Gazeta da Torre
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A filósofa Carissa Véliz |
Antes mesmo de você sair da cama ou desligar o alarme do
seu celular, muitas organizações já sabem a que horas você vai acordar, onde
dormiu e até com quem.
E quando você acordar e pegar o celular, eles ainda
saberão muitos mais detalhes particulares sobre você: pela música que você
toca, eles vão deduzir, por exemplo, seu humor.
Até mesmo ligar a máquina de lavar ou fazer café pode
revelar informações pessoais.
Seus gostos, seus hobbies, seus hábitos, seus
relacionamentos, seus medos, seus problemas médicos...
Praticamente tudo o que fazemos é espionado e controlado
por empresas que, por sua vez, compartilham todas essas informações pessoais entre
si e com vários governos.
Não se trata apenas de venderem os seus dados pessoais,
mas do imenso poder de influenciar que isso lhes confere.
Esses assuntos são abordados em Privacy is Power (ou
Privacidade é poder), o livro que acaba de ser publicado no Reino Unido pela
filósofa mexicana-espanhola Carissa Véliz, professora do Instituto de Ética e
Inteligência Artificial da Universidade de Oxford.
Nascida no México em uma família espanhola que teve que
deixar a Espanha após a Guerra Civil e encontrar refúgio naquele país, Véliz se
interessou por privacidade quando começou a investigar a história de seus
parentes em arquivos da Espanha.
"Fiquei pensando se eu tinha o direito de saber o
que meus avós não me contaram sobre a Guerra Civil Espanhola", explica
Véliz.
Hoje ela é uma especialista em privacidade e no imenso
poder que nossos dados pessoais conferem a empresas e governos.
ENTREVISTA da BBC News Mundo
BBC News Mundo - Por que a privacidade é importante?
Carissa Véliz - A privacidade é importante porque a falta
dela dá aos outros imenso poder sobre nós. Quando outras pessoas sabem muito
sobre nós, elas podem interferir em nossas vidas.
A privacidade nos protege de abusos de poder. Por
exemplo, ele nos protege contra a discriminação. Se seu chefe não souber a
religião que você segue, ele não poderá discriminá-lo.
A privacidade é como a venda que cobre os olhos da
Justiça para que o sistema nos trate com igualdade e imparcialidade.
Neste momento, não somos tratados como iguais: não vemos
o mesmo conteúdo online, não nos são oferecidas as mesmas oportunidades, muitas
vezes não pagamos o mesmo preço pelos mesmos produtos — graças a algoritmos de
sites da internet que usam nossos dados para nos oferecerem informações e
produtos diferentes.
Se somos tratados de acordo com nossos dados (se somos
mulheres ou homens, magros ou gordos, ricos ou pobres) não somos tratados como
cidadãos iguais. Privacidade é poder.
Se continuarmos dando nossos dados a empresas, não devemos
nos surpreender depois que os ricos serão quem escreve as regras de nossa
sociedade. Se dermos aos governos nossos dados, não devemos depois nos
surpreender que esses mesmos governos passem a nos controlar.
Para que a democracia seja forte, os cidadãos devem estar
no controle dos dados. É por isso que a privacidade é uma preocupação política
— e não apenas individual.
BBC News Mundo - Quais dos nossos dados são coletados por
meio de dispositivos eletrônicos? Você pode nos dar alguns exemplos?
Véliz - Tudo que você pode imaginar e um pouco mais. Quem
são seus amigos e familiares, onde você mora, onde trabalha, com quem dorme, se
está sendo infiel ao seu parceiro, sua orientação sexual, suas opiniões
políticas, que carro você tem, quanto dinheiro você ganha.
Também quanto gasta, se tem dívidas, se foi vítima ou
autor de um crime, o que come, quanto bebe, se fuma, o que compra, se tem
alguma doença, o que o preocupa, a que horas vai dormir e a que horas acorda,
como você dirige, o que você procura na internet, o que chama sua atenção, qual
é o seu humor.
Seu carro, por exemplo, se for 'inteligente', fica atento
à música que você gosta e o assento mede até seu peso.
BBC News Mundo - E que uso é feito desses dados e por
quem?
Véliz - Todas essas informações são vendidas a quem
oferecer o lance mais alto. Os 'data brokers' compilam dossiês sobre os usuários
da internet e os vendem.
BBC News Mundo - Quem os compra?
Véliz - Empresas de marketing, seguradoras, bancos,
empregadores em potencial e até governos e, em alguns casos, criminosos que
desejam roubar sua identidade.
BBC News Mundo - Que dano isso pode causar — que alguns
de nossos dados pessoais sejam conhecidos por outros?
Véliz - Os danos podem ser tanto individuais (alguém
roubando seu número de cartão de crédito e comprando algo com ele, ou alguém
roubando sua identidade e cometendo crimes em seu nome), quanto danos coletivos
(hackeando nossa democracia, como a empresa Cambridge Analytica tentou,
enviando propaganda personalizada, incentivando algumas pessoas a votarem e
desencorajando outras, ou enviando notícias falsas para confundir a população e
gerar desconfiança).
Em casos extremos, a falta de privacidade mata: de
suicídios por humilhação pública (como aconteceu no ano passado na Espanha) a
regimes autoritários que usam dados pessoais para perseguir certos grupos (a
China usa dados biométricos e pessoais para perseguir os uigures).
Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os
nazistas usaram registros públicos para procurar judeus.
Na França, onde o censo não coletou informações sobre
religião por motivos de privacidade, eles encontraram e mataram apenas 25% da
população judia.
Na Holanda, onde existiam registros muito detalhados de
domicílio e religião, eles encontraram e assassinaram cerca de 75% da população
judia. A diferença são centenas de milhares de pessoas.
Como essa informação não existia na França, os nazistas
confiaram a tarefa de coletar dados sobre religião a René Carmille, Controlador
Geral do Exército francês.
Carmille disse que usaria máquinas Hollerith, que
funcionavam com cartões perfurados da IBM, para fazer um censo. O que os
nazistas não sabiam é que Carmille era uma das pessoas mais importantes da
Resistência Francesa.
Ele reprogramou as máquinas para que não perfurassem a
coluna 11, onde os cidadãos indicavam sua religião. Ao não coletar essas
informações, Carmille salvou centenas de milhares de vidas.
Vista dessa forma, a falta de privacidade (indiretamente)
causou a morte de mais pessoas do que o terrorismo.
No meu livro, argumento que você deve pensar nos dados
pessoais como se fossem uma substância tóxica, porque de certo modo é. Eles
estão envenenando nossas vidas, como indivíduos e como sociedades.
Os dados pessoais devem ser regulamentados da mesma forma
que regulamentamos outras substâncias tóxicas, como o amianto.
BBC News Mundo - As informações coletadas sobre nós podem
ser usadas para discriminar algumas pessoas ou para outros fins perversos?
Véliz - Claro. Imagine que uma empresa deseja contratar
alguém. Você tem dois candidatos que são igualmente competentes.
A empresa compra os dados de ambos os candidatos e
percebe que um deles professa uma religião ou apoia um partido político
contrário às crenças do chefe da empresa.
Ou você fica sabendo que um candidato tem um problema de
saúde que pode ser sério no futuro, ou que tem filhos pequenos.
A empresa pode contratar o candidato que tem a religião certa, ou que apoia o partido político que eles apoiam, ou pode preferir o candidato mais saudável, ou o que não tenha família para distraí-lo.
Discriminação é ilegal, mas quem vai ficar sabendo? Você
pode ter sido vítima de discriminação e nunca descobrir.
BBC News Mundo - Como sociedade, por que é importante
mantermos nossa privacidade?
Véliz - Porque sem privacidade não há garantia de
igualdade, nem justiça, nem liberdade, nem democracia. A vigilância em massa é
incompatível com o Estado de Direito.
A arquitetura da vigilância é perfeita para cairmos em
uma sociedade de controle ou com tendências autoritárias. A liberdade de
pensamento não pode ser garantida quando tudo o que lemos está sendo observado.
A confidencialidade entre advogados e clientes, ou
médicos e pacientes, não pode ser garantida quando tudo o que dizemos se
transforma em dados que são coletados, analisados e vendidos.
A falta de privacidade ameaça nossa autonomia, nossa
capacidade de governar a nós mesmos, como indivíduos e como cidadãos.
Como pode haver confiança entre os cidadãos, ou debates
políticos saudáveis, se há atores estrangeiros querendo hackear nossa
psicologia, usando dados sobre os nossos medos para incitar o conflito entre
nós?
BBC News Mundo - Mark Zuckerberg, presidente e fundador
do Facebook, declarou em 2010 que "a era da privacidade acabou". É
isso mesmo? Precisamos nos resignar ao fato de que empresas e governos sabem
cada vez mais sobre nossa vida pessoal?
Véliz - Zuckerberg teve e ainda tem interesse financeiro
no fato de as pessoas acreditarem que a privacidade é coisa do passado. Mas a
privacidade é mais relevante do que nunca.
Tente pedir a um estranho que lhe forneça a senha de seu
e-mail: ninguém vai dar isso a você. A privacidade não morreu. Pelo contrário.
Este é apenas o começo da luta por nossa privacidade online.
O próprio Zuckerberg, percebendo que as pessoas estão
cada vez mais preocupadas com sua privacidade, mudou o tom de sua publicidade e
afirmou no ano passado que o futuro é privado.
Não, não devemos nos resignar. Devemos lutar por nossa
privacidade, porque há muita coisa em jogo. Nossa forma de vida está em jogo.
Nosso futuro e o futuro de nossos filhos.
Mesmo nas sociedades mais capitalistas, concordamos que
certas coisas devem estar fora do mercado. Por exemplo, se colocarmos os votos
à venda, corroemos a democracia. Se vendermos o resultado das partidas de
futebol, arruinamos o esporte.
Temos que colocar nossos dados pessoais nessa lista de coisas
que não deveriam estar à venda. Permitir que os urubus de dados lucrem
aprendendo sobre nossas vulnerabilidades é escandaloso.
BBC News Mundo - Como você pode combater a perda de
privacidade individualmente? Você pode nos dar alguns conselhos práticos?
Véliz - Pare de usar o Google; use DuckDuckGo. Pare de
usar o WhatsApp; use Signal. Não forneça seus dados pessoais para quem não
precisa deles.
Se uma empresa pedir seu e-mail e não precisar dele, dê
um e-mail falso, assim como você daria um telefone falso para alguém
inconveniente que não aceita "não" como resposta.
Não viole a privacidade de terceiros: não poste fotos ou
mensagens de alguém sem seu consentimento, e não compartilhe nenhuma imagem ou
vídeo que viole a privacidade de alguém.
Não seja um acessório para vigilância em massa. Evite
comprar objetos que se conectam à internet se não for necessário.
Eletrodomésticos como máquinas de lavar e chaleiras
funcionam melhor se não estiverem conectados à Internet e não puderem ser
hackeados.
Informe-se mais sobre o assunto privacidade. Leia sobre
isso, e comente. Exija que as empresas e seus representantes políticos protejam
a sua privacidade.
BBC News Mundo - Ter privacidade é um direito? E se for,
quem deve garantir e proteger esse direito?
Véliz - Sim, a privacidade é um direito humano, é um direito
tanto legal como moral.
É dever dos governos e dos cidadãos proteger esse
direito, assim como o seu direito à vida é protegido tanto pelo Estado quanto
pelas pessoas ao seu redor.
BBC News Mundo - E por que o direito à privacidade não é
protegido?
Véliz - A privacidade não está sendo suficientemente
protegida por razões financeiras, porque a venda de dados é lucrativa. É por
isso que eu argumento em meu livro, "Privacidade é poder", que nós
temos que acabar com a economia de dados.
Enquanto os dados forem lucrativos, haverá abusos.
Algumas pessoas podem pensar que é radical fazer uma chamada para encerrar a
economia de dados.
Mas o radical é ter um modelo de negócios que dependa da
violação massiva e sistemática de nossos direitos.
BBC News Mundo - Há quem diga que não se preocupa que
empresas e governos tenham acesso aos seus dados privados e pessoais, que elas
não têm nada a esconder. O que diria a essas pessoas?
Véliz - Diria que você tem muito a esconder e a temer, a
menos que seja um exibicionista com desejos masoquistas de sofrer roubo de
identidade, discriminação, desemprego, humilhação pública e totalitarismo,
entre outros riscos possíveis.
Outra coisa é que você não sabe o que tem a esconder.
Você pode ter uma doença que ainda não se manifestou, mas que, quando os
abutres de dados descobrirem (e eles podem descobrir antes de você), eles
usarão isso contra você.
Um problema com a privacidade é que muitas vezes não
percebemos como ela é importante até que a perdemos e sofremos as
consequências. E então é tarde demais.
BBC News Mundo - Que implicações éticas existem por trás
da perda de privacidade que sofremos?
Véliz - Muitas. Talvez a mais importante seja que Estados
e empresas de comércio de dados estão apoiando um sistema econômico
profundamente imoral, porque ele depende da violação sistemática de nosso
direito à privacidade.
BBC News Mundo - Alguém pode fazer uso político de nossos
dados pessoais? A falta de privacidade pode ser uma ameaça à democracia?
Véliz - Sem dúvida. Já aconteceu com Cambridge Analytica,
que interferiu no referendo do Brexit e nas eleições americanas em que Trump
ganhou.
A empresa usou dados pessoais para tentar convencer os
cidadãos que votariam em Hillary Clinton de que votar não valia a pena, por
exemplo. O conteúdo personalizado é tóxico e deve ser banido.
Ninguém tem acesso direto à realidade: sabemos (ou
pensamos saber) o que está acontecendo no mundo por meio de nossas telas. Se a
informação que uma pessoa recebe é diametralmente diferente daquela de seu
vizinho, não há como se entender e ter uma discussão racional.
Cada um vai pensar que o outro é louco. Mas não somos
loucos, estamos simplesmente sendo expostos a imagens do mundo tão diferentes
que não são compatíveis.
Quando o conteúdo que vemos é individual, a esfera
pública se fragmenta em realidades individuais, guetos informativos.
BBC News Mundo - Ainda estamos a tempo de recuperar nossa
privacidade?
Véliz - Estamos na hora certa. Podemos proibir a economia
de dados, forçar os abutres de dados a apagar nossas informações confidenciais,
impor deveres fiduciários a qualquer pessoa que manipule nossos dados (de tal
forma que os nossos dados só possam ser usados por nós e nunca contra nós,
exatamente como acontece com os médicos, que só podem usar o que sabem para nos
beneficiar e nunca para nos prejudicar), melhorar nossos padrões de segurança
cibernética e muito mais.
Estamos passando por um processo de civilização
semelhante ao que passamos no contexto pré-digital. Conseguimos transformar o
Velho Oeste em um lugar habitável.
Graças à regulamentação, podemos confiar que os alimentos
vendidos no supermercado são (relativamente) comestíveis, que os carros que
dirigimos são (relativamente) seguros e que a água que bebemos é
suficientemente limpa.
No futuro, teremos imposto as medidas adequadas para confiar
que podemos usar a tecnologia sem que ela nos use. Algo importante a ter em
mente é que a tecnologia pode funcionar perfeitamente bem sem a necessidade se
negociar com nossos dados.
A venda de dados é apenas um modelo de negócios. Podemos
financiar tecnologia de outras maneiras.
BBC News Mundo - Por que você se interessou pelo tópico
de privacidade?
Véliz - Meu interesse pela privacidade começou como um
assunto pessoal. Eu estava pesquisando a história da minha família nos arquivos
da guerra civil na Espanha.
Descobrir certas coisas que não sabia sobre meus avós me
fez pensar se eu tinha o direito de saber o que eles não me contaram e se tinha
o direito de escrever sobre isso.
Filósofa, busquei respostas em minha disciplina, mas elas
não me satisfizeram.
Naquele mesmo verão, quando visitei os arquivos com minha
mãe, (Edward) Snowden revelou que o mundo inteiro estava sendo monitorado
eletronicamente por agências de inteligência. Isso me chocou. Então comecei a
investigar a privacidade com mais seriedade.
Acabei escrevendo minha tese de doutorado na Universidade
de Oxford sobre ética e política de privacidade. Quanto mais eu leio sobre
isso, mais o estado de nossa privacidade me preocupa.
Quanto mais eu leio história, mais percebo que a economia
de dados é uma loucura absoluta, que é extremamente perigoso ter tantos dados
populacionais mal protegidos.
Vender para quem quiser comprar é colocar a população em
risco constante. Os dados pessoais frequentemente acabam sendo abusados, mais
cedo ou mais tarde.
Eles são uma bomba-relógio.
Irene
Hernández Velasco
BBC News Mundo
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