Gazeta da Torre
Projeto de uma década da diretora Marcela Lordy, longa
tem como protagonista Simone Spoladore, cujo ar melancólico e distante casa
perfeitamente com a atmosfera onírica da obra
“A mais premente necessidade de um ser humano era
tornar-se um ser humano.” Essa é a premissa que guia o romance Uma aprendizagem
ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, publicado em 1969, em que a
autora, mais uma vez, lança-se a desvendar as profundezas da alma. Ela escreve
Lóri, uma professora de primária do Rio de Janeiro, na casa dos 30 anos, que
vive sozinha em um grande apartamento à beira-mar que ganhou do pai e que não
sabe se relacionar com os outros nem com o mundo. O mal-estar da existência é
tudo o que lhe consome. E é essa crise existencialista que chega ao cinema pela
mão e direção de Marcela Lordy, diretora de O livro dos prazeres, um dos
destaques da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Clarice Lispector (10/12/1920 - 09/12/1977) |
Lordy, de 46 anos, que também dirigiu A musa impassível
(2011), cumpriu a missão quase impossível de adaptar um livro quase
inadaptável, uma vez que a obra literária transcorre quase que exclusivamente
nos pensamentos de Lóri —por medo da dor, a personagem não se permite sentir
nada—. “O maior desafio foi justamente criar dramaturgia, construir ações e
sensações. Quis fugir da voz em off para explicar o filme”, diz ao EL PAÍS a
diretora, que trabalhou o projeto durante dez anos. A obra tem sua estreia nos
festivais precisamente no ano do centenário de Clarice Lispector.
Tanto o livro quanto o longa —que entrará em cartaz no
segundo semestre de 2021— mostram a transformação de Lóri em uma mulher inteira
(no sentido existencial e metafísico da coisa), que se abre aos sentimentos, às
sensações, alegrias e desgostos da vida. Um dos catalisadores dessa
transformação é o professor de filosofia Ulisses (no filme, o argentino Javier
Drolas, de Medianeras), que é o único homem com quem ela começa a construir uma
relação para além de encontros de uma noite só e que a faz questionar os rumos
de sua solidão.
“É uma história de construção individual e, ao mesmo tempo,
de desconstrução do amor romântico”, diz a diretora. Ela própria deparou-se com
o livro pela primeira vez quando também tinha cerca de 30 anos e acabava de
sair de um casamento de uma década. Foi também dessa experiência que nasceu a
vontade de contar a vida e os processos sentimentais de uma mulher que, pouco a
pouco, vai tomando as rédeas de sua própria vida. No filme, o preenchimento do
vazio no qual Lóri vive imersa acontece também de forma física, à medida em que
ela vai mobiliando e decorando o grande apartamento que abriga seu corpo e
mente.
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A Diretora Marcela Lordy |
A própria Clarice, uma autora que busca transcender o
cotidiano e construir personagens sempre na iminência de um milagre, uma
explosão ou uma descoberta, por mais singela que seja, parece ter tido
dificuldade em acessar o subjetivo dessa mulher inalcançável. “Este livro se
pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim.
Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte que eu”, escreve a autora na
nota que abre o livro.
Uma mulher livre
Lóri vem de uma tradicional e abastada família de Campos
de Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, mas se muda para a capital
carioca após a morte da mãe, o que, para ela, também representou uma espécie de
libertação do pai e dos quatro irmãos, todos homens. No filme, que prima pela
feminilidade —inclusive com uma equipe de mulheres—, a figura da mãe ausente é
outro instrumento pelo qual a protagonista começa seu processo de humanização e
autoconhecimento. Ausente no livro, o quarto antigo da mãe, onde Lóri encontra
um velho diário dela, se transmuta em um espaço de conexão consigo mesma. Mas
parece que quanto mais se entende e mais livre se descobre, mais medo ela sente
de permitir-se o encontro com o mundo e com outro. Teme que isso possa podar
sua liberdade.
Outro mérito do filme de Marcela Lordy é inverter o fio
condutor do romance: se Ulisses desempenha esse papel no livro, no longa, é
Lóri quem tece e destece —literal e metaforicamente, como ela faz com uma velha
manta de tricô no apartamento— sua jornada. Em ambas obras, no entanto, Ulisses
mantém seu tom professoral, de sábio no alto de um pedestal, cujo didatismo
resulta, por vezes, irritante. Mas ele reconhece as próprias falhas. Em um dos
encontros com a protagonista, se autodenomina como “um pouco machista,
preconceituoso e egocêntrico”. Seria Ulisses um esquerdomacho dos tempos
modernos? A diretora ri: “Tem um pouco disso, sim”.
Essa inversão no fio narrativo permite desdobramentos que
são apenas pincelados no original de Clarice, como a relação de Lóri com seus
alunos: ela leva seus dilemas existencialistas para a sala de aula, na
esperança de preparar os pequenos para a vida de uma forma que ela mesma nunca
foi preparada. “Vocês também sentem silêncio dentro?”, pergunta ante os
olhinhos brilhantes e atônitos da turma. “Ela se permite abrir-se para a
relação com essas crianças, experimentando uma forma de amor incondicional, quase
maternal”, explica Lordy.
Mas a grande epifania da protagonista não surge do amor
ao outro, mas do encontro com si mesma em sua inteireza e em comunhão com o
mar, em uma das mais belas cenas do filme. E, ali, Lóri está sozinha, mas
presente e pulsante, fruindo o mundo pela primeira vez. Enquanto ela mergulha e
brinca na água, com o sal invadindo sua boca, narinas e olhos, sua humanidade
se completa. Clarice Lispector dizia que escreveu O livro dos prazeres apesar
de si mesma. Anos depois da publicação, também afirmou em uma entrevista: “Esse
livro me humanizou”. Com o filme, isso se repete: é impossível não sair mais
humana dessa experiência estética e existencial.
Fonte:El País
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