Daniella Esposito/Secult-PE
Mestre Eudócio |
Com voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que
o primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma vida dedicada à
arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade que saem as imagens
trazidas da memória de um tempo em que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo
e Manuel Eudócio Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante de
si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as esculturas, que,
começadas no início do dia, por volta das cinco da manhã, precisam ser
concluídos ao final da mesma jornada. As mãos não param, enquanto as lembranças
emergem.
Quase aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o
vigor mental e as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida
regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da atividade
artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira Tereza Maria da
Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e criado no Alto do Moura,
Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues de Oliveira e Maria Tereza da Conceição
desde criança trabalha na agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro.
Freqüentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio
das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem vivido esses anos
todos no Alto do Moura. São sete décadas de aprimoramento, de adaptação ao
gosto da freguesia e de convívio com fregueses alemães, franceses, portugueses,
americanos.
De viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra
que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não cabia, pintadas
com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu deixar peças ao natural,
depois voltou a pintá-las.
Com o auxílio das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem vivido esses anos todos no Alto do Moura |
Gosta de fazer bonecos grandes, coloridos, embora
menos vendáveis. A queima das esculturas sempre foi num forno do quintal,
quinzenalmente, exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno
deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso.
O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de
fôrma para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre serviram de
fio condutor nas criações inspiradas: batizado, enterro, casamento matuto,
casamento forçado, casal andando em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de
pífano, cangaceiros, padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura
tradicional, uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos
personagens do folguedo natalino do qual participou: dona Joana, diabo, doutor,
padre, mascarado.
Em 1948, quando começou a fazer os bonecos, resolveu
fazer um reisado. Fez vários personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio
de Janeiro. Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo
as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o mestre sente
saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas culturais da infância e
juventude.
Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais
desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo. Quando Vitalino
saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948, Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os
trabalhos do mestre na rua: naquela época ninguém vendia escultura em casa, o
local de exposição era o buliçoso espaço da feira.
Algumas peças do Mestre Eudócio
Do professor, Vitalino,
lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos, com o cunhado
Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista e nem sequer assinavam as
próprias peças. Lembra, ainda, que em 1957 já fazia questão de dizer aos
compradores que aqueles bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de
outros artistas.
Com o desaparecimento do mestre não acreditava na continuidade
do ofício. Mostra-se impressionado com a permanência da atividade e o aumento
quantitativo de artesãos.
A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração
os continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o ofício da avó
e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove filhos de Eudócio, Carlos
e José Ademildo, e as respectivas esposas, vivem do barro.
Do casal Celestina
Rodrigues e Zé Caboclo, as filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram
ao pai, que era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra,
inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava numa caixa de fósforo,
esculturas em tamanho minúsculo que são uma das especialidades das irmãs
Rodrigues. A linha de sucessão também se repete na família Vitalino, na família
Rodrigues, na família Galdino.
Em 2005, Manuel Eudócio foi eleito Patrimônio Vivo de
Pernambuco. No dia 13 de fevereiro de 2016, faleceu em Caruaru, aos 85 anos de
idade.
Fonte: Amorim, Maria Alice (2014), Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev.
e amp – Recife: FUNDARPE
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