Gazeta da Torre
Quando a atriz Fernanda Antoniassi aceitou em 2020 uma
solicitação de amizade de um perfil falso com a foto do ator britânico Henry
Cavill, que deu vida ao Super-homem no cinema, ela não imaginava que começaria
a ser perseguida por um desconhecido.
Fernanda conta que, logo depois, a pessoa por trás do
perfil falso passou a interagir com a atriz.
“Sabia que era golpe, mas resolvi dar trela para juntar
provas e fazer uma denúncia seguindo o conselho de uma amiga advogada.”
Passados sete dias, Fernanda resolveu bloquear o perfil
em suas redes sociais.
“Foi quando ele passou a criar outros perfis e a me
mandar solicitação sem parar. Para piorar, em alguns, ele até tentava fazer
chamada de vídeo”.
Fernanda estava sendo vítima de stalking, termo em inglês
que designa o crime de perseguição no qual alguém invade repetidamente a vida
privada da vítima presencialmente ou na internet.
“Vivi essa situação durante semanas. Ele parava e,
depois, voltava. Até que um dia, resolvi atender uma das ligações”.
Foi quando, pela primeira vez, Fernanda conseguiu ver seu
perseguidor: um homem que ela diz nunca ter visto antes.
“Perguntei o que ele queria e disse que já tinha procurado
a polícia", conta ela.
"Foi quando ele me exigiu dinheiro para não matar
minha mãe, porque ele dizia saber onde morava, mesmo sem eu nunca ter lhe
falado.”
Ao desligar a chamada, a atriz levou as gravações para a
polícia. Mas ninguém foi formalmente acusado do crime até agora.
“Nesse meio tempo, minha casa passou a ser rondada por
carros, meu imóvel foi assaltado e já gravei dois drones a noite rondando a
casa onde vivo com meus pais”, diz Fernanda.
A atriz que teve que passar a fazer tratamento para
ansiedade após o caso: “Tenho medo dele estar mais próximo do que imagino”.
Fernanda diz que a última tentativa de contato do
perseguidor aconteceu no final de 2023.
“Depois que publiquei um relato nas redes sociais,
alertando outras mulheres, ele meio que parou, mas ainda sinto receio”, afirma
a atriz.
"Hoje, tenho medo de sair de casa e não voltar, pois
não sei quando estou ou não sendo perseguida.”
155 casos por dia
Histórias como a de Fernanda são mais comuns do que se
imagina.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
apontam para uma média de cerca de 155 casos de stalking registrados por dia
nas delegacias brasileiras.
Para se ter uma ideia, apenas em 2022, 56.560 casos do
tipo foram registrados no país.
São Paulo (17.019), no Rio Grande do Sul (5.424) e no
Paraná (4.801) são os que concentram a maior parte dos registros policiais de
stalking no Brasil.
Em geral, a maioria dos casos registrados envolvem
vítimas mulheres, entre 16 e 24 anos, e homens como perseguidores.
"Mas também existem registros de mulheres que
perseguem homens”, diz Juliana Brandão, pesquisadora sênior do FBSP.
No mundo, o termo stalking começou a ser usado no final
da década de 1980 para descrever a perseguição insistente a celebridades pelos
seus fãs.
No entanto, foi apenas em 1990, na Califórnia, Estados
Unidos, que a conduta passou a ser criminalizada pela primeira vez.
Atualmente, países como Estados Unidos, Reino Unido,
Canadá e Austrália já possuem legislações específicas para lidar com o
stalking.
A lei que criminaliza o stalking no Brasil é de 2021 e
prevê prisão de seis meses a dois anos e multa para esse tipo de conduta.
A pena pode ser aumentada quando a vítima é criança,
adolescente, idoso ou mulher.
O crime é definido como perseguição reiterada por
qualquer meio, como a internet, que ameaça a integridade física e psicológica
de alguém, interferindo na liberdade e na privacidade da vítima.
Brandão explica que, por ser um crime novo na legislação
brasileira, muitos casos ainda não são registrados, porque muitas vítimas não
sabem que esse tipo de atitude é um crime.
“Na maioria dos casos, o stalking acontece com o fim de
um relacionamento, porém temos notado um crescimento de casos de desconhecidos
que passam a perseguir mulheres pelas redes sociais, principalmente, quando
estas se recusam a ter contato”, diz Brandão.
“Nesse caso, falamos de cyberstalking, cuja perseguição
acontece no ambiente virtual e acaba até tendo mais impactos na vida da vítima
do que atos presenciais.”
Solano de Camargo, presidente da Comissão de Privacidade,
Proteção de Dados e Inteligência Artificial da Ordem dos Advogados do Brasil de
São Paulo, explica que o stalking se diferencia dos demais crimes contra a
mulher pelo seu foco na perseguição persistente e indesejada.
"Enquanto outros crimes, como a violência doméstica
ou o assédio sexual, podem envolver atos isolados ou específicos de violência
ou coerção, o stalking caracteriza-se pela repetição e pela persistência do
comportamento persecutório”, diz Camargo.
Pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil classificam o
stalking em três níveis:
Leve: inclui comportamentos como seguir a vítima nas
redes sociais, enviar mensagens não solicitadas ou e-mails, e outras formas de
comunicação indesejada. Embora possa ser perturbador, esse nível de stalking
pode não representar uma ameaça física imediata.
Moderado: pode envolver ações mais intrusivas, como
seguir a vítima em público, aparecer repetidamente em lugares frequentados por
ela, realizar ligações telefônicas frequentes ou enviar presentes não
solicitados. Esse nível de stalking começa a ter um impacto mais significativo
na sensação de segurança da vítima.
Grave: caracteriza-se por comportamentos que representam
uma ameaça direta à segurança da vítima, como perseguição física, invasão de
propriedade, vandalismo, ameaças explicitas ou até mesmo violência física ou
moral. Esse nível de stalking requer atenção imediata das autoridades e medidas
de proteção para a vítima.
Camargo ressalta que o stalking é um crime progressivo,
o que significa que pode escalar de um nível mais leve para um mais grave ao
longo do tempo.
"Por isso, é absolutamente imprescindível que as
vítimas de stalking busquem ajuda logo nos primeiros sinais de perseguição,
para prevenir a escalada do comportamento abusivo do criminoso”, alerta.
'Tremia de medo'
A radialista sul-matogrossense Verlinda Robles começou a
ser vítima de stalking em 2017.
Tudo começou com uma ligação na rádio. Na época, ela
apresentava um programa, e um ouvinte da cidade de Costa Rica, no interior do
Mato Grosso do Sul, passou a ligar todos dias oferecendo uma música para
Verlinda.
“Sempre fui simpática com todos os ouvintes, mas fui
percebendo que aquilo não era normal", diz ela.
"Agradecia o carinho pelo meu trabalho, mas dizia
que aquilo já estava fugindo do normal e pedia para ele parar de ligar.”
Mas o pedido não surtiu efeito. O homem voltou a ligar
para a rádio e a pedir para falar com a radialista. Verlinda voltou a pedir que
ele parasse, mas ela diz que seu perseguidor "não queria entender”.
Ela conta que a situação fugiu do controle quando o perseguidor
que conseguiu seu número de telefone particular.
“Era impressionante, não tinha hora. Ele me ligava no
trabalho, a tarde e até de madrugada", diz.
"Chegou em um ponto em que eu não atendia mais
telefonemas, porque sempre era ele. Eu bloqueava um número, ele me ligava de
outro.”
Foi quando o perseguidor passou a fazer contato com
Verlinda de outras formas e a ligar nos telefones de seus amigos.
O homem passou a comprar presentes que deixava na rádio,
mas ela conta que recusava todos e pedia para devolver.
"Mas ele continuava. Eu me sentia ofendida, porque
já não bastasse a perseguição ele achava que podia me comprar. Lembro que, quando
via ele, eu tremia de medo.”
Em meio à perseguição, Verlinda resolveu se mudar em
busca de novas oportunidades de trabalho.
Do norte do Mato Grosso do Sul, a radialista foi morar no
sul do Estado, onde acreditava estar livre do seu perseguidor.
Passado alguns dias, um colega da rádio onde ela estava
trabalhando falou para ela que tinha um homem que estava ligando todo dia me
mandando um abraço.
Era o perseguidor de Verlinda.
Na mesma semana, ela entrou no site da operadora de
telefonia para pegar um boleto para pagar sua conta. Foi quando Verlinda viu
que já estava paga.
"Na hora, achei estranho, pois sabia que não tinha
feito o pagamento. Quando fui averiguar com a operadora, descobri que o
endereço de entrega da conta tinha sido trocado e quem tinha pago era quem
estava me perseguindo.”
A radialista resolveu então denunciar o caso em suas
redes sociais. A publicação feita em 2019 viralizou.
"Não sei até hoje como ele conseguiu alterar meu
endereço de pagamento. Para eu voltar para o meu endereço, foi uma odisseia.”
A radialista também fez um boletim de ocorrência contra o
homem e se tornou uma das primeiras vítimas de stalking no Brasil a conseguir
uma medida protetiva contra um perseguidor.
Verlinda diz que muita gente até hoje pergunta porque ela
não o denunciou antes.
"Sentia tanta vergonha de chegar na delegacia e os
policiais acharem que estava querendo aparecer que fui querendo fugir dele, sem
procurar ajuda.”
Com a medida protetiva, a perseguição cessou, conta
Verlinda. Ela soube que, alguns meses depois, seu perseguidor morreu por
problemas de saúde, mas os traumas ficaram.
“Confesso que até hoje olho embaixo da cama ao chegar em
casa por medo de ter alguém me perseguindo", diz.
"Não alugo casa sem ter grades na janela; e até para
me relacionar com as pessoas tenho dificuldade. É uma sombra que, infelizmente,
levo na minha vida.”
Como reagir e denunciar
Daniel Barros, do Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP), explica que, quando a
vítima de stalking é uma pessoa famosa, o perseguidor tem na maioria das vezes
um transtorno mental.
“O stalking com anônimos, na maior parte dos casos, não
tem a ver com transtorno mental, tem a ver com gênero, do sujeito simplesmente
não aceitar o fim do relacionamento ou ser rejeitado por alguém”, explica o
psiquiatra.
Um estudo publicado em 2009, no periódico Law and Human
Behavior, que fez um perfil de 200 pessoas condenadas por stalking constatou
que, em média, apenas 25% dos casos de perseguição duram mais de um ano.
Segundo a pesquisa, o fator que leva à perseguição
duradoura é o vínculo que a vítima tinha com o autor.
Assim, no caso de ex-maridos ou ex-namorados
perseguidores, o stalking tende a durar mais. “O mais importante é não falar
com o perseguidor", afirma Barros.
"Não troque mensagem, não fale, não tenha nenhum
contato, e leve a sério a situação, pois falar com ele tende a aumentar esse
comportamento, porque o perseguidor entende que conseguiu o que queria: sua
atenção.”
Jamila Ferrari, delegada coordenadora das Delegacias de
Defesa da Mulher (DDM) do Estado de São Paulo diz que o principal sinal de que
uma pessoa é vítima de stalking é se sentir ameaçada pelas constantes
investidas do perseguidor.
“O enfrentamento sem dúvida é feito com informação.
Informar constantemente às pessoas de que existe esse crime e punição para quem
comete é uma das medidas mais importantes de prevenção”, diz a delegada.
Atualmente, a vítima de stalking no Brasil pode procurar
ajuda em qualquer delegacia de polícia.
Contudo, especialistas dizem ser aconselhável que, em
casos mais graves, a pessoa perseguida busque apoio também de advogados,
serviços de assistência psicológica e grupos de apoio.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil recomendam
algumas medidas que podem ajudar a diminuir as chances de ser vítima de
stalking:
- Manter as informações pessoais privadas;
- Ajustar as configurações de privacidade nas redes
sociais;
- Evitar compartilhar detalhes sobre rotina e localização;
- Estar atento a comportamentos suspeitos ou pessoas que
pareçam estar seguindo ou monitorando de forma persistente.
“Nessas situações, mediante provas e identificação do autor, a vítima pode obter na Justiça uma ordem de restrição contra o perseguidor, obrigando-o a manter distância da vítima, sob pena de ser preso em flagrante em caso de violação da ordem”, ressalta Solano.
* Solano de
Camargo - Pós-doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito de
Coimbra (UC). Doutor e Mestre em Direito da Universidade de São Paulo (USP).
BBC Brasil
- divulgação -
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