Gazeta da Torre
Tecnologias ultrapassadas e um ar de “tempos mais leves”:
a geração Z está resgatando uma década que mal viveu. Uma onda de nostalgia
pela época tomou conta das redes sociais, especialmente do TikTok, onde
hashtags do tema já ultrapassam 11 bilhões de visualizações. O movimento
nostálgico tem influenciado comportamentos, relançado produtos, resgatado
tecnologias ultrapassadas e revivido o sucesso de filmes, séries e músicas da
época, atingindo principalmente o público jovem. Acerca disso, levanta-se o
debate sobre os motivos que levam a geração Z, composta por pessoas nascidas do
final dos anos 1990 até o começo dos anos 2010, a se conectar emocionalmente
com uma época que não viveu plenamente e o que esse movimento revela sobre seu
estado emocional atual.
Segundo o professor Marco Antônio de Almeida, do curso de
Biblioteconomia e Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, conceitualmente, a nostalgia é a
idealização de um tempo passado, normalmente associado a um período ou lugar
com memórias felizes, mas, em sua opinião, esse sentimento é ilusório. “Uma
forma de solução imaginária para os problemas do presente é recuar para um
período onde aparentemente as pessoas eram mais felizes e as coisas eram mais
simples, só que isso é justamente uma idealização.”
Esse fascínio por uma época que muitos sequer vivenciaram
de forma consciente vai além da estética: para o professor, é uma forma de
escapismo. “Muitas vezes, essa nostalgia constrói tradições ou estabelece
pontes com períodos considerados superiores ao presente, justamente como forma
de evitar o enfrentamento das contradições do agora”, explica. “No entanto, se
for acompanhada de um olhar histórico e crítico, a nostalgia pode também
oferecer caminhos para refletir e encontrar respostas para os desafios atuais
e, nesse sentido, ela deixa de ser apenas uma fuga e pode se tornar uma
ferramenta positiva de compreensão e ação”, completa.
Saúde mental e a angústia do vazio
Em um mundo onde é quase impossível socializar, trabalhar
e obter educação sem tecnologia, os indivíduos da geração Z estão sempre
conectados, e isso está associado a taxas mais altas de depressão, transtorno
de déficit de atenção e vício em tecnologia. A American Psychological
Association (APA) afirma que os indivíduos da geração Z são mais propensos a
relatar problemas de saúde mental do que as gerações anteriores. Em uma
pesquisa de 2022, com 1.055 adultos da geração Z, um em cada quatro relatou ter
tido mais dias ruins do que bons em um período de um mês. Mais de dois em cada
cinco tinham um problema de saúde mental diagnosticado, com mais de um quarto
deles sendo durante a pandemia de covid-19 ou posteriormente.
Diferentemente da geração Z, a geração Y, formada por
pessoas nascidas do início dos anos 1980 até meados dos anos 1990, vivenciou a
transição do mundo analógico para o digital. A psicóloga clínica e diretora de
ensino Ana Cláudia de Barros, do Instituto de Estudos Psicanalíticos de
Ribeirão Preto (IEP-RP), ressalta as diferenças entre as gerações. “A geração
Y, os chamados millennials, viveu a transição do mundo analógico para o
digital. Nós vimos a internet surgir, mas também experimentamos a vida sem ela.
Isso nos deu, com todas as idealizações possíveis, uma experiência ampliada:
vivemos o novo, mas ainda com a chance de experimentar formas de vida mais
simples, fora da lógica tecnológica que predomina hoje”, explica. Ana ressalta
que gerações anteriores foram marcadas por ideais reguladores mais
tradicionais, como relações hierárquicas, o amor romântico e o desejo de
alcançar o emprego dos sonhos. “Já havia um conflito entre o desejo de
pertencimento e a promessa de liberdade individual e coletiva. Podemos dizer
que aprendemos a desejar por meio de narrativas mais lineares, com modelos de
vida mais estáveis e previsíveis.”
A geração Z, segundo a psicóloga, não viveu uma
transição, mas uma ruptura. “São os chamados nativos digitais, que cresceram
imersos na tecnologia, em um mundo em colapso, marcado por crises climáticas,
instabilidade política e, mais recentemente, pela pandemia, que atravessou
momentos importantes da adolescência e da entrada na vida adulta”, explica. “Os
jovens da geração Z enfrentam o que podemos chamar de uma angústia do vazio. Há
um desejo muito forte de pertencimento, de acolhimento, de encontrar algum tipo
de estabilidade em meio ao caos.” Segundo Ana, dessa forma é difícil esperançar
um futuro com as tantas incertezas e excessos da atualidade.
Influência das redes no retrô
Marcas de luxo estão explorando seus arquivos para
capitalizar a obsessão da geração Z com os anos 2000. A tendência ficou
evidente nas passarelas de outono/inverno de 2025, que, segundo a Vogue,
trouxeram uma forte sensação de déjà vu. Fora delas, o movimento também se
reflete no uso crescente de câmeras analógicas e filtros com estética retrô. Um
estudo do Mission Brasil, plataforma especializada em terceirização de serviços
digitais, apontou que as redes sociais têm papel decisivo na popularização
desses produtos nostálgicos: 92,3% dos 400 entrevistados reconhecem a
influência direta dos conteúdos digitais no consumo de itens vintage. Entre
eles, 38,7% consideram esse impacto significativo; 34,6% percebem alguma
influência; e 19%, pouca. Apenas 7,62% disseram não se sentir influenciados.
A psicóloga confirma o fenômeno. “Essas imagens e
referências constroem uma sensação de pertencimento, ainda que marcada por
filtros e projeções. Vivemos em uma lógica de visibilidade e espelhamento muito
imediatos, em que a noção de “quem eu sou” passa pela quantidade de seguidores,
curtidas e visualizações. É o que se pode chamar de um vínculo sem corpo,
mediado por telas, em um tempo acelerado ou até mesmo ausente, que dilui as
fronteiras entre presente, passado e futuro.” Ana concluiu que as redes sociais
exercem um papel central nessa compressão do tempo, com suas atualizações
constantes e excesso de estímulos. Ao mesmo tempo, revelam um certo mal-estar
contemporâneo e o desejo dos jovens de se localizar em um tempo e espaço que
ofereçam continuidade e sentido que tragam, enfim, uma forma de pertencimento.
Fonte: Jornal
da USP
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