Gazeta da Torre
O brincar é um fenômeno presente no universo infantil. De
que crianças estamos falando? Não podemos mais pensar nem almejar que exista ‘a
criança’, como um ideal a ser atingido, mas pensar sim ‘nas crianças’ e suas
diversas realidades.
As crianças formam-se a partir da sua herança genética;
da educação familiar, formal e comunitária que recebem; da influência do contexto
no qual crescem; e dos vínculos que estabelecem com as pessoas mais próximas,
sobretudo nos primeiros anos de vida.
Assim, a diversidade de crianças, realidades e infâncias,
sobretudo olhando para as diferentes regiões, situações socioeconômicas e
contextos do nosso país, constituem uma variedade impossível de ser
classificada.
Se nos detivermos e olharmos para as crianças de hoje –
sempre considerando-as nos seus contextos -, se verdadeiramente conseguirmos
nos despojar de teorias, juízos e preconceitos e nos abrirmos para ouvi-las,
vamos descobrir um universo, ao mesmo tempo familiar e desconhecido para nós.
As crianças de hoje têm um repertório de conhecimentos,
de estímulos, de criatividades que as levam a mesclar, nas suas brincadeiras,
no seu jeito de brincar e de se comportar, todos esses elementos, assim como os
seus conteúdos e potenciais individuais.
Mas, ao mesmo tempo, as crianças de hoje são pressionadas
pela sociedade, são hipnotizadas pela mídia e o mercado, são muitas vezes
privadas de viverem suas infâncias plenamente. As crianças de hoje são vítimas
de uma realidade que, em grande parte as isola do contato com a natureza, do
contato com os pais ou cuidadores. As crianças de hoje carecem de ritmos, de
tempos e de espaços para brincarem livremente. As crianças de hoje não têm tido
oportunidades para serem crianças!
Falar em ‘desenvolvimento integral saudável’ é dizer que
as crianças, já desde o útero materno, passam por uma série de etapas em que
seu corpo, suas emoções, seu raciocínio, sua capacidade de se vincular e
comunicar-se com outros, suas habilidades e seus valores, passam por etapas
lineares – com avanços e retrocessos – e por processos profundos de
desenvolvimento.
As crianças, vão sendo mais ou menos estimuladas,
conforme os cuidadores e os contextos em que crescem.
O brincar também é uma linguagem, uma das primeiras
linguagens da natureza do ser humano.
Em cada brincadeira há uma narrativa, um ‘texto’ sendo
‘escrito’ por cada criança: quando elas brincam de faz de conta, imitam,
representam, se movimentam, desenham, dançam, correm, pulam, jogam com jogos de
tabuleiro e participam de brincadeiras e esportes coletivos, quando tocam
instrumentos, cantam, criam histórias ou recontam contos – todas linguagens
lúdicas – as crianças, sem consciência, falam de si, das suas realidades, do
que estão vivendo, de como estão vendo o mundo; das suas angústias, alegrias,
medos, potenciais; dos seus interesses, do que sabem, do que precisam; falam
desde o lugar das suas emoções.
O brincar faz parte de um patrimônio universal, regional
e cultural. O homem sempre brincou, como evidenciam, sobretudo, pinturas
arqueológicas, fotografias e estudos em diversas áreas do conhecimento. Desde
os anos 70, um movimento mundial de resgate de brincadeiras tradicionais,
transmitidas de forma oral de uma geração para a outra, tem tido resultados
interessantíssimos: publicações, incentivo a lembrar e transmitir brincadeiras
com a participação de avós, pais e crianças, campanhas, cursos, congressos etc.
Um documento atual e importantíssimo, através do qual
temos uma cartografia das brincadeiras das crianças de hoje no Brasil, é o Mapa
do Brincar – http://mapadobrincar.folha.com.br/ – que mostra as diversas
realidades lúdicas de inúmeras crianças e grupos infantis em diversas regiões
do país.
O brincar precisa de tempo e espaço. As crianças têm sido
tão pressionadas nos dias atuais, lotadas de atividades, obrigações e
expectativas (incluindo, em muitos casos, cuidar de crianças mais novas, da
casa ou trabalhar), que quase não têm tido tempos e espaços para brincarem de
forma livre e saudável.
Poder não fazer nada, brincar com a imaginação, mesmo que
sozinhos, escolher amigos, brincadeiras e objetos para brincar e montar suas
histórias. Pintar, esconder-se, experimentar, ter contato com diversos
materiais e atividades, música, movimento, arte etc.
Tudo isso é necessário, não é perda de tempo e a criança
se desenvolve, cresce, aprende, se descobre e descobre o mundo. Nós adultos
achamos que ainda precisamos estar o tempo todo interferindo, direcionando ou
controlando.
A segurança é fundamental, mas não pode tolher o
movimento lúdico das crianças. Esses respiros são essenciais para cada criança
poder ser quem ela é.
Se há uma intervenção que é necessária por parte dos
educadores e cuidadores é a de criar oportunidades para as crianças brincarem:
se dar ao trabalho de escolher atividades, espaços, objetos e/ou brinquedos
adequados para cada idade, para cada situação, para cada comportamento.
Quais os nossos desafios enquanto educadores e
cuidadores? Criar espaços, tempos e oportunidades para que as crianças possam
‘falar suas linguagens’, viver suas infâncias, escolher do que, com quem e com
o quê querem brincar. Observá-las (não significa vigiá-las!), escutá-las, dar
espaço para o brincar livre e saudável.
Isto significa ‘conhecê-las’ e saber o que querem, o que
vivem o que precisam, a partir da sua espontaneidade, nos seus momentos livres
ou nas atividades dirigidas.
Assim, será possível redesenhar propostas e programas
adequados, criando espaços de diálogos com as crianças de hoje. E deixar as
crianças SEREM CRIANÇAS e viver suas infâncias!!
Por Adriana Friedmann, Pedagoga, mestre em Educação, doutora em Antropologia, é criadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira e do Nepsid(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento).
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