Gazeta da Torre
Desde a ficção científica, passando pela comédia
realista, o faroeste de chanchada e o drama familiar, os longas-metragens do
Festival de Gramado são vitrine da diversidade e qualidade do audiovisual
nacional.
O Brasil não apenas sabe fazer cinema dos bons, como o
faz com com um talento para a crítica social e política, com o requinte do bom
uso da sátira e da ironia, sem cair no didatismo. É o que mostram os filmes que
foram destaque no Festival de Cinema de Gramado, que, entre 13 e 21 de agosto,
foi palco virtual de mostras e debates sobre a produção brasileira e
latino-americana.
Carro rei
O grande vencedor nacional do 49º Festival de Cinema de
Gramado é Carro rei, longa-metragem da diretora Renata Pinheiro, que dialoga
com a ficção científica numa obra ao mesmo tempo realista, centrada na paixão e
no caos movidos, em igual medida, pelos automóveis. Em Caruaru, no agreste de
Pernambuco, o jovem Uno (interpretado por Luciano Pedro Jr.) —batizado em
homenagem ao carro em que nasceu, a caminho da maternidade— tem esses veículos
como seus melhores amigos, sendo capaz, inclusive, de comunicar-se com eles.
Quando uma lei municipal determina que todos os veículos com mais de 15 anos de
uso saiam de circulação, ele e o tio, o mecânico Zé Macaco (vivido com maestria
por Matheus Nachtergaele) se unem para tentar salvar a frota de táxi da
família. Aí começa uma espécie de revolução dos automóveis. Com vocação genial
para seu ofício, Zé Macaco também aprende a se comunicar com os carros e,
juntos, tio e sobrinho criam o Carro rei, que interage com humanos e é capaz de
demonstrar sentimentos. Numa crítica à obsolescência programada e ao caos
automobilístico nas cidades brasileiras, o filme mostra como, à medida em que
se relaciona cada vez com os veículos, Zé Macaco regride na escala biológica,
aproximando-se —inclusive fisicamente, sem que sejam necessários efeitos
especiais— num símio.
Homem onça
Pedro (interpretado por Chico Dias) é funcionário de uma
empresa estatal de gás —imaginária— que está prestes a ser privatizada.
Pressionado, ele deve demitir sua equipe e antecipar a aposentadoria. No longa
de Vinicius Reis, que estreia nos cinemas no dia 26 de agosto, o protagonista
luta para preservar os trabalhos e direitos dos funcionários, mas fracassa. Ao
perder o posto e se aposentar, Pedro perde também suas referências, seu
casamento, sua própria identidade, e tenta se reencontrar ao regressar à sua
cidade de origem. Baseado na história real do pai do diretor, que foi um
funcionário da Vale do Rio Doce —o filme começa com imagens fotográficas reais
dos protestos que aconteceram no país contra a privatização da empresa— Homem
onça lembra o Brasil preso na promessa de futuro, mas que só sabe repetir o
passado.
Jesus Kid
Em seu quinto longa-metragem, o diretor Aly Muritiba,
baiano radicado no Paraná e ex-agente penitenciário que começou no cinema com
documentários e ficções dramáticas, mergulha na comédia escrachada com ares de
faroeste. Na adaptação do livro homônimo de Lourenço Mutarelli, lançado em
2012, Eugênio (interpretado por Paulo Miklos) é um escritor que vive um
bloqueio criativo enquanto as histórias de Jesus Kid, seu grande sucesso, já
não vendem tão bem. Sua tábua de salvação parece ser um convite para
enclausurar-se por três meses em um hotel e escrever o roteiro de um filme,
obedecendo às regras estabelecidas pelo cineasta e produtor ligados à
publicidade e servis a quem quer que esteja no comando político e empresarial
do país). No filme que dialoga com as obras dos irmãos Coen (especialmente com
Barton Fink - delírios de Holywood, de 1991) e de Wes Anderson, Jesus Kid é uma
sátira quase escancarada da política cultural atual no Brasil de Jair
Bolsonaro. Na trama estão presentes, por exemplo, o empresário com o
espalhafatoso terno verde-amarelo, os patos-símbolo de revanche patriota, um
ideólogo chamado Olavo que prega novas diretrizes “estéticas” para a arte e o
herói Super-Sérgio. “Se eles nos massacram, eu não vou me privar do prazer de
tirar sarro da cara deles”, disse, sem titubear, Aly Muritiba na apresentação
do filme em Gramado.
O novelo
Na ciranda de cinco irmãos adultos (todos homens), as
lágrimas, abraços, pedidos de desculpa e discussões —tudo isso em meio a
flashbacks da infância— são o pão de cada dia. Os cinco carregam o trauma do
abandono paterno e da perda precoce da mãe, que fazia tricô para sustentá-los,
e, depois de três décadas afastados, voltam a se reunir para descobrir se um
paciente em coma numa UTI pode ser seu progenitor. Com temas que vão da
paternidade à sexualidade, o longa dirigido por Claudia Pinheiro questiona os
estereótipos ligados à masculinidade, que se acentuam socialmente nos corpos de
homens pretos. Adaptado da peça homônima de Nanna Castro (que assina o roteiro
do filme), O novelo traz um elenco negro em situações dissociadas do racismo,
da marginalidade e do preconceito. As personagens são escritores, empresários,
patrões. E, ao lado da sensibilidade estética, esse é um dos trunfos da obra.
A primeira morte de Joana
A primeira morte de Joana (vivida pela atriz (Letícia Kacperski) é a da uma tia-avó que falece aos 70 e que “nunca namorou ninguém”, conforme descobre a adolescente de 13 anos, um fato que passa a obcecá-la e que a faz intuir algum mistério familiar (ou muitos). Nesse coming of age nacional, dirigido pela gaúcha Cristiane Oliveira, o espectador acompanha as descobertas no amor e na sexualidade da jovem que vive em uma humilde e conservadora comunidade de origem alemã na litorânea cidade de Osório, no Rio Grande do Sul, prestes a ser transformada pela chegada dos “cataventos”, como os moradores locais chamam o parque eólico implantado no local. Uma metáfora da tempestade interna da protagonista e das mudanças que se atropelam nessa fase da vida. Esteticamente, a obra adota uma placidez que contrasta com o cerne da narrativa e propõe um mistério nos enigmas do sentir, que se estendem para muito além da adolescência.
Fonte:El País
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