terça-feira, 31 de agosto de 2021

O mundo pós-COVID e o novo papel dos Nutricionistas

 Gazeta da Torre

Pedro Graça, nutricionista e professor

A COVID-19 ao quebrar a velha dicotomia entre doença infeciosa e crónica e ao criar grupos de risco em torno da idade e da desregulação metabólica promovida pela alimentação inadequada e sedentarismo transforma uma infeção viral, altamente contagiosa e global, num enorme desafio social e político que nos obriga a pensar a nutrição de forma diferente.

Neste contexto de mudança de paradigma na intervenção em saúde pública constata-se a continuidade da centralidade da alimentação adequada como fator determinante na manutenção do estado de saúde das populações e, por outro lado, o acesso a esta mesma alimentação adequada como fator importante para a redução das desigualdades em saúde. Mas se a adequação e o acesso à alimentação saudável continuarão centrais na promoção da saúde das populações, o modelo de intervenção do nutricionista terá de ser agora mais adaptativo a esta nova situação.

Em primeiro lugar, será necessário combater a anterior ideia de uma certa independência ou separação entre doença crónica e doença aguda. Como notamos, são categorias de doença que no contexto atual da COVID acabam por se interrelacionar e amplificar. A alimentação para a redução dos processos inflamatórios, manutenção do sistema imunitário em boas condições e controlo metabólico têm muito em comum e não devem ser separados. Estes processos são vitais na prevenção ou mitigação de futuros surtos de doença infeciosas e os nutricionistas que estão na comunidade irão ter um papel central nestas intervenções. Durante e entre crises futuras, ou entre vagas da mesma pandemia. Também as intervenções mais diferenciadas no combate à infeção necessitarão cada vez mais de profissionais capazes de providenciar o suporte nutricional adequado nas unidades de saúde mais especializadas e, portanto, esta é uma área que necessitará da nossa atenção máxima.

O mesmo se passará com o treino para um atendimento à distância dos profissionais de saúde com a necessária revisão de alguns códigos deontológicos e com uma posição menos conservadora e mais rápida e adaptativa por parte das entidades reguladora da profissão, nomeadamente as Ordens profissionais

Mas outros desafios irão aparecer. Os momentos de consumo alimentar são na sociedade e na sociedade mediterrânica em particular, momentos de convivialidade que são importantes para o bem-estar emocional das populações, para uma ingestão alimentar mais equilibrada e também para a redução dos impactos do consumo alimentar no meio ambiente. Competirá aos nutricionistas serem capazes de trabalhar novas regras de segurança dos alimentos e manter os padrões de convivialidade mínimos. Esta intervenção será ainda mais importante em locais de risco aumentado como os espaços onde existem doentes ou idosos institucionalizados. Os sistemas de produção e distribuição de alimentos tentarão utilizar, cada vez mais, os modelos de produção e autonomia local como resposta às necessidades de mercado. Será necessário desenhar novos sistemas. Depois da generalização do sistema de Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos (HACCP) com o objetivo de evitar potenciais riscos aos consumidores colocando à disposição alimentos seguros através do Regulamento (CE) nº852/2004 é tempo de revisitar os pontos críticos destes sistemas tendo como nova preocupação a infeção entre profissionais da cadeia alimentar.

Todos estes modelos, quer seja da prestação de cuidados quer seja do sistema produtivo alimentar, partem agora de um novo paradigma que se sublinha com esta crise . Quanto menor a participação do ser humano mais robusta fica a cadeia produtiva e menos sujeita estará a interrupções não programadas. Ou seja, vai-nos ser pedido, cada vez mais, para desenhar modelos de produção alimentar, de assistência à doença e de controlo que no futuro irão aumentar o desemprego em áreas mais tradicionais de intervenção do nutricionista. Nada que a obra distópica de Isaac Asimov não previsse desde os anos 40. O tema da dependência dos seres humanos em relação aos robots com capacidade para criar outros robots superiores e assim por diante, até que as máquinas se transformam em mecanismos tão complexos que escapam à possibilidade de verificação e controlo humanos. A robotização é certamente um processo que estas doenças irão acelerar, incluindo na cadeia alimentar e no trabalho.

Os nutricionistas deverão participar nestes rearranjos de forma a que este investimento não retire o acesso a produtos alimentares saudáveis à população mais desfavorecida economicamente. As populações mais desfavorecidas economicamente e malnutridas (por excesso ou carência) serão as primeiras a necessitar de apoio alimentar de qualidade neste e nos futuros surtos infeciosos. A escassez alimentar aparecerá. Pelo menos, a escassez de produtos saudáveis para os mais carenciados irá sentir-se e a insegurança alimentar voltará a ultrapassar os níveis de 2011. O treino e a formação para o apoio alimentar de emergência mantendo a qualidade nutricional, será certamente uma das áreas de formação dos nutricionistas no futuro. Assim como o combate ao estigma sobre os infetados numa primeira fase e sobre os doentes crónicos e os idosos que serão os grupos mais afetados nesta interação infeção – doença crónica – pobreza como determinante do tempo e utilização de recursos humanos e físicos dos sistemas de saúde.

Por Pedro Graça - Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto

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