Gazeta da Torre
Em decisão histórica impulsionada pelo coletivo Pretos na
Moda, a SPFW determinou que 50% dos modelos devem ser negros, indígenas ou
asiáticos
No mês dedicado à consciência negra, os organizadores da
São Paulo Fashion Week tomaram uma decisão nunca antes vista nos 25 anos do
evento: estabeleceram que 50% dos modelos devem ser negros, indígenas ou
asiáticos, visando à equidade étnico-racial na maior semana de moda do País. A
ação é resultado da reivindicação do coletivo Pretos na Moda, que assinou um
tratado moral com os organizadores do evento. Em caso de descumprimento do
acordo, a marca poderá ser suspensa dos desfiles. O anúncio aconteceu nos
perfis do Instagram da São Paulo Fashion Week e do coletivo Pretos na Moda. A
determinação começa a valer já neste ano e deverá se estender para as próximas
edições.
Além da pandemia de covid-19, o ano de 2020 foi marcado
por protestos antirracistas que tomaram conta de todo o mundo, culminados no
assassinato de George Floyd e Breonna Taylor, vítimas da brutalidade policial
contra pessoas negras nos Estados Unidos. Na Semana de Moda de Milão, o
movimento Vidas Negras Importam na Moda Italiana focou nos estilistas negros
para conscientizar sobre a importância da diversidade. Já na Semana de Moda de
Paris, Naomi Campbell discursou sobre racismo e cobrou representatividade. No
Brasil, o perfil no Instagram Moda Racista, que foi retirado do ar, denunciou
as discriminações cometidas por grandes nomes da moda contra profissionais do
setor.
A diversidade representa o Brasil real
O estabelecimento de ações afirmativas no setor da moda
permite que as passarelas retratem com maior acuracidade a diversidade
étnico-racial da população brasileira. É essencial que o debate não fique
restrito aos desfiles e seja estabelecido também em todos os níveis
hierárquicos das indústrias, compartilha a designer de moda Maria do Carmo
Paulino dos Santos, doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestra em Têxtil e Moda pela
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP: “Precisamos adentrar a
indústria e fazer esse debate. Precisamos falar dessa diversidade e de sua
valorização em todos os espaços, cargos e funções dessa cadeia produtiva, para
que se possa avançar nessa discussão”.
Até que ponto vai a inclusão?
A modelista Maria do Carmo não acredita que a atitude da
São Paulo Fashion Week represente uma ruptura nos padrões da indústria da moda,
porque a assinatura do tratado moral pode estar também conectada a questões
econômicas, como atingir um novo público consumidor, o que torna a absorção da
diversidade uma ferramenta de estratégia. “A indústria da moda vem dentro desse
ranço escravocrata que sempre operou fazendo vistas grossas para as questões
étnico-raciais. Não acredito que ela vá mudar por conta desses movimentos
antirracistas da atual conjuntura. O que vai forçar uma fissura nesse setor é a
questão econômica, ou seja, o poder de compra da população negra.” Para ela, a
indústria da moda foca na lucratividade antes da humanidade e, por essa razão,
ainda está distante das pautas sociais: “Entrar nessa pauta hoje é mais um
modismo do que de fato uma ação social”.
Ao questionar se a indústria da moda utiliza as pautas
raciais como forma de oportunismo, Maria do Carmo avalia que dar visibilidade
às minorias sociais pode significar uma maneira de impulsionar os negócios:
“Por conta desse interesse capitalista de grandes marcas de estampar o rosto de
uma pessoa negra no seu produto, para vender mais ou para gerar mais
engajamento, eu penso que essa indústria não está atenta a essas questões
políticas e sociais que envolvem a população negra. Se a gente não ficar
atenta, amanhã vem uma outra onda e o negro acaba ficando de lado de novo”.
A descolonização da SPFW
Os negros e pardos constituem cerca de 56% da população,
segundo levantamento de 2019 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). A reivindicação do coletivo Pretos na Moda marca um passo
importante no combate ao racismo e na conquista do lugar social dos negros e
indígenas, como explica a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente, do
Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP: “O
movimento Pretos na Moda está contribuindo para a cidadania dos profissionais,
sobretudo dos modelos. Já há muito observamos que a cidadania dos negros
brasileiros tem dependido muito da sociedade civil organizada e de seus
movimentos. A assinatura de um tratado moral expressa um momento novo, ou seja,
de caminhos legais e pacíficos para enfrentar o racismo estrutural presente no
Brasil”.
Na visão da professora Eunice, antes da determinação que
garante 50% de negros, indígenas ou asiáticos nas passarelas, a São Paulo Fashion
Week apresentava um Brasil branco inexistente: “A SPFW estava descaracterizada
porque estava colonizada. Ela apresentava um Brasil europeu quando, na verdade,
o Brasil é diverso, formado por vários povos, e entre eles estão os negros, tão
presentes na sociedade”.
O racismo estrutural impede a equidade racial
O principal fator que impede a maior representatividade
de negros e indígenas, seja nas passarelas ou em outros lugares, é o racismo
estrutural. Apesar de o Brasil ter ratificado a Convenção Internacional Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1968, ainda pouco foi
feito para combater efetivamente o racismo e para conquistar a equidade social.
Eunice afirma que o racismo na sociedade brasileira naturalizou e banalizou o
maltrato ao outro e o desrespeito à diversidade étnica do País. “O racismo é
estrutural porque não há placas com proibições a negros ou indígenas, mas
malevolamente, racionalmente, são colocados obstáculos por instituições
públicas e privadas. Isso é racismo estrutural. E não causa espanto à sociedade
porque o racismo está naturalizado entre nós.”
A professora Eunice acredita que a educação e a
informação são as diretrizes para garantir que as minorias sociais conquistem a
equidade: “O nosso caminho é informação e educação. A SPFW está colaborando com
a informação e com a educação porque o que é produzido ali é arte e a arte
instrui e encanta”. A ação do coletivo Pretos na Moda é um marco histórico no
setor, mas o combate ao racismo e a luta pela ampliação da diversidade deve ser
de todos, como informa Maria do Carmo: “Temos que dar os méritos para essa
juventude, esses jovens negros, que estão fazendo esse enfrentamento. E esse
enfrentamento também precisa ser feito por costureiras, por nós, modelistas,
pelos estilistas, que também se sentem prejudicados e que não conseguem espaço.
Esse enfrentamento é de todos nós”, finaliza.
Ouça a entrevista de Maria do Carmo Paulino dos Santos,
doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e mestra em Têxtil e Moda pela Escola de Artes, Ciências e
Humanidades (EACH) da USP, e de Eunice Aparecida de Jesus Prudente, do
Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP, ao
repórter Kaynã de Oliveira sobre o tratado moral entre o coletivo Pretos na
Moda e os organizadores da São Paulo Fashion Week, o qual exige equidade
étnico-racial nos desfiles.
Fonte:Jornal da USP
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