Gazeta da Torre
O confinamento imposto pela situação de emergência na pandemia da covid-19 vem escancarando a relevância de três setores fundamentais do Brasil: as universidades públicas, o Sistema Único de Saúde e o correio.
Com as instituições e o comércio fechados por meses,
tanto o envio de documentos essenciais quanto a compra de produtos básicos
foram realizados a distância, sendo possível, na maioria dos lugares, por conta
do serviço postal. Como teriam sido esses primeiros meses de pandemia sem um
correio público no Brasil?
Com mais de três séculos e meio, o correio foi um
elemento fundamental no processo de integração territorial brasileiro.
Inicialmente conectando algumas cidades do litoral à metrópole lusitana, aos
poucos o serviço postal e telegráfico foi se difundindo até alcançar, no último
quartel do século XX, todo o território nacional. Com o advento da internet, as
teses que advogaram o fim do correio não se confirmaram: do contrário, houve um
aumento significativo do fluxo postal e o surgimento de serviços expressos com
rastreamento permitiu maior agilidade. Na virada do século, o advento do
comércio eletrônico culminou num crescimento do correio sem precedentes, tendo
o Brasil passado de 6 para 9 bilhões de objetos postais/ano entre 2000 e 2010.
Por sua relevância para a integração territorial, o
serviço postal está incluído na Constituição de 1988, que atribuiu à União
competência em oferecê-lo de maneira universal. Única instituição pública
presente em todos os 5.570 municípios brasileiros, os Correios possuem uma
capilaridade que o serviço bancário ou o acesso à internet jamais alcançou,
cobrindo todo o território por meio de agências próprias. Essa conexão dos
lugares é um atributo que permite a integração de um território vasto e
desigual, como o brasileiro.
Não é o mesmo realizar uma logística em São Paulo e nas cidades ribeirinhas da Amazônia. Mais difícil é realizar ambas ao mesmo tempo, de maneira articulada, o que possibilita aos Correios um papel como “braço logístico” do Estado para a execução de políticas públicas, dentre as quais destaco três pela atualidade na conjuntura. Parte significativa dos materiais que chegam aos postos de saúde e unidades de atenção básica nos municípios são entregues pelos Correios, aí incluídas as vacinas, especialmente para as cidades pequenas, que são a maioria. Para o Ministério da Educação, o correio público é essencial na distribuição de livros didáticos a tempo do calendário escolar, maior operação dessa natureza no mundo; além dos exames como o Enem, que acontecem concomitantemente em todos os lugares e as provas são entregues e devolvidas pelos Correios. Agora, nas eleições, parte do material necessário, em muitos casos as próprias urnas eletrônicas, devem ser entregues a tempo e em segurança em todo o País. Isso custa pouco (ou nada) para um Estado que possui uma empresa estatal.
Contudo, eventualmente ressurge a proposta de
privatização dos Correios, geralmente descontextualizada da discussão
necessária e valendo-se apenas dos balanços fiscais, que já voltaram ao azul
após um breve período de problemas entre 2015 e 2017, e deve crescer muito após
a pandemia. Devemos ter em conta, também, que os Correios não utilizam dinheiro
proveniente de impostos, sendo uma empresa cujos lucros custeiam totalmente sua
operação.
No mundo, o modelo de serviço postal público é
absolutamente majoritário, cuja importância foi mais uma vez destacada pelos
recentes embates envolvendo o voto pelo correio nas eleições presidenciais dos
EUA, país que mantém a estatal USPS. Experiências de privatização como na
Argentina ou Portugal, por outro lado, não se mostraram adequadas porque a
empresa privada restringiu o atendimento às maiores cidades e regiões mais
lucrativas.
Ocorre que a maioria dos países tem absoluta noção do que
significa para a soberania nacional entregar um serviço estratégico para uma
empresa privada, principalmente no caso de empresas estrangeiras como FedEx,
DHL ou Amazon, que já anunciaram interesse na compra dos Correios. Não apenas o
controle dos fluxos que articulam os lugares, estão em jogo também as
informações do cadastro de endereços e o que chega aos domicílios. O princípio
da inviolabilidade postal não estaria garantido em empresas que já demonstraram
como tratam os dados dos consumidores.
Por isso mesmo um processo de privatização dos Correios
precisa passar por uma mudança na própria Constituição, no rito de 3/5 de
aprovação em duas votações nas duas casas do Legislativo. As consequências da
privatização, uma proposta que atenderia aos interesses de empresas
estrangeiras, poderiam ser sentidas desde as pequenas cidades que ficariam sem
atendimento e na inviabilidade de políticas públicas universais, até no próprio
comércio eletrônico com a eliminação de um agente logístico que atende a todos
os lugares.
É preciso retornar, portanto, para a discussão da
cidadania e do serviço postal como um direito universal constitucional. A saída
estaria em reassumir um projeto nacional condizente com a Constituição vigente
e garantindo a integração territorial conquistada com séculos de dificuldades.
Nessa empreitada, duas ideias fundamentais podem nos inspirar: a insistência
num modelo cívico do território, como postulou o geógrafo Milton Santos; e
busca por uma alternativa de logística para os lugares, como pleiteava Bertha
Becker em seus estudos sobre a Amazônia brasileira.
Por Igor Venceslau, doutorando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
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