Gazeta da Torre
Para especialistas, desinformação e campanhas pouco
efetivas comprometem a adesão à vacinação infantil.
Doenças antes controladas, como sarampo e poliomielite,
voltam a ser preocupação e novas vacinas são alvos de desconfiança. Apesar de
em 2023 o Brasil registrar melhora nas coberturas vacinais em oito vacinas do
calendário infantil, de acordo com o Ministério da Saúde, para especialistas, a
desinformação nas mídias sociais se reflete na cultura vacinal, mantendo a
imunização coletiva abaixo do ideal.
A bióloga Nathália Pereira, mestre em Ciências pela
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e doutoranda no programa
de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a propagação de desinformação tem
minado a confiança da população em relação às vacinas. “Hoje, na internet, a
gente vê um cenário em que toda vez que desponta uma campanha de vacinação,
junto a ela vem uma chuva de desinformação, de fake news.”
A bióloga Nathália Pereira |
Como membro do União Pró-Vacina (UPVacina), iniciativa
vinculada ao Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da
USP, Nathália desenvolve atividades ligadas ao combate à desinformação sobre
vacinas. Segundo ela, ainda que o Programa Nacional de Imunizações (PNI)
continue bom, a disseminação de informações falsas tem gerado resistência em
grupos específicos da população.
A pediatra Jorgete Maria e Silva, do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (HC-FMRP) da USP, aponta que o relaxamento da população
brasileira frente às vacinas vem de antes. “As famílias não conseguem entender que
isso foi alcançado por se manter um nível bom de imunidade na população, um
porcentual grande de pessoas imunes que realmente barraram a entrada dos
vírus.”
A pediatra Jorgete Maria |
Ela observa, inclusive, que aqueles que já não viam
necessidade de se vacinar ficaram mais vulneráveis às fake news durante as
campanhas iniciais de vacinação contra a covid-19, em 2021, e o problema se
estende até hoje.
Desinformação e vacinação infantil
O resultado foi um aumento do discurso antivacina. Nisso,
a pediatra analisa que, dentro da histeria construída na campanha de vacinação
contra a covid-19, os efeitos colaterais são colocados acima dos benefícios e
as pessoas “ficaram completamente descrentes e preocupadas em se vacinar, elas
levavam mais em consideração o evento adverso provável do que a doença grave
fatal.”
Com isso, os mais afetados pelas campanhas
desinformativas acabam sendo as crianças e jovens. Além de serem “ativos dentro
do ambiente digital” e facilmente expostos à fake news, de acordo com Nathália,
o público infantil também pode ser condicionado por familiares negacionistas.
Ela alerta para a existência de grandes comunidades de pais em redes sociais,
como o Facebook, que se agrupam “para trocar informações, por exemplo, de
contato de médicos que fornecem atestados falsos para burlar a vacinação dos
filhos”.
Atualmente, o mesmo acontece com a vacina contra a
dengue, por exemplo, sendo um alvo recente de peças desinformativas. No Brasil,
constam atualmente dois imunizantes distintos, a Dengvaxia e a Qdenga, esta
última distribuída pelo SUS. Nathália alega que, na internet, páginas de
influenciadores negacionistas dizem que os imunizantes são organismos
geneticamente modificados e capazes de alterar o DNA humano, dentre outras
teorias. “Essas fake news em relação à vacina são muito recicláveis”, observa
Nathália, e relembra que notícias falsas com o mesmo teor eram comuns durante a
chegada da vacina contra a covid-19, em 2021.
Imunização coletiva
O receio em vacinar a si ou aos filhos afeta a imunização
coletiva, que desempenha um papel fundamental na proteção da população, em
especial recém-nascidos e idosos, contra doenças infecciosas graves. Segundo
Jorgete, quanto maior o número de pessoas imunizadas, maior é o controle das
doenças, a chamada imunidade de rebanho.
Assim, a médica destaca a importância de conscientizar a
população sobre a relevância da vacinação. Porém, nos últimos anos, o próprio
Conselho Federal de Medicina (CFM) vem sendo criticado por posicionamentos
polêmicos, inclusive abrindo, em janeiro de 2024, um questionário para saber a
opinião de médicos quanto à obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19,
“para enriquecer o debate e contribuir para a tomada de decisões futuras”.
“Nós, médicos, é que temos essa responsabilidade, devemos
informar o paciente de tudo que ele precisa saber, para ele voltar a confiar e
a acreditar na vacina”, afirma Jorgete, e lamenta que alguns médicos “não
assumem esse papel” de acolher pessoas com dúvidas quanto à vacinação e passar
as informações corretas.
Cultura de vacinação se perdeu
Desde a instauração do Programa Nacional de Imunizações,
em 1973, o País é referência na distribuição pública de vacinas, pela
organização de calendário e promoção de campanhas de vacinação, com índices de
imunização altos e estáveis entre 1998 e 2012, ano em que começa a tendência de
queda, que atingiu o ponto mais baixo no triênio de 2019 a 2021, segundo dados
do próprio PNI. Ainda assim, o programa conseguiu eliminar a circulação do
vírus do sarampo, por exemplo, em 2016.
Mas a condição não durou muito – novos casos da doença
começaram a aparecer em 2018 e a população enfrentou um novo surto no ano
seguinte, com o Estado de São Paulo registrando cerca de 18 mil casos, segundo
relatório do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da
Saúde.
Um dos motivos, para Nathália, envolve a mudança na
cultura de consumo de mídia – enquanto anteriormente o público apenas recebia
as informações de grandes institutos de pesquisa e de saúde, através dos
veículos de informação, hoje “tem uma comunicação em forma de rede, em que as
pessoas passam desse lugar de receptor para, também, de emissor”.
Dessa forma, apesar do reinvestimento em políticas de
incentivo à vacinação em 2023, como o Zé Gotinha, famoso mascote das campanhas
brasileiras, o conhecimento científico disputa com a desinformação nas redes e,
para a pesquisadora do União Pró-Vacina, o cenário exige que as campanhas de
conscientização sejam mais dinâmicas e interativas. “Não podemos mais só atuar
com campanhas de conscientização em que a gente fala e as pessoas aceitam.”
Fonte: Jornal da USP
- divulgação -
Nenhum comentário:
Postar um comentário