Gazeta da Torre
Sambas sobre culturas, saberes e religiosidade da África
e dos afrodescendentes transformam a avenida em sala de aula quando chega o
Carnaval. Especialistas destacam o papel das agremiações em preservar as
memórias da população negra e as narrativas afrocentradas. Ainda pouco
valorizadas no ensino formal, elas se entrelaçam com as origens das próprias
escolas de samba.
No Carnaval de 2025, o Anhembi e a Marquês de Sapucaí
tiveram muitas oportunidades para aprender com esses professores do samba. Três
quartos das agremiações do Grupo Especial do Rio de Janeiro desfilaram cantando
sambas-enredo sobre tradições e religiosidades africanas e afro-brasileiras.
Em São Paulo, ainda que em número menor (apenas quatro,
em comparação às nove cariocas), as escolas com propostas afrocentradas são
símbolos de representatividade. Neste ano, por exemplo, a Gaviões da Fiel
levaram pela primeira vez um samba sobre temática africana à passarela.
Para o jornalista Aydano André Motta, especialista na
cobertura do carnaval, a escolha pelos temas reflete um ganho de consciência da
comunidade carnavalesca em falar sobre si e sobre as histórias de seus
fundadores. “Ainda existe um racismo muito forte no Brasil. Existe lei que
obriga o ensino de cultura africana, mas nem todo mundo cumpre. Nesta sociedade
em disputa, as escolas escolhem propor temas de muito questionamento político e
de exaltação às tradições afro-brasileiras e indígenas. Elas vão para a avenida
apresentar histórias pouco contadas na literatura e na educação”, avalia.
Cláudia Alexandre, pós-doutoranda em Antropologia pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, corrobora a
análise, apontando que as agremiações têm um papel educativo: “A escola de
samba é uma escola. Quando ela propõe o enredo, ela precisa explicar essa história,
desde a comissão de frente até a última ala. Nenhuma escola vai para a avenida
para que o seu enredo não seja entendido. Isso é até quesito de julgamento.
Quando dizem que ‘ninguém entende’, quem não entende? Quando os jurados dão
nota 10 para um enredo, eles não entenderam? Quando o público canta e bate
palma para a escola passar, eles não estão entendendo?”.
Memória e resistência
Felipe Gabriel Oliveira, doutorando em Antropologia
Social pela FFLCH, salienta que os enredos afro são uma maneira de colocar os
temas plurais em debate no ambiente público, abordando problemas como racismo e
intolerância religiosa. Nesse sentido, o Carnaval é uma data muito
significativa para a valorização da cultura afro-brasileira devido a sua
projeção nacional. Em entrevista a diferentes veículos de imprensa, às vésperas
do carnaval, declarações polêmicas do carnavalesco Paulo Barros enfatizaram
ainda mais a necessidade da discussão.
“Por mais que o ciclo carnavalesco dure o ano inteiro,
você tem praticamente um ou dois meses de intensa cobertura jornalística. O
fato de uma população marginalizada e perseguida ter um momento de palco em que
ela é aplaudida, canta o seu samba com muito orgulho e mostra a sua identidade
com maior brilho, é uma forma de demarcar uma posição. É uma valorização de
identidades, costumes, ideologias e religiões que não encontram muito espaço em
outros períodos do ano”, diz Oliveira.
Cláudia afirma que é impossível separar o samba e o
Carnaval das reverências aos ancestrais e aos orixás. “Há muita representação
do terreiro na existência e na presença de uma escola de samba no Carnaval.
Cada vez que se reverencia, mantém-se viva a lembrança de onde vieram e do
processo histórico de luta e resistência pelo qual os negros passaram para hoje
estarem livres, aberta e democraticamente reverenciando os seus [iguais e
deuses]”.
Samba para quem o criou
Doutora em Ciência da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Cláudia explica que as escolas de
samba são uma criação da população negra submetida ao trabalho escravo no
Brasil. Forçados a atravessar o Atlântico, os negros foram separados de suas
comunidades, destituídos de suas posses e obrigados a trocar de nome. Reduzidos
a corpos, trouxeram consigo apenas bens imateriais: suas crenças e tradições.
Ao longo de todo o processo de escravidão, eles
encontraram na tradição oral e nas artes corporais, como o canto, a dança e o
batuque, uma maneira de manter vivas a fé e as ligações com os antepassados.
“Os batuques foram se tornando samba, os cantos e lamentos de reza foram se
tornando música e as formas de dançar nos terreiros foram sendo reproduzidas
nas procissões”, aponta a pesquisadora.
Sem incentivos governamentais de integração social após a
libertação, a comunidade negra fundou mecanismos de socialização. “Com a
urbanização do Rio de Janeiro, principalmente, e a disputa por espaço,
cidadania e identidade, as escolas de samba vão sendo constituídas como uma
forma de organização da sociabilidade desses territórios negros. A articulação
da festa refaz esses laços comunitários que foram massacrados durante o período
da escravidão. Isso é uma tecnologia política”, analisa Oliveira.
Disputas e contradições
Segundo o pesquisador Felipe Oliveira, a escolha dos
temas a serem cantados pelas escolas nos sambas é um reflexo do tempo e da
sociedade em que são elaborados. Ele acrescenta que as escolas de samba também
existem em suas contradições e disputas sociais, relembrando enredos como os da
Beija-Flor, nos anos 1970, que exaltavam feitos da ditadura militar.
“Do final da década de 2010 para cá, as temáticas
religiosas passaram a ser de fato a temática de maior visibilidade, ao invés de
ficarem só de uma maneira cifrada nos sambas. Então, o enredo fala, por
exemplo, sobre a história ou mito de orixá. Talvez isso tenha sido influenciado
por um cenário político em que você tem a defesa de pautas antirracistas e uma
valorização cada vez maior das religiões de matriz africana”, analisa Oliveira.
Aydano Motta menciona como exemplos a necessidade de
dinheiro e a midiatização do Carnaval como tensões muito presentes nas
discussões sobre a celebração. Neste ano, a Grande Rio recebeu o maior
patrocínio da história do Carnaval: R$ 15 milhões para elaborar um enredo sobre
o estado do Pará.
“Antigamente, como seria? Iam exaltar as riquezas
culturais do Pará e, no fim, trazer alguma obra do governador Helder Barbalho.
Hoje, os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad exigiram que pudessem
escolher o tema. Eles foram ao Pará, pesquisaram e montaram o enredo: a lenda
sobre três princesas turcas, Jarina, Erundina e Mariana, que se encantaram na
floresta amazônica e viraram entidades da floresta. Para mim, é o samba mais
bonito do Carnaval”, opina.
Fonte: Jornal
da USP
Imagens: @reginetebispo
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