Gazeta da Torre
Aos 110 anos de seu nascimento, Noel Rosa permanece como
acento crítico à controversa modernidade do Brasil
São diversas as abordagens sobre a trajetória e a obra do
compositor carioca Noel Rosa – nascido há exatos 110 anos, em 11 de dezembro de
1910. Uma das mais interessantes é a que articula suas canções às propostas
modernistas brasileiras. Santuza Cambraia Naves é uma das pesquisadoras que
lança esse olhar no seu livro O Violão Azul: “A música popular concretiza um
certo ideal modernista que valoriza o despojamento e rompe com a tradição
bacharelesca, associada a determinadas concepções de erudição. (…) Há uma
convergência entre os músicos populares, que trabalham individualmente e sem
recorrer a um projeto estético, e os poetas e ideólogos do Modernismo,
envolvidos num projeto coletivo consciente em torno da simplicidade e do sermo
humilis, embora, na maioria das vezes, tanto na poesia modernista quanto na
música popular, o humilde se concilie com o sublime”.
Verso livre, vocabulário popular, comicidade e ironia,
recurso a imagens cotidianas, tudo isso que o projeto modernista buscou
desenvolver na literatura a partir da década de 1920 a música popular realizou
nas canções que começavam a se inserir num crescente mercado musical.
Outro pesquisador, Rodrigo Aparecido Vicente, num texto
intitulado O Samba Crítico de Noel Rosa, vai buscar em Antonio Candido uma
observação que corrobora essa visada. “Referindo-se ao movimento de 1922, o
crítico literário destaca que ‘uma série de aspirações, inovações,
pressentimentos gerados no decênio de 1920, que tinha sido uma sementeira de
grandes mudanças’, acabou conhecendo, na fase seguinte, um processo de
‘generalização e normalização, só que a partir das esferas populares, rumo às
camadas médias e superiores’.”
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Noel Rosa |
Esses ideais artísticos que nasceram no meio intelectualizado e floresceram tão bem nas esferas populares – para depois continuar o trajeto no sentido inverso – encontraram na música popular, principalmente no samba e na marcha, suas grandes expressões.
Noel Rosa é uma das melhores personificações desse processo. No seu caso, com o despojamento, a coloquialidade e o humor, passam também a melancolia, a tristeza e o pessimismo. Nele, as contradições de um mundo em transformação atravessaram tanto sua sensibilidade social quanto seus afetos mais líricos.
Coisas do Brasil
Nas primeiras décadas do século 20, o Brasil era um país
que acabara de abolir a escravidão. O setor agroexportador era hegemônico,
embora atravessando sucessivas crises. Ao mesmo tempo, a urbanização era
crescente e a incipiente industrialização trazia novos atores sociais além
daqueles presentes no mundo rural. Noel Rosa não ficou alheio a essas
sobreposições de realidades contraditórias. Uma de suas canções mais conhecidas
o confirma. Trata-se de Coisas Nossas:
Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa
O samba, a prontidão e outras bossas
São nossas coisas
São coisas nossas
Malandro que não bebe, que não come
Que não abandona o samba, pois o samba mata a fome
Morena bem bonita lá da roça
Coisa nossa, coisa nossa
O samba, a prontidão e outras bossas
São nossas coisas
São coisas nossas
Baleiro, jornaleiro, motorneiro
Condutor e passageiro
Prestamista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça
Coisa nossa, muito nossa
O samba, a prontidão e outras bossas
São nossas coisas
São coisas nossas
Menina que namora na esquina e no portão
Rapaz casado, com dez filhos, sem tostão
Se o pai descobre o truque, dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa
O samba, a prontidão e outras bossas
São nossas coisas
São coisas nossas
(Coisas Nossas, de Noel Rosa)
A canção Coisas Nossas traz, entre outras imagens, a do
bonde que parece uma carroça. Essa aproximação entre duas realidades que
deveriam se chocar – o “bonde”, como símbolo da modernidade, e a “carroça”, que
carrega a imagem do atraso – aqui convive numa tensão colorida pela ironia de
Noel Rosa. O cruzamento dessas duas imagens já foi bem explorado, não apenas
por autores que analisam o músico, mas também pelos que analisaram o poema de
Oswald de Andrade Pobre Alimária, que traz o entrechoque dos mesmos veículos:
O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lesto carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote
(Pobre Alimária, de Oswald de Andrade)
O poema de Oswald, de 1925, e a canção de Noel, de 1932,
são dois exemplos, com as mesmas imagens, que traduzem a experiência pessoal em
meio a um país que mira o horizonte das vanguardas e das sociedades modernas,
com o lombo ainda marcado pelo chicote do atraso escravocrata. E mais ainda, a
modernidade que se afirmava adiante carregava, também ela, suas próprias
perversidades. Por isso, muitas vezes, sensibilidades artísticas como Noel
olhavam para o passado e para o futuro sem saber qual deles escolher. E esse
espaço de dúvida era o terreno para a
crítica irônica e o pessimismo.
Modernidade malandra
Suas músicas, em vários casos, relatavam a precariedade
da condição do malandro. Mas nem por isso pretendia a vida do trabalho estável
e fixo que, afinal, nem era tão abundante assim.
O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia
(Filosofia, de Noel Rosa e André Filho)
Como lembra outro autor que se dedicou a estudar Noel
Rosa, o historiador Antonio Pedro Tota, “Noel é o crítico da sociedade burguesa
e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade”. No artigo intitulado
Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa, Tota destaca a sagacidade do
compositor ao colocar frente a frente dois símbolos da modernidade, um contra o
outro. É na canção Três Apitos que aparecem os versos a seguir:
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Pois você anda sem dúvida bem zangada
E está interessada em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito da buzina do meu
carro?
(Três Apitos, de Noel Rosa)
Nessa canção, tanto o apito da fábrica quanto a buzina do carro viveriam harmonicamente como símbolos da modernidade. Mas não aqui. Como observa Antonio Pedro Tota, o eu-lírico dessa canção “luta contra o apito da fábrica de tecidos, utilizando outro instrumento da modernidade: a klaxon, isto é, a buzina”.
A referência ao termo klaxon não foi usada à toa por Tota. Ao costurar as aproximações entre os propósitos do movimento modernista e os elementos das canções de Noel Rosa, pode-se passar à lembrança da revista Klaxon, um dos principais instrumentos de divulgação daquele movimento artístico e intelectual brasileiro. E, mais uma vez, é preciso sublinhar a sintonia entre as obras de Noel Rosa e Oswald de Andrade. Assim como no escritor modernista, no Poeta da Vila também havia uma frequente contraposição à burguesia e ao seu modo de vida. E, em ambos, a figura antagônica ao tipo burguês é mais o boêmio do que o proletário clássico. Ou, como foi marcantemente verbalizado em inúmeras canções, o “malandro”.
Muitas são as sínteses que o malandro carrega cada vez
que aparece numa canção daquela época. Como bem lembra a pesquisadora Mayra
Pinto, no artigo Com Que Roupa? O Nascimento do Malandro Polêmico de Noel Rosa,
naquele período – décadas de 1920 e 1930 – a penúria financeira não era só um
problema de malandro, mas uma questão nacional. Por isso, aquele que está às
margens do jogo econômico dominante, o malandro, é o personagem eleito para
falar sobre a situação. E é quem se surpreende com a dificuldade extrema de se
apoderar de qualquer sobra.
Agora eu não ando mais fagueiro,
Pois o dinheiro
Não é fácil de ganhar.
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar,
Eu já corri de vento em popa
Mas agora com que roupa?
(Trecho de Com Que Roupa?, de Noel Rosa)
Sobre a canção Com Que Roupa?, Mayra Pinto atenta para o espanto do malandro que se vê no meio de uma penúria social tão acentuada que, mesmo sendo ele um trapaceiro, não consegue ter o mínimo para gastar.
Não é à toa que as canções foram, muitas vezes, forças
opostas à propaganda governamental. Como um balde de ácido, uma composição como
Samba da Boa Vontade faz a dívida externa e a política do café derreterem aos
ouvidos de alguém atento.
Comparo o meu Brasil
A uma criança perdulária
Que anda sem vintém
Mas tem a mãe que é milionária
E que jurou batendo o pé
Que iremos à Europa
Num aterro de café
(Nisto eu sempre tive fé)
(Trecho de Samba da Boa Vontade, de Noel Rosa e João de
Barro)
E, no meio de todas as contradições modernas que fizeram
o Brasil lembrar a imagem do estrambólico ornitorrinco – para lembrar uma
formulação do sociólogo e professor da USP Chico de Oliveira -, o malandro, o
sambista, o boêmio e todas as figuras ambulantes da cidade em plena
transformação dançaram e dançam nos nossos ouvidos, como para nos perguntar,
com Noel, com que roupa nós vamos.
Fonte:Rádio USP
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