Gazeta da Torre
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Festa do Saci em São Luiz do Paratinga - Foto:Divulgação/Bem Bolado |
Essa inversão cultural faz com que não lembremos que o
dia 31 de outubro, no Brasil, é dedicado a um personagem genuíno do folclore
nacional: o Saci-Pererê, que permanece parcialmente esquecido do nosso
imaginário.
Anualmente, comemora-se o Halloween no dia 31 de outubro.
“Gostosuras ou travessuras?”, perguntam as crianças ao saírem fantasiadas
pedindo doces de casa em casa. A festa, normalmente celebrada em países do
mundo anglófono – falante da língua inglesa -, foi importada para a cultura
brasileira.
A intensa influência, especialmente norte-americana, fez
com que o Dia das Bruxas, como ficou conhecido por aqui, fosse celebrado como
mais uma comemoração no calendário nacional. Personagens como vampiros e
bruxas, que não fazem parte da nossa cultura, foram incorporados às
festividades brasileiras, apesar das importantes lendas da cultura nacional que
poderiam ser celebradas, como o Saci-Pererê, menino negro de uma perna só que
usa uma carapuça vermelha e fuma cachimbo. Mas o que muita gente não sabe é
que, de fato, esse personagem também é comemorado no dia 31 de outubro, data
que foi oficializada em 2004 no Estado de São Paulo e, em 2010, em todo o País.
Para entender por que a celebração Halloween tornou-se
tão comum no Brasil, apesar da presença de figuras emblemáticas no folclore
brasileiro e que fazem parte do imaginário nacional, é preciso antes saber de
onde vem a cultura de celebrar essa data e de que formas ela chega até nós.
Origens das festividades
Normalmente, quando pensamos em Halloween, ou Dia das
Bruxas, imagens como fantasias, doces e abóboras esculpidas com rostos medonhos
vêm à nossa cabeça. Mas não foi sempre assim, como explica Ana Carolina
Chiovatto, doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Segundo ela,
as origens das celebrações baseiam-se na sobreposição de diversas culturas, com
a presença de festividades e rituais de diversos povos que aconteciam no mesmo
período.
Uma das origens do Halloween é o festival celta Samhain,
que marcava o fim do período de colheita, e era seguido do festival do Dia dos
Mortos, quando, supostamente, aqueles que se foram poderiam circular no mundo
dos vivos. A cultura celta contempla diversos povos que viviam na Europa e
tinham cultos em comum. “Essas festividades são comumente chamadas de pagãs, um
termo enviesado, já que pensamos no paganismo em oposição ao cristianismo como
ponto de vista dominante”, afirma Ana.
Com a conquista pelos romanos e a cristianização desses
povos, muitos desses cultos começam a ser modificados. “Os festivais celtas
estavam relacionados à fertilidade, tanto da terra e dos animais quanto das
pessoas, o que, para os cristãos, era considerado bárbaro. Por isso, houve uma
tentativa de apagamento desses rituais”, aponta ela.
Os povos cristãos, então, passaram a celebrar seus mortos
no dia 2 de novembro e, no dia em que os celtas celebravam o Dia dos Mortos
(1º), instituem o Dia de Todos os Santos. “O cristianismo instituiu o Dia de
Todos os Santos porque, segundo sua visão, são eles os mortos aos quais devemos
prestar culto”, diz Ana. Além disso, para a visão cristã, a ideia de que as
almas pudessem circular no mundo dos vivos era extremamente pagã. “Por isso, os
cristãos distanciaram-se da celebração celta: o Halloween (31), véspera do Dia
de Todas as Almas (all hallows’ eve) distancia-se da sua origem”, ela explica.
Ana esclarece, por fim, que hoje o 31 de outubro possui
dois lados: um das religiões neopagãs, que buscam reavivar o sentido do
Samhain; e o outro, do festival relido pelo cristianismo, que vai se converter
na festa infantil das “gostosuras ou travessuras”, tão comum nos Estados
Unidos, com a qual temos contato e, aos poucos, vamos incorporando.
A chegada do Halloween ao Brasil
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Festa do Halloween |
A população brasileira teve contato com o Halloween, como
é celebrado nos dias atuais, por meio de filmes, séries de TV e outros produtos
culturais estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos. Mas por que os
brasileiros decidem celebrar a data da
mesma forma como nos EUA?
Esse quadro pode ser explicado por meio de um conceito
esboçado pelo teórico estrategista de relações internacionais, Joseph Nye, o
soft power, normalmente traduzido como “poder brando”. Alexandre Ganan
Figueiredo, historiador e pesquisador de pós-doutorado pela Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP,
explica que esse termo diz respeito a um conjunto de iniciativas não militares
ou econômicas, a fim de que um Estado atinja seus interesses de política externa.
“O soft power diz respeito à capacidade de um país ter
influência direta em outros por meio de sua cultura, sua capacidade de se
projetar como exemplo para o mundo”, ele explica. No caso dos EUA, um exemplo é
a “poderosíssima indústria cultural norte-americana”, como produções de
Hollywood e de séries de TV, que chegaram ao Brasil logo após a Segunda Guerra
Mundial, “praticamente junto com a televisão”.
Outras formas desse poder se manifestam na influência
acadêmica, como a leitura e intercâmbio de pesquisadores. Por fim, Figueiredo
descreve também como elemento desse tipo de influência a exportação de um
estilo de vida ideal, apresentado como um modelo a ser copiado. “Isso é muito
forte aqui, seja no consumo dos produtos estrangeiros ou até mesmo copiando
seus costumes, como é o caso da comemoração do Halloween no Brasil”, diz.
Ainda segundo Figueiredo, é tanto por meio do consumo da
cultura norte-americana, como filmes e séries, quanto pela busca do ideal
americano de vida, que a celebração do Halloween vai se instalando no País. “O
Dia das Bruxas não possui relação com as tradições e a formação cultural
brasileiras, por isso não é usual”, conclui Figueiredo.
31 de outubro:
por aqui, é celebrado o Saci-Pererê
É a partir da perspectiva de que não há ligações entre a celebração do Halloween e a cultura
brasileira que, em 2003, apresentou-se um projeto de lei para que, no dia 31 de
outubro, fosse celebrado no Brasil o Dia do Saci, um dos mais conhecidos
personagens do folclore nacional. Em 2004, a data foi oficializada no Estado de
São Paulo e, em 2010, no País.
“Além disso, havia uma percepção de que cada vez mais
escolas do ensino básico valorizavam o Dia das Bruxas no modelo
norte-americano”, aponta. Tendo o Brasil um folclore muito rico, com lendas e
histórias vindas da miscigenação entre diversos povos, o que é próprio da nossa
formação como País, foi colocado em questão: “Por que não promover uma reflexão
sobre o papel da cultura nacional?”.
O Saci é uma lenda que traz tradições principalmente do
Sul e do Sudeste do Brasil, mas apresenta características intrínsecas à
formação do Brasil. “O Saci é um jovem negro, com seu cachimbo, um elemento
indígena. Além disso, traz elementos da cultura árabe, que dominou, durante
séculos, a Península Ibérica”, explica o historiador. Os elementos da cultura
árabe presentes na lenda do Saci-Pererê manifestam-se na lenda do menino que
pode ser preso em uma garrafa e conceder desejos, dispositivos narrativos presentes
no ciclo de As Mil e Uma Noites, coleção de narrativas onde se encontra a
figura do Gênio da Lâmpada. “A própria lenda dessa personagem representa o
amálgama da nossa cultura.”
Algumas cidades do Brasil, sobretudo nos municípios de
São Paulo, começaram a fazer festas para essas lendas do folclore nacional no
dia 31 de outubro. “Em São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba, temos a
Sociedade dos Observadores de Saci, que todo ano promove a Festa do Saci”,
conta Baronetti.
O pesquisador explica que os estudos folclóricos no
Brasil, desde o início do século 20, por meio do Movimento Folclórico
Brasileiro, e grandes estudiosos, como Mário de Andrade e Edison Carneiro,
buscam a inserção desses temas nas escolas. “O Dia do Saci tem o papel de
estímulo, de resgate da nossa cultura, e é justamente um contraponto a esse
projeto colonizador e imperialista que busca inserir aqui esses elementos
alheios à nossa cultura.”
“A ideia não é acabar com o Halloween, mas criar um
contraponto para que as crianças, além da tradição estrangeira, já conhecida,
passem a ter contato também com tradições e culturas nacionais”, conclui o
historiador, resgatando um pensamento de Plínio Marcos, dramaturgo brasileiro,
dizendo que “um povo que não ama e preserva as suas formas de expressão mais
autênticas jamais será um povo livre”.
Fonte:Jornal da USP
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