Diante dos últimos acontecimentos e declarações,
professores da USP discutem a atual situação da cultura no Brasil
“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”,
bradava o tribuno e orador Marco Túlio Cícero ao senador Lucio Sergio Catilina.
Até quando ele abusaria da paciência dos romanos com suas ideias retrógradas e
perigosas? E até quando se abusará, no Brasil, da paciência daqueles que prezam
os bens culturais, que valorizam a cultura, que veem na música, no teatro, no
cinema, nas artes plásticas livres de grilhões verdadeiros formadores de uma
identidade nacional, de uma cidadania? Porque, para muitos, essa tal paciência
está sendo colocada à prova diariamente. “Há uma guerra não declarada contra a
inteligência”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP
Carlos Augusto Calil, ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo. E essa
guerra tem várias faces. As mais visíveis talvez sejam as recentes nomeações para a área cultural do governo federal – isso sem falar na transferência da secretaria especial de Cultura para a pasta do Turismo. Piada pronta? Não necessariamente. Porque até a galhofa deve ter limites. Coisa para a qual o novo presidente da Funarte, o maestro e youtuber – uma combinação pós-moderna, digamos – Dante Mantovani não pareceu atentar. “O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo”, afirmou ele, num silogismo que coloca no bolso aquele que diz que “madeira boia, pato boia. Logo, pato é feito de madeira”. A declaração de Mantovani está mais próxima de uma versão roqueira (e alucinada) da terra plana.
Mas de uma coisa não se pode acusar o maestro-youtuber:
de infidelidade ao mestre. Ao afirmar em outra postagem em seu canal do Youtube
que “os Beatles colocaram em prática as ideias da Escola de Frankfurt ,
querendo destruir a cultura ocidental”, ele nada mais faz do que servir de
caixa de ressonância às “ideias” do dublê de astrólogo-“pensador
contemporâneo”-guru conservador Olavo de Carvalho, que desde seu autoexílio na
Virgínia fica dando pitacos nas coisas brasileiras. Foi Olavo quem disse que as
músicas do Beatles haviam sido compostas por Theodor Adorno, o filósofo da
comunicação e um dos criadores da Escola de Frankfurt. Olavista convicto,
Mantovani repetiu a fala, sem parar para pensar no absurdo embutido nela. Mas a
postura de Dante Mantovani é apenas uma das várias pontas do iceberg extremista
à deriva que teima em se movimentar em direção ao transatlântico multifacetado
da cultura nacional.
E a colisão parece inevitável – se é que já não aconteceu. Desde a transferência da Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo até as recentes nomeações para cargos-chave da área cultural, tudo leva a um franzir preocupado de sobrolho, para se dizer o mínimo. “Isso tudo evidencia, na verdade, algo muito mais grave. Tudo indica que há uma intenção de fundo, que não é só de expatriação mas também de apagamento, processo iniciado durante a campanha eleitoral por forças aliadas ao atual governo, em particular ligadas a um falso moralismo que se mostram hoje claramente favoráveis à censura”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes Martin Grossmann, ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC, e colunista da Rádio USP.
Por mais estapafúrdias e incoerentes que pareçam as
declarações e ações de membros do atual governo com relação à cultura no Brasil
– e vamos falar só da parte cultural, sem outras considerações, como as
recentes ilações à pirotecnia de Leonardo Di Caprio –, elas são muito sérias. Parecem
risíveis, mas não são. A questão cultural é muito séria e precisa ser tratada desta
forma. Declarações como a do novo presidente da Fundação Palmares, o jornalista
Sérgio Nascimento de Camargo, afirmando que “o Dia da Consciência Negra é uma
vergonha e precisa ser combatido” ou que “a escravidão no Brasil fez bem aos
negros” são muito mais do que frases aleatórias de alguém que parece
desconectado com a presente e o passado – e que põe em risco o futuro. Camargo,
que em seu perfil no Facebook se identifica como “negro de direita, contrário
ao vitimismo e ao politicamente correto”, teve sua nomeação barrada por uma
Ação Popular, mas o governo pode recorrer da decisão.
“Estamos vivendo o desmonte total das instituições da
cultura”, afirma a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, coordenadora
do Escritório USP Mulheres e pró-reitora de Cultura da USP entre os anos de
2010 e 2015. “Quando você transforma a cultura em um instrumento que é de
fundamentalismo ou de visões preconceituosas, você está destruindo a cultura”,
garante ela, se referindo à postura do atual governo em taxar, por exemplo, de
“marxismo cultural” a utilização da Lei Rouanet e às nomeações de Katiane de
Fátima Gouvêa, integrante da Cúpula Conservadora das Américas, para secretária
de Audiovisual e do pastor e colunista social Edilásio Barra – que atende pelo
apelido de Tutuca – para assumir a Superintendência de Desenvolvimento
Econômico da Ancine, a Agência Nacional de Cinema.
"200 versículos da Bíblia"
Como todos sabem – ou deveriam saber –, o Brasil é um
estado laico. Está lá, na Constituição: Igreja e Estado estão apartados
formalmente. Mas isso não parece importar muito para alguns. O problema é que
esses “alguns” são os que dão as cartas atualmente no País. E nada escapa desse
afã religioso, nem a Justiça – lembram da possível escolha de um ministro
“terrivelmente evangélico” para o STF? –, nem a cultura. Em agosto, o
presidente da República disse que sua intenção era nomear para dirigir a Ancine
“alguém que soubesse pelo menos 200 versículos da Bíblia e que tivesse os
joelhos machucados de tanto ajoelhar para rezar”.
Saber a Bíblia de cor e rezar são ações louváveis, mas não necessariamente deveriam ter algo a ver com a direção de um órgão que trata da produção audiovisual do País, do fomento à cultura. A própria Katiane Gouvêa, a nova titular da Secretaria de Audiovisual – que tem funções correlatas à Ancine, mas que não são interdependentes –, não tem qualquer ligação com o cinema ou a TV, mas é evangélica.
Saber a Bíblia de cor e rezar são ações louváveis, mas não necessariamente deveriam ter algo a ver com a direção de um órgão que trata da produção audiovisual do País, do fomento à cultura. A própria Katiane Gouvêa, a nova titular da Secretaria de Audiovisual – que tem funções correlatas à Ancine, mas que não são interdependentes –, não tem qualquer ligação com o cinema ou a TV, mas é evangélica.
“As pessoas têm o direito a ter suas religiões, mas o estado democrático representa todas as tendências”, afirma a socióloga Maria Arminda. Além do mais, acredita-se que a questão de fé não deveria ser pré-requisito para assumir um cargo público.
Coincidentemente (ou não), Katiane fez parte de um comitê
que, meses atrás, sugeriu à Presidência a extinção da Ancine. Em um site, ela
publicou, antes de ser nomeada, “que o audiovisual e o cinema não sejam
plataformas para difundir e promover os valores que denigrem a nossa imagem
como indivíduo, sociedade e indústria produtiva”.
Essa questão tem um fundo que precisa ser ainda mais
discutido. “No atual contexto de animosidade crescente, partidos políticos
radicalizados consideram, mais que os outros, que o Estado lhes pertence e que
a eles, e ao País, irão impor suas ideias, tão curtas que não chegam à
esquina”, declarou, em depoimento ao Jornal da USP, o professor aposentado da
ECA José Teixeira Coelho, ex-diretor do MAC e ex-curador-coordenador do Museu
de Arte de São Paulo (Masp). O problema, para ele, é a dependência que se tem
das ações provenientes do Estado. Segundo ele, isso é um erro. “A sociedade
assiste, passiva, a esse balé de irrelevâncias. Do Estado espera-se tudo. Só
que quando se espera que a cultura venha do Estado ou fique forte graças ao
Estado ou sobreviva por favor do Estado, dramas como os atuais só se
repetem. A sociedade tem de
fortalecer-se frente ao Estado e encontrar o caminho para libertar-se dessa
tutela”, acredita ele, que também foi colaborador da Cátedra Unesco de Política
Cultural da Universidad de Girona, na Espanha.
Já para a artista plástica e professora Giselle
Beiguelman, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e também
colunista da Rádio USP, a questão ideológica acaba permeando atualmente toda a
discussão sobre políticas públicas culturais no Brasil. “Não é possível que um
governo de direita ou de esquerda decida apoiar apenas projetos que digam
respeito a suas prerrogativas ideológicas. As políticas públicas têm um
compromisso com o País e não com os partidos. É preciso respeitar a pluralidade
de visões”, afirma ela. Carlos Augusto Calil, da ECA, vai mais além: “Há um
sentimento antielitista envenenando o ar que respiramos. Enfrentamos uma guerra
não declarada contra a inteligência, a tolerância, o patrimônio simbólico
nacional. Contra os princípios da democracia”.
Turismo e Cultura; Alvim e Fernanda
Esse embate ao qual se refere o ex-secretário de Cultura
da cidade de São Paulo teve um de seus pontos fulcrais na transferência da
Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania para o Ministério do
Turismo, no começo de novembro. Por mais que o turismo cultural seja uma
prática costumeira mundo afora – Roma e Paris que o digam –, muitos viram essa transferência
como uma diminuição da Cultura, um rebaixamento. E não necessariamente sem
razão. “Não entendo essa relação entre Cultura e Turismo. Ainda que haja uma
relação possível do ponto de vista de entender que o Turismo hoje é parte da
Cultura, efetivamente a Cultura como espaço de reflexão e política não tem
conexão com o Turismo”, acredita a professora Maria Arminda, da FFLCH. “Parece
que as artes e as culturas para o atual governo se mostram um estorvo, e melhor
seria se fossem eliminadas de cena”, avança o colunista da Rádio USP e
ex-vice-diretor do MAC Martin Grossmann.
Já Carlos Augusto Calil, Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP, cineasta,
ensaísta, editor de mais de 30 livros sobre cinema, faz uma reflexão mais
ampla sobre a própria criação do Ministério da Cultura, que mostra reflexos até
hoje. “O Ministério da Cultura, desde a sua criação, foi politicamente
irrelevante. Na verdade, foi um erro levar as instituições culturais federais
para Brasília. Funarte, Embrafilme, Serviço Nacional de Teatro etc. estavam
consolidados no Rio de Janeiro e não se curvavam ao governo militar. Antes, a
ele resistiam de dentro da própria estrutura do Estado. A criação do Ministério
da Cultura atendeu a uma dimensão da pequena política e teve um papel
disruptivo na evolução das instituições. Foi um erro centralizar a política
cultural oficial em Brasília”, acredita Calil. “Agregar a cultura e a arte a um
ministério social não era má ideia. Mas a questão não é conceitual, é política.
Atualmente, as políticas públicas em benefício da arte e da cultura estão sendo
castigadas, por seu suposto elitismo e viés ideológico. A transferência da
Secretaria de Cultura para o Ministério do Turismo soa como rebaixamento,
desprestígio, humilhação. Não porque sejam incompatíveis”, afirma.
Para além da mudança de endereço da Cultura em Brasília,
outro fator de tensão foi a nomeação do novo secretário especial da pasta: o
diretor de teatro Roberto Alvim, o mesmo que há alguns meses atacou Fernanda
Montenegro pelas redes sociais. “Então, acuso Fernanda (Montenegro) de
mentirosa, além de expor meu desprezo por ela, oriundo de sua deliberada
distorção abjeta dos fatos”, escreveu Alvim. “A foto da sórdida Fernanda
Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na
capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal dessas
pessoas”, continuou ele, referindo-se a uma foto de divulgação da revista
literária 451. Esses ataques foram feitos quando Alvim ainda era diretor do
Centro de Artes Cênicas da Funarte.
“As artes e a cultura, para o atual governo, são um
estorvo”
O professor Martin Grossmann questiona. em sua coluna, o
que nos representa culturalmente como brasileiros
Mas a mudança de cargo não arrefeceu sua verve. Em
novembro, em Paris, ele afirmou, para espanto da plateia presente na reunião
anual da Unesco, que “a arte brasileira transformou-se em um meio para
escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder
esquerdista”. Não satisfeito, prosseguiu com seu corolário, prometendo criar
“uma nova geração de artistas” e que o atual governo retomaria “a beleza” nas
obras de arte, seja lá o que for isso. “Mas o que é a definição de belo?”,
questiona Maria Arminda. “A noção do belo é histórica, é social e se
transforma”, completa. E Calil finaliza, ao falar sobre a desvalorização da
cultura no País: “O Brasil perde substância, sentido de coesão social,
relevância política, capacidade de atrair investimento material e simbólico. Há
uma generalizada atração pela cultura brasileira no exterior, a que nós não
temos sabido corresponder”.
Fonte:Jornal da USP - Com reportagens de Cláudia Costa e Leila Kiyomura
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