Por mais difícil que seja prever hábitos futuros, até
mesmo tratando-se do próximo mês, é possível traçar paralelos entre a
atualidade e outros pontos da história para, talvez, encontrar semelhanças nos
comportamentos.
Um histórico recente: do pós-guerra ao ‘new look’
Um dos momentos históricos de mudança radical na moda
feminina foi a Primeira Guerra Mundial. Com os homens na Europa sendo enviados
ao front, incluindo adolescentes, as mulheres, até então tratadas como bibelôs,
ocuparam os postos de trabalho braçal. Pela primeira vez, elas se livraram das
saias pesadas para vestirem calça e macacão durante as jornadas nas fábricas. A
oportunidade de usar uma roupa leve e confortável já havia mudado o panorama
para sempre.
“O contexto de guerra tornou a indumentária atribuída às
mulheres até então inútil, pois você precisa de movimento de corpo, seja para
trabalhar em fábricas, como enfermeiras em hospitais ou angariando fundos de
guerra. A mulher encurta o cabelo, a roupa se torna mais prática, e ela vai
conquistando o ambiente urbano”, explica Patrícia Helena Soares Fonseca,
professora dos cursos de Moda e Design da Fundação Armando Alvares Penteado
(FAAP).
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), o uso da
calça comprida ficou ainda mais popular na Europa. Afinal, não é eficiente
correr de bombardeios usando vestidos.
Mas no pós-Segunda Guerra, surgiu uma mudança
conservadora. O corpo da mulher voltou a ser preso, e veio a opulência dos
vestidos, cheios de dobras, camadas e estruturas pesadas. Era o ‘new look’
inventado por Christian Dior, que saiu das passarelas e influenciou guarda-roupas
em todo o planeta.
A história recente do mundo ocidental deixa claro que
prever o que as pessoas vão querer vestir depois da pandemia é tarefa quase
impossível. “Há a possibilidade de repensar o vestuário. É claro! E seria o
ideal. Mas isso vai acontecer?”, questiona Patrícia.
Mulheres refletem sobre padrões e consumo
Se depender de Nuta Vasconcellos, sim. Criadora do
projeto Chá de Autoestima, palestrante e estudante de Psicologia, ela tem
levado a discussão para as suas seguidoras: 26 mil na conta do projeto e 14,3
mil na pessoal. Isso só no Instagram. A descrição de seu perfil, aliás, já dá o
spoiler: “feminino consciente”.
“Noto que as seguidoras estão refletindo mais sobre o que
fazem pensando em agradar ao olhar masculino ou para serem mais bem aceitas
socialmente”, observa Nuta, que também encontra espaço para repensar seus
próprios padrões: “Durante a quarentena, notei que faço minhas unhas por
questões sociais. Não tenho feito em casa, e não ligo. Mas sempre fazia para
dar as palestras.”
O look de home office estava integrado à rotina há muito
tempo: roupa mais folgada, sapatos confortáveis (ou nenhum).
“Sempre usei roupa básica e funcional para trabalhar em
casa. Mas quando tenho vontade de me arrumar mais, colocar maquiagem, fazer um
penteado, eu faço”, diz, antes de acrescentar: “Ah, mas se tem uma coisa que não
coloco pra ficar em casa é jeans”.
A empresária de nome artístico Gaia Qual a-versão, que
conduz o projeto de educação sexual para mulheres “Meu clitóris minhas regras”,
reforça que a quarentena está demonstrando que “ter guarda-roupas cheio não
vale de nada”. Ela já era adepta de um guarda-roupas básico, enxuto e
confortável (“de calçados tenho só três pares de tênis, um sapato e dois
chinelos”). Ela não usa sutiã há sete anos.
“E vou te dizer que é complicado tentar viver com o
mínimo, viu? Eu tenho que bater perna pelo Centro de São Paulo inteiro para
encontrar uma camiseta preta lisa ou uma calcinha de algodão, que são as
recomendadas para não irritar a pele e manter a saúde da vulva. Aliás, está aí
uma dica importante para as mulheres, não apenas durante a quarentena”, aponta
Gaia. Para ela, a própria indústria não está pronta nem tem interesse em uma
mudança a um estágio mais básico do consumo. “É muito mais rentável vender
peças que, em seis meses, sairão de moda, e precisarão ser repostas.”
Olhar para o futuro
Presidente da Associação Brasileira de Estudos e
Pesquisas em Moda e diretora da editora Estação das Letras e Cores, Kathia
Castilho acredita que a moda se adapta rapidamente às novas realidades, o que é
uma ótima notícia. A parte não tão boa é que, para isso, é preciso vontade de
mudar os padrões de consumo.
“A moda veste a história, então está conectada ao seu
tempo. Já estamos vendo soluções de designers para máscaras que protegem o
rosto mas sem esconder as expressões faciais, por exemplo, e pesquisas
tecnológicas para pensar na roupa como defesa, tecidos antibacterianos… O
aspecto utilitário da moda está borbulhando”, analisa Kathia Castilho, que é
doutora em Comunicação e Semiótica. “A questão é pensar no que vamos valorizar,
como sociedade, nesse momento pós-pandemia.”
Para ela, apesar do muito que se caminhou em direção a
uma moda mais confortável e útil para as mulheres, há características que
merecem uma boa reflexão ainda. A primeira delas é a de que a maneira de vestir
o corpo feminino muitas vezes ainda é direcionada a um suposto olhar masculino
de sedução. “Isso inclui a roupa ajustada no corpo, nem sempre o mais saudável
ou confortável para quem veste. É importante desvincular a vestimenta do olhar
do homem e do poder sobre o corpo feminino”, pondera a Kathia.
Outro ponto primordial é que as transformações e
evoluções da moda se deem na direção da sustentabilidade.
“A indústria da moda é uma das principais causas de
poluição e agressão ao meio ambiente. Mas há alternativas, como participar de
grupos de compra consciente, consumir produtos mais duráveis e fomentar a
indústria local, em vez de grandes marcas”, acredita a pesquisadora.
Patrícia Fonseca, professora da FAAP, também chama a
atenção para o ponto: o de que é preciso se discutir os excessos.
“Espero que haja uma reflexão sobre o que queremos como
sociedade. Pensar a moda aliada à ciência, à saúde, ao meio ambiente, e
repensar o consumo. Fazer uma moda mais sustentável e tecnológica? Ou sair
correndo em direção ao shopping assim que a quarentena acabar?”, provoca
Patrícia.
Nuta já escolheu de que lado quer ficar e comprova na
prática: a conta do cartão de crédito teve redução de 60% no período de quarentena.
“Não estou deixando de ter nada de essencial: comida,
luz, internet, remédios… Estou bem e gastando menos. E isso me fez pensar no
quanto consumimos porque estamos num mundo que faz a gente consumir o tempo
todo.”
Como após qualquer grande ruptura, nasce um momento
propício para repensar as prioridades. É a hora ideal para pensar de quais
hábitos se livrar.
*Por Marina Cohen, jornalista com trabalhos no jornal O Globo e Jornal do Brasil. Hoje, escreve para o Projeto#Colabora.
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