Gazeta da Torre
Interesses políticos e descaso social alimentaram Revolta
da Vacina em 1904
Um dos problemas de saúde pública no Brasil do século 21
são os pais que se recusam a dar aos filhos as vacinas obrigatórias. São
famílias que caem em fake news que acusam as imunizações de serem perigosas
para a saúde dos bebês e das crianças.
Por causa disso, o Brasil voltou em 2019 a ter casos de
sarampo, inclusive com mortes, e perdeu o certificado de território livre do
sarampo. Antes desse ressurgimento, o país havia passado quase duas décadas
registrando alguns poucos casos importados da doença.
O medo das vacinas não é novo no Brasil. É até mais
antigo do que a célebre Revolta da Vacina, de 1904. O país viveu um drama
sanitário do mesmo tipo no decorrer do século 19. A doença em questão era a
varíola — hoje erradicada do mundo. Apesar de os governos de dom João VI, dom
Pedro I e dom Pedro II terem oferecido a vacina gratuitamente aos súditos,
muitos fugiam dos vacinadores, o que contribuía para que as epidemias de
varíola fossem recorrentes e devastadoras.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em
Brasília, mostram que a baixa adesão às campanhas de vacinação foi um problema
que atormentou os senadores do início ao fim do Império.
— Em Santa Catarina, têm morrido para cima de 2 mil
pessoas — discursou em 1826 o senador João Rodrigues de Carvalho (CE), citando
a província da qual fora presidente (governador). — Eu estabeleci ali a vacina,
deixando-a encarregada a um cirurgião hábil, mas quase ninguém compareceu. Os
povos estão no erro de que a vacina não faz efeito. Quando o interesse público
não se identifica com o interesse particular, nada se consegue.
Por causa das bolhas cheias de pus que se espalhavam pelo
corpo do infectado, a doença era popularmente chamada de bexigas. Mesmo nos
casos em que a varíola acabava não sendo letal, os bexiguentos sobreviventes
pouco comemoravam. Depois de secar e cair, as bolhas costumavam deixar
cicatrizes profundas que deformavam o rosto para sempre.
— As bexigas são um dos maiores flagelos que devastam a
humanidade — afirmou também em 1826 o senador Antônio Gonçalves Gomide (MG). —
Na minha província, foram tantas as mortes, que o arraial da Passagem ficou
reduzido à metade. Isso não pode ser senão por desleixo, ao menos depois de
haver um específico [a vacina] tão seguro.
Os senadores Carvalho e Gomide trataram da varíola
durante as discussões, no Plenário do Senado, de um projeto de lei que
autorizaria o governo a remanejar verbas do Orçamento público para a vacinação,
de modo a “vulgarizar a prática em todo o Império”. Mais especificamente, o
dinheiro custearia as gratificações dos médicos vacinadores. Os senadores e
deputados, entendendo que o problema era mesmo grave, aprovaram a liberação das
verbas.
A vacina era uma grande novidade. Em 1796, na Inglaterra,
o médico Edward Jenner observou que os camponeses que ordenhavam vacas
infectadas e contraíam a varíola bovina — uma variação inofensiva da doença —
por alguma razão passavam a sair ilesos dos surtos de varíola humana. Para
verificar se não se tratava de mera coincidência, ele decidiu retirar o pus das
bolhas localizadas nas mamas das vacas doentes e inoculá-lo em cobaias humanas.
O experimento teve o resultado imaginado. Jenner, assim, comprovou o poder
protetor do pus infectado com a varíola animal.
O médico inglês batizou o pus terapêutico de “vacina”,
uma derivação da palavra latina vacca. Na época, bastava dizer “vacina”, sem
especificar a doença. Por muito tempo, a varíola foi a única enfermidade contra
a qual existiu imunização.
No entanto, parte da população brasileira, sem entender
como a vacina funcionava, tinha pânico dessa novidade médica. Um dos medos era
que a imunização, em vez de evitar, desencadeasse a varíola e levasse à morte.
Reforçava esse temor o fato de o vacinado desenvolver uma bolha, ainda que
superficial e inofensiva, no local da inoculação. Outro medo era que o pus de
origem animal transmitisse doenças bovinas para as pessoas.
Há relatos de mães que escondiam os filhos debaixo da
cama ao ouvir o vacinador bater na porta e até de famílias inteiras que fugiam
do povoado quando a campanha de vacinação chegava. Inclusive entre os senadores
se encontrava desinformação.
— Eu não sei se a medicina já decidiu esta importante
questão: se a vacina prejudica a saúde futura dos meninos — disse o senador
Visconde de Jequitinhonha (BA) num discurso em 1862.
— É uma questão decidida há muitos anos — respondeu,
indignado, o senador Cruz Jobim (ES), que era médico e defensor ardoroso da
vacina.
— Decidida em que sentido? — devolveu o Visconde de
Jequitinhonha. — Li ainda outro dia dúvidas acerca disso.
Foi a deixa para que Cruz Jobim iniciasse uma palestra:
— Na opinião dos inimigos da vacina, ela dá ocasião ao desenvolvimento
de muitas outras moléstias que aumentam a mortalidade dos povos. Semelhante
opinião é gratuita e infundada. Nenhuma dúvida há de que o preservativo é de
grande vantagem. Há 20 anos, tendo aparecido a bexiga em uma horda de selvagens
no Canadá, mais de 20 mil morreram. Também tendo aparecido a bexiga em
selvagens de algumas ilhas do Pacífico, quase todos vieram a sucumbir. Estamos
muito longe de observar essas horrorosas cenas nos países onde a vacina está em
prática atualmente.
O senador médico continuou:
— Para que caluniar a vacina com suposições falsas? Para
que atribuir-lhe males que ela não produz? Pôr em dúvida a eficácia da
descoberta de Jenner é destruir a confiança de tão útil preservativo e expor a
vida de milhares de pessoas a um dos maiores flagelos, talvez o mais mortífero
de quantos têm aparecido no mundo.
Não se pode dizer que o medo da população era de todo
absurdo. Na época, a ciência era incapaz de explicar como a vacina protegia as
pessoas. Desconheciam-se os vírus e o sistema imunológico. Não se sabia que, ao
introduzir-se um vírus enfraquecido no organismo, a própria pessoa passava a
produzir anticorpos contra a doença.
Edward Jenner fez sua descoberta a partir de meras
observações empíricas. Na falta de uma explicação científica plausível, muitos
médicos condenavam a imunização. Entre eles, estava o português Heliodoro
Carneiro, que em 1808 publicou um livro repleto de ataques à vacina. A obra,
lançada em Lisboa, ajudou a disseminar o medo no Brasil Colônia.
Além disso, espalhavam-se mentiras deliberadamente. Na
vila de Paracatu (MG), em 1832, o anúncio de uma campanha de vacinação fez a
população apedrejar a casa do presidente da Câmara Municipal (cargo hoje
equivalente ao de prefeito) e quase linchá-lo. Essa pequena revolta da vacina
estourou depois que bilhetes e folhetos anônimos começaram a circular na vila
avisando que a verdadeira intenção do político era infectar e matar todo mundo.
Mais tarde, descobriu-se que as notícias falsas haviam partido do juiz de Paracatu,
que era inimigo declarado do presidente da Câmara Municipal.
Antes de se mudar para o Brasil, dom João VI fez seus
filhos serem vacinados em público, justamente para dissipar o temor dos súditos
portugueses e convencê-los de que era infundada a história de que a vacina
provocava as bexigas. O príncipe regente se engajou porque conhecia bem a
devastação da varíola. Ele havia perdido dois irmãos, um genro e um filho para
a doença. Sua mulher, dona Carlota Joaquina, era uma sobrevivente e carregava as
cicatrizes indeléveis no rosto — o que ajuda a explicar a fama de feia.
Por essa razão, em 1811, apenas três anos depois de
transferir a sede do Império português para o Brasil, dom João VI criou a Junta
de Instituição Vacínica da Corte, destinada a executar a imunização em massa no
Rio de Janeiro e enviar a vacina para as províncias. A nova repartição pública
também importava de Londres o pus animal. O material não podia ser extraído das
vacas brasileiras porque elas, ao contrário das inglesas, não sofriam da
varíola bovina.
A historiadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz
(instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz) Maria Rachel Fróes da Fonseca
explica que foi então que surgiu a primeira política pública de saúde destinada
a proteger toda a população do Brasil:
— No fim da Colônia e durante o Império, enquanto os
serviços de saúde e higiene pública ainda se encontravam muito precários, a
vacinação antivariólica funcionava como um dos poucos recursos que apresentavam
alguma eficiência.
Artigo publicado na Revista Ilustrada em 1881 contra a
vacinação obrigatória (imagem: Biblioteca Nacional)
Edward Jenner foi ainda mais longe nas suas descobertas.
Ele percebeu que a bolha benigna que se formava no braço da pessoa após a
vacinação também continha o pus protetor contra a varíola. Assim, cada
indivíduo vacinado naturalmente se tornava produtor da vacina. Oito dias depois
da imunização, a pessoa tinha que se apresentar novamente ao vacinador, para
que ele estourasse a bolha dela e inoculasse esse pus em outras pessoas. O
processo se chamava vacinação braço a braço.
Foi braço a braço que a vacina contra a varíola chegou ao
Brasil pela primeira vez. Em 1804, o Marquês de Barbacena (que mais tarde se
tornaria senador) mandou para Lisboa sete escravos meninos acompanhados de um
médico, que aprenderia na capital portuguesa a técnica da vacinação. Apenas uma
das crianças foi vacinada em Lisboa. Durante a longa viagem de volta, em navio,
o médico passou o pus vacínico de um escravo para outro a cada oito dias. Assim
que o navio aportou em Salvador, o Marquês de Barbacena foi a primeira pessoa a
ser imunizada no território brasileiro.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal, autor de um
estudo sobre a introdução da vacina em Portugal e no Brasil, diz que, ao
contrário do Marquês de Barbacena, a elite do Império resistia a receber o pus
dos escravos:
— Quando publicavam anúncios convocando para a vacinação,
as autoridades pediam que os senhores dessem banho nos escravos antes de
levá-los ao vacinador. Mesmo assim, os brancos, quando tinham que se vacinar,
evitavam o serviço público e recorriam a médicos particulares.
O instrumental de vacinação era diferente do que é hoje.
A seringa com agulha só seria inventada por volta de 1850. O que se usava era a
lanceta, uma espécie de estilete. O médico vacinador embebia de pus a ponta da
lanceta e depois fazia cortes pequenos e superficiais no braço da pessoa, para
que a vacina entrasse em contato com o sangue.
A reapresentação oito dias depois era importante não só
para obter mais pus vacínico, mas também para verificar se a pessoa havia mesmo
sido imunizada. A ausência de bolha no braço era sinal de que o vírus não fora
inoculado adequadamente e o indivíduo não estava protegido, o que exigia uma
nova aplicação da vacina.
O problema é que muita gente simplesmente não voltava ao
vacinador, fosse pelos mitos em torno da vacina, fosse pelo incômodo da
aplicação, fosse por pura negligência. Os escravos eram os que menos
retornavam. Muitos senhores ignoravam a exigência para evitar que eles
perdessem o dia de trabalho.
Como consequência do não retorno no oitavo dia, pessoas
que acreditavam estar imunizadas acabavam mais tarde sendo pegas pela varíola.
Esses contágios inesperados reforçavam a perigosa e equivocada crença popular de
que a vacina não servia para nada ou provocava a própria enfermidade.
Em todo o Império, as epidemias se sucediam. Apenas no
Rio de Janeiro, que era a cidade onde a vacina estava mais disponível, as
bexigas mataram 7 mil pessoas em toda a década de 1870 — 2,5% da população. Nos
anúncios de jornal do tipo “procura-se escravo fugido”, era comum que os
senhores apontassem entre as características do fugitivo a presença de
cicatrizes de bexigas.
A varíola aparecia com frequência nas Falas do Trono, os
pronunciamentos que o imperador proferia no Senado no início e no fim de cada
ano, nos quais analisava os grandes problemas nacionais. Na Fala do Trono
inaugural de 1868, por exemplo, dom Pedro II disse que a doença estava
dificultando o avanço de tropas brasileiras na Guerra do Paraguai:
— Sinto profundamente dizer-vos que a varíola causou à
coluna expedicionária da capital da província de Mato Grosso perdas tão
consideráveis que a fizeram retroceder, tendo, demais, ceifado naquela cidade e
seus arredores grande número de vidas.
Em resposta à resistência da população, dom Pedro II assinou em 1846 um decreto tornando a vacinação obrigatória para todos os súditos. A norma também estabelecia que só poderia ser matriculado nos colégios e admitido no serviço público quem estivesse com a vacinação em dia. Como não eram tantos assim os adolescentes e as crianças que estudavam e os adultos que trabalhavam para o governo, o decreto foi solenemente ignorado pela maioria da população.
Por isso, em 1871, o senador Cruz Jobim apresentou um
projeto de lei que previa uma multa de 200 mil réis para o chefe de família que
deixasse de vacinar seus filhos e escravos. Toda pessoa que morresse de varíola
teria o corpo examinado, para saber se havia a marca da vacina. O Rio de
Janeiro já tinha uma lei local parecida, que tampouco era executada.
O projeto de lei agradou ao senador Franco de Sá (MA):
— Medida semelhante tem sido ultimamente adotada por
governos de nações adiantadas. Além disso, demasiadas nunca serão as cautelas
tendentes a conter a propagação do tremendo flagelo da varíola.
Chamado ao Senado para tratar da questão, o
primeiro-ministro Marquês de Olinda jogou um balde de água fria no projeto de
Cruz Jobim e afirmou aos senadores que seria impossível fechar o cerco e multar
aqueles que fugiam da vacinação obrigatória:
— Na Inglaterra, na França e na Alemanha, pode
executar-se o rigor, em razão da aproximação da população à roda das
autoridades. Assim mesmo, escapam muitos. Mas nós sabemos bem que não é
possível executar isso nas nossas capitais e muito menos no interior.
O projeto de 1871 não foi aprovado. A varíola continuaria
matando brasileiros por mais um século. Na década de 1960, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) iniciou uma campanha internacional de erradicação por
meio da vacinação em massa. No Brasil, o último caso foi registrado em 1971. Em
1980, a OMS declarou que o mundo estava finalmente livre da doença, e a vacina
deixou de ser aplicada. Entre 1900 e 1979, a varíola matou 300 milhões de
pessoas em todo o planeta.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal faz uma
comparação entre as epidemias de varíola no Império e o ressurgimento do
sarampo com força total no Brasil de hoje:
— Os dois casos mostram que a negligência do brasileiro
em relação às vacinas é histórica. No entanto, na minha avaliação, a situação
atual é mais preocupante. No passado, os baixos índices de vacinação eram até
compreensíveis, pois de fato faltava conhecimento científico. Hoje, quando a
ciência dá explicações bastante convincentes, a negligência se tornou
indesculpável.
Fonte: Agência Senado
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