bowl da televisão brasileira, tendo a
Netflix (concorrente do GloboPlay) como grande estrela: a plataforma emitiu um
anúncio de dois minutos e 40 segundos em um horário em que meio minuto custa
aproximadamente 500.000 reais.
A meta é repetir ou superar o êxito da edição de 2020,
que pautou debates como racismo e machismo para além das rodas de amigos e se
firmou com uma espécie de bússola moral, graças a um remake pós-moderno da
guerra dos sexos. Os homens juntaram-se para votar e eliminar todas as mulheres
do programa, a trama foi descoberta, elas os enfrentaram e venceram, discursiva
e literalmente, já que a médica Thelma Assis consagrou-se campeã.
Inevitavelmente, o BBB 21 começa com a ressaca dessa trama, que consagrou o
fada sensatismo: debates didáticos sobre feminismo e opressões encabeçados pela
própria Thelma, além de Manu Gavassi, Rafa Kalimann e outras mulheres —ainda
que Babu Santana também desse lições sobre racismo e violência socioeconômica—.
Um ano depois, tendo visto o desenlace daquela história,
os participantes já entraram no programa com um medo também pós-moderno, o do
famigerado cancelamento. Talvez por isso ainda impere o clima de boa vizinhança
e mesmo participantes já cancelados do lado de fora —como Nego Di, que
minimizou em pelo menos uma live a violência física e sexual contra as
mulheres— façam, desde o primeiro dia, um mea culpa preventivo. “Sou machista,
homofóbico, racista e gordofóbico, mas quero mudar”, afirmou o cantor.
A primeira treta oficial da edição foi pautada justamente
pela transfobia. Na quarta-feira, em uma ação da Avon, marca de cosméticos que
patrocina o programa, o participante Caio (um dos agroboys) decidiu maquiar-se
e incentivou os colegas homens a fazerem o mesmo, o que deu origem a um desfile
performático do que seria uma feminilidade padrão. Incomodada, Lumena, mulher
negra e lésbica, comentou em petit comité que o gesto a incomodou. Não demorou
para a fofoca se espalhar e Lumena ser pressionada a confrontar Caio em uma
grande roda de conversa: a sister explicou que o ato de maquiar-se é um gesto
de autoafirmação e até de sobrevivência para travestis e mulheres trans, que
são historicamente ridicularizadas e violentadas publicamente por esse mesmo
gesto.
O brother ouviu e pediu desculpas, mas vive, desde então,
assombrado pelo fantasma do cancelamento. Mas ele parece não ter nada a temer.
Quem já foi cancelada por parte do público foi Lumena, tachada de “militante
chata” no Twitter, onde #ForaLumena era uma das tendências na manhã desta
quinta-feira. O fada sensatismo parece ser medido por uma régua de melanina.
Foi justamente em meio a esse debate que o ator e cantor
Fiuk (filho de Fábio Júnior —não de Glória Pires) teve a oportunidade de
expressar o peso do privilégio que recai em seus ombros. “Infelizmente, quem
causa isso tudo aí [as mazelas do mundo, em geral] são os homens brancos
privilegiados, somos nós”, disse, entre lágrimas, em uma cena que pode
considerar-se cômica. Fiuk, que parece ser o favorito das mulheres
heterossexuais da casa, já protagoniza um romance platônico, até o momento (e,
ao que tudo indica, unilateral), com Juliette, maquiadora e advogada que
começou a flertar com o artista no momento em que se conheceram (ambos entraram
primeiro em uma casa que reuniu os seis participantes imunizados previamente
pelo público). No dia seguinte, ela disse que já tinha arranjado um namorado no
BBB, ante a cara de incredulidade do seu par.
Por falar em imunidade, o reality dá tanto pano para
manga que até as autoridades políticas utilizam-no como cortina de fumaça para
evitar, por exemplo, o debate sobre o desastre da gestão da pandemia e os reais
gastos em bebidas e alimentos pelo Governo Bolsonaro. Foi o caso do deputado
federal Carlos Bolsonaro, filho do presidente, que confundiu a imunidade do BBB
com a vacina contra a covid-19 em um tuíte em que criticava a Globo. “Aglomeração
do bem! Não uso de máscaras do bem! Vacinados sem prioridade do bem? Fique em
casa você, trabalho para os funcionários da grobo [sic]”, escreveu em uma
publicação deletada. Ao corrigir o erro, em um segundo tuíte, ele excluiu a
frase que apontava que os participantes tinham sido vacinados. Haja imprensa
para tanto leite condensado.
Fonte:El País
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