Gazeta da Torre
Muita gente fica intrigada com o sucesso do chamado
reality show Big Brother Brasil (BBB). Os comentários, ao menos por parte de
certo segmento sociocultural, são de que o programa é a própria celebração da
mediocridade. As pessoas caem matando a expressão é importante tanto no
programa, quanto no nível dos participantes. Mas, se faz sucesso, é porque
responde a alguma demanda dos telespectadores. De algum modo, o sucesso sempre
tem sentido. Mas qual? Desconfi o de interpretações fáceis como a platéia
também é medíocre ou somos todos voyeurs. Neste pequeno artigo, tentei ir além
do senso comum, ensaiando uma interpretação psicanalítica desse fenômeno
contemporâneo.
O BBB dispensa maiores apresentações: mesmo quem nunca
assistiu, tem uma idéia do que se trata. O programa se estrutura em torno de um
suspense e da participação do público, que vota semanalmente em quem será
excluído, ou melhor, em quem irá para o paredão. Para que o público possa
votar, a atuação dos participantes no dia-a-dia do programa é decisiva.
Aparentemente, estão apenas conversando, namorando, fazendo ginástica, indo a
festas. Mas nós (e eles) sabemos que estão se digladiando para eliminar os
outros e vencer. Fazem alianças, traem, simulam, dissimulam, enfim, tentam
agradar os eleitores. É tudo ou nada: ou a celebridade instantânea, ou a volta
ao anonimato que, na sociedade do espetáculo, é, simbolicamente, o mesmo que
morrer. É, pois, uma luta de vida ou morte. Vence o melhor, segundo critérios
não muito claros. Simpatia? Amizade? Sedução? Esforço pessoal? A fraqueza ou a
desvantagem de um dos competidores? Pode ser que não haja critério algum
operando em nível consciente, mas simplesmente o jeito da pessoa, que agrada
ou não à maioria.
O fato é que paredão, para nós, brasileiros, é uma
clara referência à morte. Disse acima que as pessoas caem matando sobre o
programa e o nível dos participantes. E, quando escrevi que eles se digladiam
pela sobrevivência, fiz nova referência à morte, dessa vez, evocando a
gladiatura romana. O psicanalista trabalha com a linguagem, em seu sentido mais
amplo. Toma o discurso do paciente (ou o texto, ou o fenômeno social) ao pé da
letra, valoriza cada palavra dita, e também a que não foi dita. Segue o fi o da
meada das palavras, para ver onde vai dar. Vejamos.
Como os participantes do BBB, os gladiadores também
lutavam entre si até o fim. Quando o gladiador vitorioso encurralava o
oponente, convocava o voto popular, que podia ser referendado pelo imperador:
polegar para cima, vida; polegar para baixo, morte. A vida do perdedor podia
ser poupada, se o público o considerasse um lutador valoroso e digno. Em caso
contrário, paredão.
A luta entre os gladiadores, ou entre feras e
gladiadores, era totalmente realista, e isso empolgava as platéias de Roma.
Tratava-se, de certa forma, de um reality show. Era parte da estratégia de
despolitização do povo - a conhecida política do pão e circo. Os participantes
eram escolhidos em função de seu porte, de sua força e de seu físico. Eram
treinados para proporcionar um bom espetáculo, combatendo com bravura e
morrendo com dignidade. Podiam ser escravos, prisioneiros de guerra ou
cristãos, mas até mesmo homens livres se candidatavam, pois era um caminho
possível e rápido para a ascensão social. A entrada no Coliseu era gratuita, e
as pessoas da platéia podiam apostar no seu favorito. A gladiatura era tema das
conversas no dia-a-dia. O leitor pode encontrar facilmente os pontos de aproximação
com o BBB.
O programa escolhe os jovens participantes de modo a
oferecer suportes identificatórios para os vários perfis de telespectadores.
Além disso, como o voto para a exclusão sistemática envolve toda a população,
esta se identifica também com o lugar do poderoso, que ergue ou abaixa o
polegar. E, evidentemente, com o sobrevivente, pois, durante o processo,
fazemos a catarse da angústia que nos assombra no cotidiano: a angústia da
exclusão social, digital, do mercado de trabalho etc. Até a semana que vem, se
tudo correr bem, continuamos no páreo.
Há outro elemento que entra na análise do BBB e que, a
meu ver, é o decisivo para caracterizá-lo como espetáculo pós-moderno e para
compreender seu sucesso. Como na gladiatura, o reality show oferece carne
humana para nosso repasto. Somos também o leão na arena, como veremos.
Em outro artigo (Minerbo, no prelo), faço uma análise do
filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (1971). Ali, mostro que a distância
entre a coisa e o símbolo vem diminuindo progressivamente, a ponto de o símbolo
já não se sustentar na ausência da coisa, precisando da presença de verdade do
simbolizado. No filme, a gangue de Alex brinca de atacar pessoas que simbolizam
uma civilização em seu ocaso, mas os ataques são de verdade, donde o nome
reality game. O 11 de setembro, por exemplo, foi um ataque a um símbolo do
capitalismo, as Torres Gêmeas, mas foi um ataque de verdade, pois as torres
realmente ruíram, matando milhares de pessoas. Em vários fenômenos
contemporâneos (body art, certos crimes em que pais matam filhos e vice-versa),
observamos uma mesma lógica subjacente: a fratura do símbolo e a desnaturação
da linguagem.
No reality show, faz-se do defeito, virtude. A graça toda
consiste em não sabermos ao certo quanto de representação e quanto de realidade
há naquilo tudo. O reality show é um espetáculo e, ao mesmo tempo, é de verdade.
Os participantes do BBB são pessoas comuns lutando por ascensão social e, nesse
sentido, são de verdade. Mas há uma dimensão de representação, já que se trata
de um jogo em que eles representam pessoas comuns lutando por ascensão social.
Mas quanto realismo é admitido? Nesse BBB7, não há mais
os participantes sorteados, que eram de verdade demais feios, gordos, velhos,
pobres, ignorantes, sem sex appeal e que, pasmem, acabaram vencendo o último
BBB! Provavelmente estragava o suspense, pois o critério para a votação
tornou-se muito evidente: favorecer o desfavorecido.
Mas também não pode haver realismo de menos. O
organizador do programa tem que aparecer o mínimo possível, ocultando seu
caráter de espetáculo. O BBB nos é apresentado como realidade, e assim deve
parecer, embora haja, obviamente, alguém que edita, ainda que minimamente, as
filmagens. O sucesso do BBB depende de um equilíbrio perfeito entre realismo
demais e realismo de menos.
Pois bem, sem desconhecer o lado de representação do
reality show sabemos que é um show vou enfatizar o reality, isto é, sua
dimensão realista, de verdade, pois é essa que nos coloca na posição de
leões, isto é, de devoradores de carne humana. Quando assistimos a um
espetáculo nos moldes clássicos teatro, circo, e mesmo a novela, já que
estamos falando de televisão , há, entre nós e o corpo dos atores, mediações
simbólicas importantes. Seu corpo é o suporte do roteiro, de personagens
laboriosamente construídos, há o talento, a iluminação, o palco, enfim, uma
série de recursos que se interpõem entre nós e eles. Graças a essas mediações,
o corpo do ator transcende seu estatuto de mera exibição de carne humana e
passa a ter valor simbólico, tornando-se ator no sentido forte da palavra. Ele
passa a ser o suporte necessário para a expressão do talento (ou mesmo para a
falta dele aqui, o que vale é a intenção). No espetáculo clássico, o corpo é
representação. No BBB, o corpo é obsceno, não porque esteja quase nu, mas
porque é um corpo-carne, sem valor simbólico, pura realidade, excessivamente de
verdade quando comparado com o corpo do teatro, do circo ou da novela.
Obsceno: fora da cena - da cena simbólica.
No circo, há uma condição em que essa distância entre o
corpo-carne e o corpo-representação diminui até quase desaparecer: é quando se
apresentam o anão e a mulher barbada. Ainda assim, eles têm um lugar simbólico
legítimo na estrutura circense: eles estão no picadeiro. Tampouco no
strip-tease estamos diante de um corpo-carne, pois há o talento da dançarina em
desnudar-se. Eles não se exibem como se estivessem em suas casas, exibem-se
para nós. Nenhum desses casos é um reality show.
No reality show, o corpo apresentado é o real. Os jovens
estão naquela casa preparando um suco de laranja, nadando na piscina,
namorando, dormindo e se digladiando por um lugar ao sol no futuro, e tudo isso
é de verdade. A casa em que eles vivem nos meses de duração do show não tem o
mesmo estatuto simbólico de um palco, de um picadeiro ou de uma arena, como na
gladiatura. Eles não vão para suas casas para dormir, voltando no dia seguinte.
É realmente uma casa, com quartos, cozinha, banheiro, piscina. É claro que é uma
casa especialmente preparada para esse fim - é uma casa literalmente
cinematográfica: há câmeras em todos os aposentos. Nos bastidores, sabemos,
está o apresentador, e precisamos ignorar isso para entrar no espírito da
coisa.
Mas os diálogos certamente não provêm de um roteiro; os
jovens não estão representando personagens. Os participantes são apenas o que
são: participantes. Contudo, diferentemente de um jogo, em que há as regras do
jogo, ou da novela, em que há um roteiro, na casa do BBB eles farão mais ou
menos o que fariam na vida real; dirão mais ou menos o que diriam na vida real.
E, sem roteiro, ninguém foge ao que é - ninguém pode ser muito diferente do que
determina seu inconsciente.
Lançados num palco, sem roteiro, bons atores improvisam
bem, maus atores improvisam mal. Mas no reality show as pessoas são obrigadas a
ser o que são de verdade. Nesse sentido, estão realmente expostas, e em três
sentidos: ao nosso massacre como são medíocres! -, ao paredão e,
principalmente, expostos em toda sua nudez psíquica. E aqui começa a violência
do espetáculo - violência que a plebe consome com prazer. Sem o saber, os
participantes estão expostos ao público como carne humana. Assim como o gladiador
enfrenta o leão praticamente desarmado, apenas com um escudo, eles se expõem e
enfrentam o público desarmados, diretamente, sem a proteção das mediações
simbólicas ou com mediações simbólicas mínimas, quando se lembram de que é
apenas um jogo. Aliás, há os que fazem questão de ter isso sempre em mente -
proteção necessária - e os que detestam se lembrar disso. De qualquer forma,
entre nós e eles não há nada. Se eles são ridículos, ou medíocres, não é porque
o personagem que representam seja ridículo ou medíocre, mas porque eles o são.
Tanto quanto na gladiatura, há violência nessa relação não mediada com o corpo
do outro. Há violência no consumo do corpo-carne do outro.
O público desses shows aprecia não propriamente o
ridículo da participação de um ou a simpatia do outro, mas a obscenidade e a
violência que marcam a ausência de mediações simbólicas na relação com o outro.
É a gladiatura pós-moderna. Nesse sentido, o espetáculo é feito sob medida para
a nossa época e merece o sucesso que tem.
Artigo de Marion Minerbo, doutora em Medicina (Psicanálise) pela UNIFESP
- divulgação -
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