Gazeta da Torre
Um ponto exacerbado pelas mídias digitais, além da
popularização instantânea de informações de qualidade duvidosa, é a facilidade
conferida a médicos e cientistas negacionistas para propagar desinformação em
larga escala, valendo-se de suas credenciais clínicas ou acadêmicas para dar um
verniz de legitimidade científica aos seus argumentos.
Assim como publicação não é sinônimo de qualidade
científica, diploma não é sinônimo de idoneidade intelectual. “A academia não é
diferente das demais comunidades; ela tem seus defeitos e suas qualidades, seus
bons e maus profissionais”, diz o físico Paulo Artaxo, professor titular do
Instituto de Física (IF) da USP, co-coordenador do Programa Fapesp de Pesquisa
sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e membro do Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o órgão máximo da ciência
climática internacional, vinculado à Organização das Nações Unidas. O
negacionismo, segundo ele, é explorado como um negócio por alguns cientistas,
que se aproveitam desse “nicho de mercado” para ganhar dinheiro e notoriedade
fora dos trâmites acadêmicos.
A ciência do clima é uma vítima corriqueira desse tipo de
estratégia, em que uma minoria de pesquisadores utilizam as redes sociais e os
meios de comunicação para defender teses ou opiniões desprovidas de mérito
científico; frequentemente empregando argumentos simplórios para explicar
questões de grande complexidade — por exemplo, argumentando que o CO2 é o “gás
da vida” ou que os seres humanos são pequenos demais para influenciar o clima
do planeta.
“Provavelmente não há um tópico mais importante para o
nosso futuro nesse planeta, e que tenha sofrido tanto com desinformação como as
mudanças climáticas”, disse a presidente da Academia Nacional de Ciências (NSF)
dos Estados Unidos, Marcia McNutt, numa conferência sobre o tema realizada em
maio deste ano, em parceira com a Fundação Nobel.
A constatação de que atividades humanas estão aquecendo a
atmosfera e alterando o clima do planeta implica a necessidade de mudanças
urgentes nos padrões de consumo e na matriz energética mundial; incluindo uma
redução expressiva no uso de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás
natural), que são o ganha-pão da indústria de óleo e gás. Desde o início da
década de 1970, quando a Conferência de Estocolmo soou o alarme sobre a
existência de uma crise ambiental planetária, portanto, há campanhas de
desinformação voltadas à manutenção dos interesses de grandes grupos econômicos
que veem seus negócios ameaçados pelo enfrentamento dessa crise, segundo
Artaxo.
“A desinformação sempre foi um problema na questão
climática”, diz o professor. Assim como no caso das vacinas, porém, a situação
piorou muito nos últimos anos, ressalta Artaxo. Primeiro, pela influência das
mídias digitais, que “aumentaram muito a capilaridade e a velocidade de
propagação de notícias falsas”; e segundo, pela instrumentalização política do
debate por movimentos de extrema direita, principalmente a partir da eleição de
Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016. “A questão saiu da esfera econômica e
entrou para a esfera ideológica”, diz Artaxo. “Isso é muito perigoso, porque
não se pode refutar ideologias com argumentos científicos.”
Uma pesquisa conduzida pelo Ipec e divulgada em junho
deste ano pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio),
em parceria com o Programa de Comunicação Climática da Universidade de Yale,
indica que os brasileiros têm uma percepção bem pragmática da crise climática:
94% acreditam que aquecimento global é uma realidade; 74% acreditam que esse
aquecimento é causado principalmente pela ação humana; 87% estão convencidos de
que ele pode prejudicar muito as gerações futuras; e 81% concordam que o
desmatamento da Amazônia é uma ameaça ao clima e ao meio ambiente do planeta.
Isso não impede, porém, que argumentos negacionistas —
“validados” por uma minoria de cientistas negacionistas — sejam
instrumentalizados para defender interesses políticos e econômicos que vão na
direção oposta desse consenso científico e popular. No Brasil, onde a maior
parte das emissões de gases do efeito estufa está vinculada ao desmatamento da
Amazônia, a negação da crise climática foi recentemente adotada como pauta
política por movimentos ligados ao bolsonarismo e a alguns setores do
agronegócio nacional.
“Historicamente, há grupos econômicos que questionam
dados científicos e acadêmicos que vão contra os seus negócios”, disse ao
Jornal da USP a coordenadora do NetLab, Marie Santini. A indústria do tabaco e
a dos combustíveis fósseis seriam exemplos disso. Esse envolvimento mais
recente com movimentos de extrema direita, na avaliação de Santini, se dá por
uma questão de “conveniência”, por se tratar de grupo político que está
ideologicamente disposto a negar a ciência que não lhes convêm.
“Eles viram que esse era um grupo político que criava um
ecossistema de mídia paralelo; então eles falaram: ‘ótimo, vamos criar
controvérsia’”, diz a pesquisadora. Nessa tática, se um jornal noticia que o
desmatamento na Amazônia está aumentando, basta publicar um texto em outro
veículo dizendo o contrário. “Você nem precisa provar que algo está errado, só
precisa gerar uma dúvida, dizer que existe uma controvérsia. É aí que a
indústria se esconde, porque eles dizem que não estão produzindo desinformação,
estão apenas questionando algo”, completa Santini.
“Para o cidadão não especializado, vira uma disputa de
narrativas. Parece que existe uma polêmica na academia, quando na verdade não
existe”, diz Yamashita, da Unesp. Foi o que a indústria do tabaco fez décadas
atrás, segundo ele, financiando cientistas e pesquisas enviesadas para lançar
dúvidas sobre a relação entre o cigarro e o câncer.
Segundo a pesquisa do ITS Rio, 17% dos brasileiros
acreditam que os cientistas “discordam muito entre eles” sobre a realidade do
aquecimento global, e outros 7% acreditam que “a maior parte dos cientistas
acha que o aquecimento global não está acontecendo”. Essa falsa polêmica deu as
caras recentemente na Cúpula da Amazônia, em Belém, quando o ministro de Minas e
Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, disse ter estudos que se
contrapõem “de forma clara e cristalina” à recomendação do IPCC de cessar
imediatamente a abertura de novos poços de petróleo. Questionado por
jornalistas sobre quais eram esses estudos, Silveira fez uma referência
genérica à Agência Internacional de Energia (IEA) — que, na realidade, está de
acordo com o IPCC.
Fonte: Jornal da USP
- divulgação -
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