Gazeta da Torre
Kabengele Munanga é professor brasileiro-congolês e
doutor em Antropologia pela USP
De todos os africanos transportados para as Américas
através do tráfico atlântico entre os séculos XVI e XIX, cerca de 40% deles
tiveram o Brasil como país de destinação. De acordo com os resultados do último
censo populacional realizado pelo IBGE em 2010, a população negra, isto é,
preta e parda, constitui hoje cerca de 51% da população total, ou seja, 100
milhões de brasileiros e brasileiras em termos absolutos. O que faz do Brasil o
maior país da população negra das Américas, e mesmo em relação à África dita
Negra, o Brasil só perde da Nigéria, que é o país mais populoso da África
Subsaariana.
Mas qual é o lugar que essa população negra ocupa no
Brasil de hoje depois de 130 anos da abolição da escravatura? Responderia que este lugar entrou no processo
afirmativo de sua construção somente a partir dos últimos vinte anos no máximo.
Se depois da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, o Brasil oficial
tivesse desde já iniciado o processo de inclusão dos ex-escravizados africanos
e seus descendentes no mundo livre e no mercado de trabalho capitalista
nascente, a situação do negro no Brasil de 2018 seria certamente diferente em
termos de inclusão social. Nada foi feito, pois o negro liberto foi abandonado
à sua própria sorte e as desigualdades herdadas da escravidão se aprofundaram
diante de um racismo sui generis encoberto pela ideologia de democracia racial.
Trata-se de um quadro de desigualdades raciais acumuladas nos últimos mais de
trezentos anos que nenhuma política seria capaz de aniquilar em apenas duas ou
três décadas de experiência de políticas afirmativas. Por isso, a
invisibilidade do negro, ou melhor, sua sub-representação em diversos setores
da vida nacional que exigem comando e responsabilidade vinculados a uma
formação superior, ou universitária e técnica, de boa qualidade é ainda patente.
Era preciso começar a partir de algum momento, em vez de
ficar eternamente preso ao mito de democracia racial que congelou a mobilidade
social do negro nesses 130 anos da abolição. O início é como todos os inícios,
geralmente lento, pois encontra em seu caminho hesitações, resistências e
inércia das ideologias anteriores. Mas, de qualquer modo, se começou sem recuo,
como se pode perceber hoje em algumas áreas como a Educação. As universidades
que adotaram políticas de cotas para ingresso de negros e indígenas tiveram nos
últimos dez anos um número de alunos negros e indígenas proporcionalmente
superior ao de todos os negros que ingressaram em suas escolas durante quase um
século da criação da universidade brasileira. Dizer que essas políticas são
paliativas, como ouvi tantas vezes, não condiz com o progresso de inclusão
observável e inegável. Certo, concordamos todos que é preciso melhorar o nível
da escola pública, realidade à qual ninguém se contrapõe, apesar da consciência
de que a escola pública não melhorará amanhã diante dos lobbys dos donos das
escolas privadas e da falta da mobilização da sociedade civil brasileira em
todas as suas classes sociais para mudá-la.
A data de 13 de maio é sem dúvida uma data histórica
importante, pois milhares de pessoas morreram para conseguir essa abolição
jurídica, que não se concretizou em abolição material, o que faz dela uma data
ambígua. Na versão oficial da abolição, coloca-se o acento sobre o
abolicionismo, mas se apaga ao mesmo tempo a memória do que veio antes e depois.
Nesse sentido, a abolição está inscrita, mas esvaziada de sentido. A Lei Áurea
de 13 de maio de 1888 é apresentada como grandeza da nação, mas a realidade
social dos negros depois desta lei fica desconhecida. Visto deste ponto de
vista, o discurso abolicionista tem um conteúdo paternalista. A questão do
negro tal como colocada hoje se apoia sobre uma constatação: o tráfico e a
escravidão ocupam uma posição marginal na história nacional. No entanto, a
história e a cultura dos escravizados são constitutivas da história coletiva
como o são o tráfico e a escravidão. Ora, a história nacional não integra ou
pouco integra os relatos de sofrimento, da resistência, do silêncio e
participação.
A abolição da escravatura é apresentada como um evento do
qual a República pode legitimamente se orgulhar. Mas a celebração da data até
hoje tenta fazer esquecer a longa história do tráfico e da escravidão para
insistir apenas sobre a ação de certos abolicionistas e marginalizar as
resistências dos escravizados. A mim me parece que a celebração acompanha-se de
uma oposição sempre atualizada de duas memórias: memória da escravidão
negativamente associada aos escravistas e a memória da abolição positivamente
associada à nação brasileira. No entanto, as duas memórias deveriam dialogar
para se projetar no presente e no futuro do negro, ou se constituindo numa
única memória partilhada.
A proposta de transformar 20 de novembro em data da
consciência negra partiu da iniciativa do saudoso poeta Oliveira Silveira, do
Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, e virou uma iniciativa do Movimento Negro
como um todo a partir do início da década de 70. Através do trabalho das
entidades negras, essa proposta ganhou força em todo o País, e gradativamente
passou a ser reconhecida pela mídia e pela sociedade em geral. Zumbi dos
Palmares foi reconhecido oficialmente, a partir do governo Fernando Henrique
Cardoso, como herói negro dos brasileiros. Hoje, o dia 20 de novembro é
comemorado universalmente em todo o País, sendo considerado feriado oficial em
vários estados e dezenas de municípios. Em vez de comemorar 13 de maio, data em
que a princesa Izabel assinou a Lei Áurea, que aboliu a escravatura, o
Movimento Negro prefere simbolicamente se concentrar na data de 20 de novembro,
que tem a ver com a luta para a segunda e verdadeira abolição da escravatura.
Por isso, novembro se transformou nacionalmente em mês da Consciência Negra.
Ninguém se ilude ao acreditar que todos os problemas da população negra se
resolvem em 20 de novembro, mas trata-se de um mês que tem um profundo sentido
simbólico e político no processo de sensibilização, politização e
conscientização sobre as práticas racistas e as consequentes desigualdades que
dificultam a plena inclusão do Segmento Negro na sociedade brasileira.
Fonte: Kabengele Munanga doutor em Antropologia
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