Gazeta da Torre
De Santiago a Bogotá, movimentos estudantis mudam a
agenda de seus países. Há duas semanas, uma nova geração de peruanos
desencadeou a queda do presidente Manuel Merino
O Peru é o mais recente país latino-americano onde os
jovens promoveram uma luta contra um sistema que consideram injusto. No último
ano e meio, houve protestos no Chile, Colômbia e Equador, onde os cidadãos de
18 a 30 anos tiveram um papel importante em obter mudanças profundas nas suas
democracias. As reivindicações são muito variadas e respondem às urgências de
cada país. Às vezes respaldam a pauta de outros grupos, como a dos povos
indígenas no Equador. Entretanto, há um denominador comum: o fator geracional,
acompanhado das ferramentas e códigos de comunicação habituais entre os jovens.
Por exemplo, o uso das redes sociais.
Os manifestantes recorrem a elas para se congregarem, se
organizarem, ajudarem os feridos e procurarem os desaparecidos durante as manifestações.
Também para lançar suas reivindicações e documentar as marchas através de
canais criados por eles mesmos em plataformas como Instagram, Facebook e
TikTok, onde desafiam a narrativa da mídia tradicional quando consideram que
esta não reflete seu ponto de vista. “Ao logo do tempo, as juventudes sempre
foram um ator muito importante para a mudança social, e agora acontece o mesmo.
Há uma semelhança, mas as ferramentas que têm ao seu lado para poder defender
uma democracia são diferentes e fazem que se encurte o espaço e o tempo para a
organização, a convocação, a viralização, o ao vivo, e conseguem que tudo se
arme muito rapidamente”, diz a socióloga peruana Noelia Chávez, que cunhou o
termo Geração do Bicentenário para se referir ao grupo que esteve à frente dos
protestos no Peru, uma nação que em 2021 comemora dois séculos de
independência.
Segundo uma pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos,
mais de metade dos jovens de 18 a 24 anos participou dos protestos. Se a
destituição de Vizcarra atirou milhares deles à rua de maneira espontânea, a
repressão policial a essas manifestações pacíficas, que deixou dois mortos e
dezenas de feridos graves e foi transmitida através das suas próprias redes
sociais, massificou a mobilização. “A praça San Martín [em Lima] estava tomada
e havia uma ideia de que se meteram com a geração errada”, afirma Chávez. “Este
é o espírito que a Geração do Bicentenário deve ter: cidadãos reivindicando seu
direito a uma democracia e a ter representantes melhores. Lutam por isso. Não é
como uma categoria sociológica, mas sim como uma narrativa política para
podermos nos pensar como país de uma forma menos passiva, menos apática e muito
mais ativa na mudança.”
A geração que cresceu sem medo
As causas que os peruanos levaram às ruas eram tão variadas
como as múltiplas razões pelas quais se sentem traídos por sua classe política
e suas instituições, mas há duas exigências que acabaram se erguendo como
prioritárias entre muitos manifestantes: uma reforma policial, reivindicação
surgida em reação à violência das forças de segurança contra os manifestantes,
e mudanças na Constituição vigente, aprovada durante o Governo de Alberto
Fujimori. Essas duas reivindicações são semelhantes às das mobilizações que
começaram em 18 de outubro do ano passado no Chile, e que também tiveram os
jovens como protagonistas. A chamada eclosão social chilena começou como uma
ação de secundaristas em Santiago que decidiram pular as catracas do metrô em
protesto contra o aumento da tarifa, numa revolta que em poucos dias se espalhou
por todo o país, com dezenas de milhares de pessoas exigindo mudanças profundas
de um sistema econômico que deixou uma forte disparidade.
“Havia a sensação de que o sistema sempre nos prejudica”,
diz Nelson Duque, um universitário de 22 anos que desde o primeiro dia dos
protestos participou ativamente nas assembleias montadas por moradores de
bairros como o seu, a comuna La Florida, na zona sudeste de Santiago. “Já estou
endividado por sete ou oito anos por causa de uma educação que não sei se vale
essa grana”, lamenta o jovem. Neste país que se vendia como um oásis de
estabilidade e crescimento econômico na América Latina, ele, como muitos outros
jovens, vivia dia a dia as fissuras de um modelo que considera beneficiar
apenas as elites. Para Duque, os sintomas da desigualdade eram ver como seu
pai, comerciante, sofria para sustentar a família com três empregos em dois
anos, ou como alguns de seus parentes idosos precisam continuar trabalhando
porque suas aposentadorias são insuficientes para mantê-los.
“Minha geração já não entende por que as coisas são
preservadas do jeito que estão. Por que tanto empenho em proteger um sistema
que claramente está quebrado, algo que claramente não funciona”, opina Mariana
Contreras, uma estudante de Direito de 20 anos. No ano passado, quando os
protestos estouraram, a estudante montou com alguns colegas da Universidade do
Chile um plantão jurídico para auxiliar manifestantes vítimas de violência,
detenções ou abusos policiais. Para reprimir as passeatas, eventualmente violentas,
o Governo de Sebastián Piñera decretou um polêmico estado de emergência que lhe
permitiu pôr o Exército nas ruas e instaurar um toque de recolher em várias
cidades. A repressão deixou 34 mortos e milhares de feridos, entre eles
numerosas pessoas com lesões oculares graves, e as denúncias de brutalidade
policial se multiplicaram.
Contreras recorda que para sua mãe, que na juventude se
opôs ao regime de Augusto Pinochet (1973-1990), a atuação policial ordenada por
Piñera despertou fantasmas do passado. “Minha mãe lutou para que a ditadura
acabasse de maneira ativa. No dia que impuseram o toque de recolher, ela me
ligou e disse: ‘Volta voando. Não dá para você ficar na rua’. Essa geração
conviveu com o medo”, afirma. A jovem acredita que, em parte, a mobilização do
ano passado ocorreu porque “não houve uma cura da sociedade depois da ditadura:
não houve justiça, não houve reparação, ficou tudo muito aberto como se nada
tivesse acontecido, e em algum ponto isso explode também na cara da sociedade,
das elites que tentaram continuar como se estivesse tudo bem”, acrescenta.
Juan Sandoval, acadêmico da Universidade de Valparaíso
que codirigiu uma pesquisa sobre os protestos estudantis chilenos de 2006 e
2011, batizada de Uma Geração Sem Medo, concorda com a análise de Contreras ao
falar sobre uma “substituição geracional” neste grupo de jovens que “já não
estão mais tão marcado pelas ditaduras militares” em comparação aos seus pais,
“para quem uma participação muito ativa na política era pôr um pouco em jogo o próprio
corpo, com a possibilidade de ser desaparecido ou exterminado”. “Não é que esta
geração não sinta medo ao ver os carabineros [polícia militarizada], mas a
sensação de medo que qualquer ser humano sente perante qualquer ato repressivo
é vivida a partir de uma ambivalência emocional que vai da euforia à raiva e a
sensação de indignação com o que o Estado faz”, aponta.
Embora as pesquisas publicadas no começo do movimento
chileno revelassem uma geração com baixo índice de participação política e
elevada rejeição a partidos e líderes tradicionais, com sua mobilização ela
demonstrou que deseja desempenhar um papel na configuração da sociedade, mas de
uma maneira diferente. De fato, pesquisas preliminares apontam que os jovens
foram maciçamente às urnas no mês passado para votar no plebiscito ― em que
quase 80% dos chilenos aprovaram que a Constituição da época de Pinochet seja
substituída ―, uma consulta que é considerada justamente uma conquista dos
manifestantes. “Poderia ser hipoteticamente plausível pensar que quando os
jovens percebem que algo substancial está em jogo na eleição convencional eles
participam”, aponta Sandoval.
“É realmente uma geração muito política, mas política em
outro sentido”, observa sua colega Manuela Badilla, socióloga da Universidade
do Valparaíso que pesquisa as transformações geracionais na forma de criar a
memória no Chile ― um trabalho que a levou a fazer numerosas entrevistas com
jovens de 18 a 28 anos na periferia de Santiago. Para ela, a incógnita dos
próximos anos é ver se esta geração está disposta a canalizar esse ativismo
mais horizontal e sem líderes para a política institucional. “É preciso ver
como a Constituição afinal será formulada e redigida, e se esse aumento de
participação no plebiscito, que foi muito significativo, vai se traduzir em uma
votação em abril, quando os constituintes serão eleitos”, afirma. “A
dificuldade reside em entender quem são os atores hoje em dia e saber ler essa
nova forma de fazer política, que não corresponde àquela com a qual a gente cresceu”.
Para Mariana Contreras, a aluna de Direito, o plebiscito
representou sua primeira chance de ir às urnas. “É supersimbólico mudar tudo na
primeira vez que a gente vota”, diz. “Foi emocionante, um momento de felicidade
que a gente podia sentir também nas ruas. As pessoas ficaram buzinando,
gritando.” Para ela, o desafio agora será poder eleger os integrantes da
Convenção Constitucional e obter consensos “para que a Constituição possa
evoluir com a sociedade e não ficar cheia de cadeados”.
Esse sentimento de responsabilidade depois dos protestos
é compartilhado por Alba Ñaupas, a estudante de jornalismo peruana que aderiu
aos protestos do seu país no começo do mês. “Muitos dizem que a memória do povo
peruano é frágil, que o povo peruano esquece rápido, e eu dizia às minhas
amigas: ‘Pode ser verdade. Vimos que votaram no Fujimori, votaram no Alan
García, mas pelo menos nós já não somos mais o futuro, somos o presente do país
e cabe a nós não esquecermos isto, não deixarmos que isto se repita e nos informarmos
antes de dar um voto”.
Intérpretes da sociedade
A memória foi justamente um dos elementos que uniram
dezenas de milhares de estudantes nas manifestações contra o Governo de Iván
Duque na Colômbia. Nesses protestos, que alcançaram seu apogeu em novembro de
2019 e neste ano refluíram devido à pandemia do coronavírus, as demandas das
novas gerações se somaram às reivindicações dos sindicatos. Os jovens,
entretanto, se tornaram os principais intérpretes das aspirações de vastos
setores da sociedade em um país que acaba de sair de um conflito armado de mais
do meio século e que ainda está longe de resolver o problema da violência. O
clima de mudança já era sentido há um ano, sob o fio condutor da paz, do
rechaço aos constantes assassinatos de líderes sociais e da reação ao caso do
estudante Dilan Cruz, morto por policiais no Parque dos Hippies, em Bogotá, a
praça símbolo das concentrações. Um ambiente no qual o fim da guerra abriu a
porta a uma transição profunda para a Colômbia.
As mobilizações estudantis foram, já no final de 2018, a
primeira frente do Executivo de Duque, que se opôs aos acordos de paz com as
FARC e governa com um projeto econômico eminentemente neoliberal. Ganharam
algumas disputas, conseguiram mais investimento em educação. Mas suas metas são
estruturais. Alejandro Palacio tem 22 anos e estudou Ciência Política no campus
de Medellín da Universidade Nacional, principal instituição pública de ensino
superior no país. Foi representante no Conselho Superior Universitário e acaba
de ingressar com uma bolsa em um mestrado em Economia em Bogotá. “Entrei na
universidade em 2016 e já no segundo semestre ocorreram as mobilizações pela
paz. Essa é a pauta de futuro e de mudança”, afirma Palácio, que cresceu em uma
família de classe média e é um firme defensor do ensino público. “A educação
pode ser um instrumento para eliminar desigualdades, mas se não for inclusiva
pode ser um instrumento para potencializá-las”, prossegue.
Essas desigualdades são uma das premissas das convulsões
que agitam o país. A disparidade social da Colômbia é uma das maiores do mundo,
segundo a OCDE. “Não é possível que uma família leve 12 gerações para sair da
pobreza”, lamenta esse estudante. Palacio defende que esta é “a geração que
mais quer reafirmar seus direitos” e rejeita as acusações de alguns setores
políticos de “ser uma geração patrocinada”. “Esse imaginário é muito nocivo.
Esta não é uma geração patrocinada, não é medíocre, não quer tudo de presente”,
afirma. Também sua aposta é ficar na Colômbia em vez de buscar oportunidades no
exterior: “Os jovens precisam ficar na Colômbia tratando de impulsionar nosso
país, participando da vida pública”. Definitivamente, quer um futuro melhor
para seu país. No ano passado, nas mobilizações, ouviam-se slogans como “Quero
estudar para mudar a sociedade”. E disso se trata, de mudança integral, que vai
além de uma agenda nacional.
“A plataforma e a pauta dos movimentos estudantis é mais
ampla hoje do que no passado”, afirma a cientista política Sandra Borda. Da
defesa do meio ambiente ao feminismo, “isso lhes dá a possibilidade de
aglutinar muito mais gente”, argumenta. A variedade das reivindicações dos
alunos de universidades públicas e privadas também torna o movimento mais
transversal, ao lhe retirar o componente de classe, aponta Borda, que registrou
aqueles dias no livro Parar para Avanzar. Também especialista em relações
internacionais, ela observa que “estes movimentos estudantis são muito mais
globalizados que no passado”, ou seja, não se apegam exclusivamente à agenda de
políticas públicas de seus próprios países. Um exemplo: uma das ações mais
simbólicas dos protestos em Bogotá foi a marcha até o aeroporto El Dorado.
“Essa ideia de tomar o aeroporto foi herdada dos movimentos estudantis de Hong
Kong”, diz ela.
A cientista política ressalta a capacidade de conexão dos
jovens com a classe média colombiana, tradicionalmente disposta a se mobilizar.
“Entenderam aquilo de que os movimentos sociais têm que ser amplos e se
comunicar com o resto da sociedade”, diz. Entretanto, tem dúvidas sobre o
caminho. “O que não tenho tão claro é em que vão futuramente transformar seu
ativismo estudantil. No meio do confinamento, a conversa política se torna
muito difícil. Isto dificulta muito o protesto e o acionamento dos movimentos
sociais. Mas o ano que vem é um ano eleitoral na Colômbia e uma oportunidade
enorme para eles. As mudanças que os movimentos sociais pedem normalmente não
ocorrem nos Governos da vez, e sim nos seguintes.”
Uma pesquisa feita pela Universidade del Rosario e pela
empresa de opinião pública Cifras y Conceptos antes da adoção das medidas de
confinamento por causa da covid-19, ou seja, antes que houvesse um refluxo nas
ruas, apontava que os jovens colombianos estavam indignados sobretudo com a
apatia e o conformismo, o machismo, a corrupção e a desigualdade. A isso se
somam as preocupações próprias da conjuntura da emergência sanitária. “Os
jovens são vítimas da pandemia, estamos na encruzilhada econômica da pandemia.
Na crise global de 2008 e 2009, e agora em 2020, os jovens são os mais
afetados”, prossegue Palacio, para quem Iván Duque, o presidente mais jovem da
história recente da Colômbia ― tem 44 anos ―, deu as costas às novas gerações,
enquanto outros líderes políticos, como a prefeita de Bogotá, Claudia López, do
Partido Vede, encarnam a mudança.
“Seria bom que o setor político e o setor privado
percebessem isso, que os jovens não são apenas consumidores, não estão só no
TikTok”, afirma Sergio Guzmán, analista político e diretor da consultoria
Colombia Risk Analysis. “Os jovens flexionando seus músculos e estes protestos
demonstram que eles têm duas coisas: poder de convocatória e flexibilidade.
Existe a sensação de que o sistema não está construído para eles, que eles
alimentam o sistema e este não está estruturado para lhes dar poder. O Peru é o
primeiro país onde veremos seu peso nas eleições do ano que vem”, acrescenta.
Em 2021 haverá eleições também no Equador, onde vários
coletivos estudantis aderiram no ano passado às mobilizações promovidas pelos
povos indígenas contra o Governo de Lenín Moreno, em protesto contra a retirada
dos subsídios ao combustível. Nesta semana muitos exigiram na rua a destituição
da María Paula Romo, a ministra com mais visibilidade do Executivo, finalmente
aprovada pela Assembleia Legislativa. Entretanto, as especificidades do país
são diversas, e seu protagonismo não alcançou os mesmos resultados do movimento
peruano, por exemplo. Na Bolívia, os jovens também estiveram presentes na
chamada “revolta dos pititas”, em referência às cordas com que organizações de
moradores interrompiam vias públicas, sobretudo no departamento da Santa Cruz.
Essa onda de protestos contra Evo Morales aconteceu em novembro de 2019, mas
sua derrubada afinal foi provocada por um movimento interno do Exército, que
lhe retirou a confiança e o obrigou a renunciar. E as novas gerações são ainda,
apesar da emigração maciça, a coluna vertebral das mobilizações que há anos
procuram forçar uma renúncia de Nicolás Maduro na Venezuela. O Peru, enquanto
isso, será o primeiro campo de provas do real envolvimento político desta
geração e da sua capacidade de impulsionar uma mudança através das urnas.
Fonte:El País
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