Gazeta da Torre
Pedro Graça, nutricionista e professor |
A COVID-19 ao quebrar a velha dicotomia entre doença
infeciosa e crónica e ao criar grupos de risco em torno da idade e da
desregulação metabólica promovida pela alimentação inadequada e sedentarismo
transforma uma infeção viral, altamente contagiosa e global, num enorme desafio
social e político que nos obriga a pensar a nutrição de forma diferente.
Neste contexto de mudança de paradigma na intervenção em
saúde pública constata-se a continuidade da centralidade da alimentação
adequada como fator determinante na manutenção do estado de saúde das
populações e, por outro lado, o acesso a esta mesma alimentação adequada como
fator importante para a redução das desigualdades em saúde. Mas se a adequação
e o acesso à alimentação saudável continuarão centrais na promoção da saúde das
populações, o modelo de intervenção do nutricionista terá de ser agora mais
adaptativo a esta nova situação.
Em primeiro lugar, será necessário combater a anterior
ideia de uma certa independência ou separação entre doença crónica e doença
aguda. Como notamos, são categorias de doença que no contexto atual da COVID
acabam por se interrelacionar e amplificar. A alimentação para a redução dos
processos inflamatórios, manutenção do sistema imunitário em boas condições e
controlo metabólico têm muito em comum e não devem ser separados. Estes
processos são vitais na prevenção ou mitigação de futuros surtos de doença
infeciosas e os nutricionistas que estão na comunidade irão ter um papel
central nestas intervenções. Durante e entre crises futuras, ou entre vagas da
mesma pandemia. Também as intervenções mais diferenciadas no combate à infeção
necessitarão cada vez mais de profissionais capazes de providenciar o suporte
nutricional adequado nas unidades de saúde mais especializadas e, portanto,
esta é uma área que necessitará da nossa atenção máxima.
O mesmo se passará com o treino para um atendimento à
distância dos profissionais de saúde com a necessária revisão de alguns códigos
deontológicos e com uma posição menos conservadora e mais rápida e adaptativa
por parte das entidades reguladora da profissão, nomeadamente as Ordens
profissionais
Mas outros desafios irão aparecer. Os momentos de consumo
alimentar são na sociedade e na sociedade mediterrânica em particular, momentos
de convivialidade que são importantes para o bem-estar emocional das
populações, para uma ingestão alimentar mais equilibrada e também para a
redução dos impactos do consumo alimentar no meio ambiente. Competirá aos
nutricionistas serem capazes de trabalhar novas regras de segurança dos
alimentos e manter os padrões de convivialidade mínimos. Esta intervenção será
ainda mais importante em locais de risco aumentado como os espaços onde existem
doentes ou idosos institucionalizados. Os sistemas de produção e distribuição
de alimentos tentarão utilizar, cada vez mais, os modelos de produção e
autonomia local como resposta às necessidades de mercado. Será necessário
desenhar novos sistemas. Depois da generalização do sistema de Análise de
Perigos e Controlo de Pontos Críticos (HACCP) com o objetivo de evitar
potenciais riscos aos consumidores colocando à disposição alimentos seguros através
do Regulamento (CE) nº852/2004 é tempo de revisitar os pontos críticos destes
sistemas tendo como nova preocupação a infeção entre profissionais da cadeia
alimentar.
Todos estes modelos, quer seja da prestação de cuidados
quer seja do sistema produtivo alimentar, partem agora de um novo paradigma que
se sublinha com esta crise . Quanto menor a participação do ser humano mais
robusta fica a cadeia produtiva e menos sujeita estará a interrupções não
programadas. Ou seja, vai-nos ser pedido, cada vez mais, para desenhar modelos
de produção alimentar, de assistência à doença e de controlo que no futuro irão
aumentar o desemprego em áreas mais tradicionais de intervenção do
nutricionista. Nada que a obra distópica de Isaac Asimov não previsse desde os anos
40. O tema da dependência dos seres humanos em relação aos robots com
capacidade para criar outros robots superiores e assim por diante, até que as
máquinas se transformam em mecanismos tão complexos que escapam à possibilidade
de verificação e controlo humanos. A robotização é certamente um processo que
estas doenças irão acelerar, incluindo na cadeia alimentar e no trabalho.
Os nutricionistas deverão participar nestes rearranjos de
forma a que este investimento não retire o acesso a produtos alimentares
saudáveis à população mais desfavorecida economicamente. As populações mais
desfavorecidas economicamente e malnutridas (por excesso ou carência) serão as
primeiras a necessitar de apoio alimentar de qualidade neste e nos futuros
surtos infeciosos. A escassez alimentar aparecerá. Pelo menos, a escassez de
produtos saudáveis para os mais carenciados irá sentir-se e a insegurança
alimentar voltará a ultrapassar os níveis de 2011. O treino e a formação para o
apoio alimentar de emergência mantendo a qualidade nutricional, será certamente
uma das áreas de formação dos nutricionistas no futuro. Assim como o combate ao
estigma sobre os infetados numa primeira fase e sobre os doentes crónicos e os
idosos que serão os grupos mais afetados nesta interação infeção – doença
crónica – pobreza como determinante do tempo e utilização de recursos humanos e
físicos dos sistemas de saúde.
Por Pedro Graça - Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto
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