Gazeta da Torre
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Por Camila Assunção Crumo, mestrada em Sociologia do Consumo e Socióloga Digital na FFLCH/USP |
Um dos trunfos da lógica consumista contemporânea é a
transfiguração do individualismo em preservação da saúde mental. O pulo do gato
consiste em igualar as fragilidades psicossociais causadas pelo funcionamento
predatório de um capitalismo que individualiza a responsabilidade pelo sucesso
e pelo fracasso em um contexto de competição esmagadoramente desigual, com o
impulso egoísta de desfrutar de seu prazer independentemente do efeito que isso
possa ter sobre outras pessoas.
A atribuição de propriedades terapêuticas ao consumo
abafa qualquer discussão. Afinal, não se critica algo que “faz bem” à saúde.
Esquece-se, assim, o caráter socialmente determinado dessas “necessidades”,
alimentadas cada vez mais pela ânsia de mimetizar o que se vê nas luminescentes
telas de celulares.
As redes sociais, hoje presentes no cotidiano de boa
parte da população, funcionam como uma espécie de vitrine da vida que vale a
pena, centrada na estética e no prazer. Especialmente nas redes
imagem-centradas, como Instagram e TikTok, os influenciadores desfilam seus
hábitos, opiniões e, sobretudo, produtos que consomem.
Os feeds dessas mídias funcionam, então, não só como
catálogos, mas também como bússolas da vida ideal, saudável, a vida leve, cheia
de belas paisagens, peles hidratadas, pratos exóticos e ambientes cools. Neles,
o termo “autocuidado” aparece inúmeras vezes associado ao consumo de produtos
de preços exorbitantes, destinados ao cultivo de algo muito importante nesse
universo intrinsecamente estético: a beleza. Enquanto isso, “saúde mental” vira
hashtag dos registros de viagens e passeios.
Em condições normais de temperatura e pressão, tal
fenômeno já geraria uma série de problemas estruturais, como a destruição de
áreas naturais até então preservadas e sem capacidade para receber visitação em
massa, tal como vem acontecendo em diversas praias do litoral norte de São
Paulo. Um prejuízo ambiental irrecuperável. Mas em tempos em que o País está
sendo assolado de forma ímpar por um vírus altamente transmissível e capaz de
gerar danos graves a quem o contrai, tratar a própria saúde mental –
frequentando restaurantes ao menor sinal de relaxamento das restrições, por
exemplo, ou viajando nos feriados prolongados decretados para substituir
covardemente as medidas sanitárias imprescindíveis, porém impopulares – acarreta um impacto social cruel: a ameaça à
saúde física das pessoas mais vulneráveis, justamente aquelas que precisam
trabalhar para viabilizar esse consumo.
Sempre que você se hospeda em um hotel que alega seguir
“todos os protocolos de segurança”, camareiras terão que sacudir o lençol e
recolher o lixo do banheiro com restos de excrementos. No interior dos
restaurantes, os funcionários terão de passar o dia expostos a clientes que,
obviamente, comerão sem máscaras. Nesses e em outros casos, pessoas são
colocadas em risco em prol de seu suposto cuidado com a saúde mental, mantida à
base de curtidas nas redes sociais.
Há ainda quem tente justificar a coisa toda com base no
“altruísmo”, já que estariam fazendo a economia “girar”, salvando empregos.
Engana-se, porém, quem acredita que seu consumo individual heroicamente salvará
os negócios. A economia precisa de gente para progredir, pessoas vivas e
saudáveis, o que depende de políticas públicas, como expansão de crédito e
renda básica para a população. Pouco ajuda nisso o tratamento peculiar de sua
saúde mental.
O disfarce do egoísmo em cuidado de si, mesmo que
perfumado de responsabilidade socioeconômica, relaciona-se diretamente ao
menosprezo das fragilidades de outrem. Seria melhor que o investimento em saúde
mental – algo que, de fato, deve ser intensificado em uma pandemia – fosse
direcionado a um especialista que ajudasse os afetados a lidarem com a
incansável necessidade de colecionar validações digitais. Afinal, a busca por
curtidas só reforça, em vez de aliviar, o peso da ilusão de que somos os únicos
responsáveis por nossos sucessos e fracassos.
Fonte:Jornal da USP
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