quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Negacionismo climático

 Gazeta da Torre

Um ponto exacerbado pelas mídias digitais, além da popularização instantânea de informações de qualidade duvidosa, é a facilidade conferida a médicos e cientistas negacionistas para propagar desinformação em larga escala, valendo-se de suas credenciais clínicas ou acadêmicas para dar um verniz de legitimidade científica aos seus argumentos.

Assim como publicação não é sinônimo de qualidade científica, diploma não é sinônimo de idoneidade intelectual. “A academia não é diferente das demais comunidades; ela tem seus defeitos e suas qualidades, seus bons e maus profissionais”, diz o físico Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física (IF) da USP, co-coordenador do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o órgão máximo da ciência climática internacional, vinculado à Organização das Nações Unidas. O negacionismo, segundo ele, é explorado como um negócio por alguns cientistas, que se aproveitam desse “nicho de mercado” para ganhar dinheiro e notoriedade fora dos trâmites acadêmicos.

A ciência do clima é uma vítima corriqueira desse tipo de estratégia, em que uma minoria de pesquisadores utilizam as redes sociais e os meios de comunicação para defender teses ou opiniões desprovidas de mérito científico; frequentemente empregando argumentos simplórios para explicar questões de grande complexidade — por exemplo, argumentando que o CO2 é o “gás da vida” ou que os seres humanos são pequenos demais para influenciar o clima do planeta.

“Provavelmente não há um tópico mais importante para o nosso futuro nesse planeta, e que tenha sofrido tanto com desinformação como as mudanças climáticas”, disse a presidente da Academia Nacional de Ciências (NSF) dos Estados Unidos, Marcia McNutt, numa conferência sobre o tema realizada em maio deste ano, em parceira com a Fundação Nobel.

A constatação de que atividades humanas estão aquecendo a atmosfera e alterando o clima do planeta implica a necessidade de mudanças urgentes nos padrões de consumo e na matriz energética mundial; incluindo uma redução expressiva no uso de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), que são o ganha-pão da indústria de óleo e gás. Desde o início da década de 1970, quando a Conferência de Estocolmo soou o alarme sobre a existência de uma crise ambiental planetária, portanto, há campanhas de desinformação voltadas à manutenção dos interesses de grandes grupos econômicos que veem seus negócios ameaçados pelo enfrentamento dessa crise, segundo Artaxo.

“A desinformação sempre foi um problema na questão climática”, diz o professor. Assim como no caso das vacinas, porém, a situação piorou muito nos últimos anos, ressalta Artaxo. Primeiro, pela influência das mídias digitais, que “aumentaram muito a capilaridade e a velocidade de propagação de notícias falsas”; e segundo, pela instrumentalização política do debate por movimentos de extrema direita, principalmente a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016. “A questão saiu da esfera econômica e entrou para a esfera ideológica”, diz Artaxo. “Isso é muito perigoso, porque não se pode refutar ideologias com argumentos científicos.”

Uma pesquisa conduzida pelo Ipec e divulgada em junho deste ano pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), em parceria com o Programa de Comunicação Climática da Universidade de Yale, indica que os brasileiros têm uma percepção bem pragmática da crise climática: 94% acreditam que aquecimento global é uma realidade; 74% acreditam que esse aquecimento é causado principalmente pela ação humana; 87% estão convencidos de que ele pode prejudicar muito as gerações futuras; e 81% concordam que o desmatamento da Amazônia é uma ameaça ao clima e ao meio ambiente do planeta.

Isso não impede, porém, que argumentos negacionistas — “validados” por uma minoria de cientistas negacionistas — sejam instrumentalizados para defender interesses políticos e econômicos que vão na direção oposta desse consenso científico e popular. No Brasil, onde a maior parte das emissões de gases do efeito estufa está vinculada ao desmatamento da Amazônia, a negação da crise climática foi recentemente adotada como pauta política por movimentos ligados ao bolsonarismo e a alguns setores do agronegócio nacional.

“Historicamente, há grupos econômicos que questionam dados científicos e acadêmicos que vão contra os seus negócios”, disse ao Jornal da USP a coordenadora do NetLab, Marie Santini. A indústria do tabaco e a dos combustíveis fósseis seriam exemplos disso. Esse envolvimento mais recente com movimentos de extrema direita, na avaliação de Santini, se dá por uma questão de “conveniência”, por se tratar de grupo político que está ideologicamente disposto a negar a ciência que não lhes convêm.

“Eles viram que esse era um grupo político que criava um ecossistema de mídia paralelo; então eles falaram: ‘ótimo, vamos criar controvérsia’”, diz a pesquisadora. Nessa tática, se um jornal noticia que o desmatamento na Amazônia está aumentando, basta publicar um texto em outro veículo dizendo o contrário. “Você nem precisa provar que algo está errado, só precisa gerar uma dúvida, dizer que existe uma controvérsia. É aí que a indústria se esconde, porque eles dizem que não estão produzindo desinformação, estão apenas questionando algo”, completa Santini.

“Para o cidadão não especializado, vira uma disputa de narrativas. Parece que existe uma polêmica na academia, quando na verdade não existe”, diz Yamashita, da Unesp. Foi o que a indústria do tabaco fez décadas atrás, segundo ele, financiando cientistas e pesquisas enviesadas para lançar dúvidas sobre a relação entre o cigarro e o câncer.

Segundo a pesquisa do ITS Rio, 17% dos brasileiros acreditam que os cientistas “discordam muito entre eles” sobre a realidade do aquecimento global, e outros 7% acreditam que “a maior parte dos cientistas acha que o aquecimento global não está acontecendo”. Essa falsa polêmica deu as caras recentemente na Cúpula da Amazônia, em Belém, quando o ministro de Minas e Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, disse ter estudos que se contrapõem “de forma clara e cristalina” à recomendação do IPCC de cessar imediatamente a abertura de novos poços de petróleo. Questionado por jornalistas sobre quais eram esses estudos, Silveira fez uma referência genérica à Agência Internacional de Energia (IEA) — que, na realidade, está de acordo com o IPCC.

Fonte: Jornal da USP

- divulgação -

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