Gazeta da Torre
Herdamos, no Brasil, um passado banhado de sangue. Por
quase 500 anos prevaleceu o direito de matar impunemente homens e mulheres
negros que ousavam se rebelar contra maus tratos de seus “proprietários”. Aos
rebelados, a pena de morte. Não é de estranhar a cruel violência patriarcal
herdada que prevalece até o presente e que se expandiu por todas as camadas da
população.
O aumento extraordinário de feminicídios e estupros de
mulheres e meninas são noticiados nas redes sociais, nos jornais e exibidos na
tv em programas que podem ser vistos em qualquer horário do dia ou da noite. O
tema, dramatizado em cenas cruas, quase não espanta mais. E, pior ainda, é
banalizado por profissionais que os deveriam punir (veja-se o caso Mariana
Ferrer entre outros).
Desde o século 19, jornalistas, escritoras, intelectuais,
militantes políticas, feministas denunciam a subordinação das mulheres cujas
liberdades são constrangidas pela tutela do pai, do marido e até do irmão. O
comportamento da dominação patriarcal reproduziu-se entre chefes, mestres de
fábrica, empregadores, e foi incorporado até mesmo por companheiros de partidos
políticos.
Foram décadas de lutas dos movimentos feministas para
superarem obstáculos e conquistarem a cidadania – desde o direito ao voto, a
eleição de mulheres para as Câmeras, o direito ao próprio corpo. Mesmo e
sobretudo durante as ditaduras de Getúlio ou de 1964-1985, os movimentos
feministas não deixaram de enfrentar opositores armados, buscando implantar os
direitos humanos para todos e especialmente para as mulheres. A militância
ensinou às mulheres que o poder estava na mão do Estado do qual estavam
excluídas. Em resposta, os movimentos feministas elaboraram estratégias para
participar das instituições estatais e elaboraram uma instituição original, o
Conselho Estadual da Condição Feminina (em São Paulo, 1992, e logo a seguir em
Minas, e depois em quase todos os estados).
Em meio a múltiplas demandas, ações contra a violência, o
machismo, o assassinato de mulheres eram prioritárias. No imaginário social,
havia um único caminho para as camadas populares e médias: recorrer às
delegacias de polícia. Buscar um advogado era serviço aventado apenas pelas
camadas ricas. Quando uma mulher era fortemente agredida por seu companheiro ou
marido, a delegacia de polícia era, em última instância, a autoridade máxima.
Desnecessário relatar que em geral, naquela instituição, as mulheres eram
desconsideradas, os casos minimizados e elas eram e são ainda, por vezes,
aconselhadas pelas “autoridades” a voltarem para casa e ficarem quietinhas. Ao
criar a Delegacia da Mulher (1985), a expectativa era que fossem recebidas como
pessoas com direitos, o que de fato ocorreu após muitos treinamentos. As
profissionais destas delegacias, por sua vez, e por serem mulheres, tiveram
múltiplas dificuldades para terem suas carreiras reconhecidas.
A partir da década de 1990, o Brasil assinou vários acordos
internacionais que reconheciam os direitos humanos das mulheres, ampliando o
campo da não violência. A lei Maria da Penha insere-se na articulação entre o
movimento feminista brasileiro e o campo internacional, pois, lembremos, o
agressor de Maria da Penha foi por duas vezes absolvido, até que o caso foi
levado à Comissão Latino-Americana dos Direitos Humanos. Justiça seja feita a
um grande grupo de feministas que se empenhou para que afinal Maria da Penha
tivesse seu caso revisto. A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de
2006, portanto, há 18 anos, mas durante esse período centenas de brasileiras
foram assassinadas e meninas estupradas e mortas.
Atualmente, quando ameaçada de morte por companheiro,
marido, ou outros homens com quem mantém relações afetivas, a mulher já não
suporta mais e pressente o pior, ela recorre a um juiz para obter uma “medida
protetiva”. Esse instrumento de proteção foi altamente procurado e encontrou
apoio no Judiciário.
É claro que essas medidas protetivas são importantes, mas
não bastam para eliminar o feminicídio. Visando aperfeiçoar o atendimento, o
serviço policial desenvolveu a Patrulha Maria da Penha, para prevenir ataques
às mulheres com medidas protetivas e outras ameaças. Esse programa começou em
2012 em Porto Alegre, em 2019 no Rio de Janeiro e, em 2020 em São Paulo.
Finalmente o programa foi apresentado e aprovado no Senado para vigorar no País
todo em 2021, há quatro anos! Não foi implantado ainda. Embora a Patrulha Maria
da Penha seja importante e tenha resultados positivos, é irreal supor que ela
venha se estender ao País todo. Outra medida eficiente e factível é o telefone
180 para atender mulheres em perigo ou que precisam de orientação. Há ainda
outra linha telefônica, o 190, que se liga diretamente à polícia quando o caso
é extremo e tem evitado feminicídios no Brasil e no exterior.
O sucinto retrospecto sobre medidas para evitar
violências contra a mulher e a menina aqui feito destacou medidas para defender
e fortalecer as mulheres. Essa avaliação permite apontar uma importante lacuna:
nesse quadro, onde estão os homens? E os meninos? Se queremos criar uma
sociedade igualitária, que respeite os direitos humanos de todos, é necessário
completar o planejamento com políticas e programas para os homens. Há no Brasil
um tímido movimento de educação masculina, “grupos reflexivos”, e há juízas e
juízes que encaminham homens “em situação de violência” para esses programas.
Em 2020, havia 312 grupos reflexivos voltados para encaminhar homens autores de
violência contra mulheres no Brasil. Os resultados apontam que após
frequentarem as reuniões por algumas semanas, os participantes desenvolvem
novos comportamentos em suas relações sociais e familiares.
Se quisermos tornar os comportamentos masculinos não
violentos, não agressivos, não se pode esperar que cheguem à idade adulta. A
orientação sobre igualdade de gênero deve se iniciar desde a primeira infância
para meninos e meninas: educar e socializar com programas que destaquem a
igualdade nas relações sociais de gênero, com respeito às diferenças – de
classe, gênero, cor, etnia.
Há enorme e forte reação a esse tipo de projeto. Uma
parcela da população, politicamente de direita, cria obstáculos tanto práticos
como ideológicos. No Legislativo, apresentaram pelo menos dois projetos:
Educação em Casa e Educação Militar. O primeiro pretende restringir
experiências extradomiciliares e implica no fortalecimento de um controle
patriarcal, conservador, impedindo diversidade religiosa e sexual. O segundo,
ainda acrescenta apagar a educação crítica e impõe comportamentos autoritários.
Recompondo todo o longo esforço para reduzir o
feminicídio e face ao seu crescimento, vale pensar que a violência contra a
mulher e a menina é um trágico sintoma de uma sociedade que caminha para
destruir a democracia.
Ainda é tempo de refletirmos.
Por Eva
Alterman Blay, professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP. Uma das pioneiras em pesquisas sobre as questões da
mulher e as relações sociais de gênero, como participação política. Publicou
livros e artigos sobre questões urbanas, habitação operaria, participação
política da mulher, Violência contra a mulher, Feminismo e masculinidades e
Imigração Judaica. É membro de várias associações cientificas internacionais e
nacionais. Consultora do grupo de investigação MCCLA ( Mulheres, Cultura,
Ciência, Letras e Artes) da Cátedra Convidada Infante Don Henrique pra Estudos
Insulares, Atlânticos e a Globalização.
Fonte: Jornal da USP
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