Cibele Marras, psicóloga especialista em emergências,
fala ao jornal El País sobre como controlar a ansiedade das crianças durante a
pandemia do coronavírus, sobre o luto, e a saúde mental em tempos de isolamento
As medidas de isolamento social adotadas para conter o
avanço da pandemia do novo coronavírus impõem um desafio para milhões de
famílias que agora tentam conciliar rotinas de trabalho, o cuidado e educação
dos filhos e convivência familiar, tudo isso concentrado sob o mesmo teto. Mas
equilibrar tantos pratinhos não é fácil, menos ainda sob a tensão da ameaça da
Covid-19, e suas repercussões emocionais e financeiras. A psicóloga Cibele
Marras, especialista em psicologia das emergências e desastres, que atua há 15
anos nesta área, destaca a importância do cuidado com a saúde mental neste
período, e enumera algumas estratégias para que adultos e crianças atravessem
esta fase com a maior leveza possível. “Mães e pais não deveriam se cobrar para
ter a mesma produtividade que teriam se eles tivessem na empresa, sem ninguém
atrapalhando. Isso não vai acontecer, de jeito algum.” A psicóloga, coautora do
livro Psicologia das emergências, falou ao El País por telefone, em São Paulo,
em uma entrevista feita através de mensagens de áudio, gravadas enquanto também
conciliava o trabalho com a atenção aos dois filhos.
Pergunta. Como a pandemia do coronavírus e o isolamento
social afetam a mente das crianças?
Resposta. A primeira coisa é não subestimá-las. A gente
acredita que as crianças não precisam de informações, que elas não sabem o que
está acontecendo. Elas sabem o que está acontecendo. Talvez elas não tenham
toda a compreensão cognitiva do que está acontecendo, mas elas entendem que tem
alguma coisa muito diferente acontecendo. O ambiente de tensão está sendo
mostrado todos os dias, seja quando a gente toma todas as precauções de
segurança, seja quando mandamos lavarem as mãos 20 vezes por dia. É muito
importante conversar. Explicar que estamos em um momento em que quase todas as
pessoas estão em casa, que elas não vão poder ver os amigos por um tempo, mas
que isso vai passar. Explicar na linguagem delas. Para as crianças menores, por
exemplo, desenhar um monstrinho, mostrar como lavar as mãos afasta o perigo.
Dar informações claras e precisas, numa linguagem adequada para a idade delas,
usando recursos condizentes com a capacidade de compreensão das crianças. Mas
não as abarrote de informações. Diga só o que precisam saber. Isso ajuda a
diminuir o estresse, porque as crianças não ficarão tentando adivinhar o que é
a cara de nervosismo das pessoas ao redor.
P. Muitas crianças estão sendo afastadas do convívio de
pessoas queridas, como dos avós, que figuram nos grupos de risco da Covid-19.
Como ajudá-los a lidar com a saudade?
R. Caso seja seguro, procure não afastá-las do convívio
com seus cuidadores principais. É importante que a criança fique perto de quem
ela confia nesse momento de tanta incerteza. Porque são as figuras que elas vão
procurar num momento difícil. E é importante trazer virtualmente as pessoas que
estão longe para perto da criança, sempre que possível, não promover uma
ruptura abrupta. As conversas virtuais com os avós, com os tios, com os amigos
da escola, com as pessoas que elas estão acostumadas e gostam, ajudam muito.
P. O que fazer para diminuir a ansiedade dos filhos nessa
fase?
R. Criar uma rotina para este período. As crianças
entendem e precisam de rotina, senão tudo fica mais caótico. Eles ficam
ansiosos, querem saber o tempo todo o que vão fazer depois disso, depois
daquilo. A rotina traz segurança. Então tentar manter uma rotina parecida com o
que tinham, mesmo que no ambiente domiciliar. Então acorda, faz um café da
manhã, depois vai ver televisão, depois a gente vai brincar, ler um livrinho,
depois a gente pode fazer alguma brincadeira mais física, porque eles também
precisam gastar essa energia… Estão surgindo inúmeras possibilidades
virtualmente, muitos contadores de história estão fazendo lives. Incentivar as
brincadeiras, as atividades lúdicas. Muitas escolas estão mandando tarefas para
os pais ou cuidadores fazerem nesse momento. Não é só para terem atividade,
para os pais não ficarem loucos com essas crianças em casa. É porque isso afeta
menos a rotina de uma criança, que já esta tão afetada por não poder sair de
casa.
P. Manter uma rotina para as crianças enquanto se está
trabalhando também não é fácil.
R. Não precisa ser só brincadeiras. Faça coisas
desestruturadas dentro da rotina. Eles não precisam de brinquedos estruturados.
Ensine-os a cozinhar, por exemplo. Eles se divertem muito facilmente. A gente
pode aproveitar e chamá-los para nos ajudar ao invés de acharmos que temos que
dar conta de criar 20 atividades pra eles o tempo inteiro.
P. O que fazer quando acabam as atividades, mas não a
energia das crianças?
R. Também podemos educar nossos filhos para que eles
saibam que vai ter horas em que eles não vão ter o que fazer mesmo. Eles vão
ficar irritados. E na nossa geração de pais, frustrar as crianças é muito
difícil. Mas esta situação que nós estamos vivendo é frustrante por si só, para
todos nós. Porque ninguém escolheria estar em casa e não poder sair. Mas
frustrações são importantes inclusive para o nosso desenvolvimento.
P. O que os pais podem tirar desse momento de lição?
R. Nós seremos mais exigidos pelas crianças. Elas estão
mais estressadas, nós somos o porto seguro delas e elas vão nos exigir mais
demanda emocional. Precisamos estar preparados pra isso. E entender que pode
ser que em algum momento a gente perca a calma e a paciência, e isso também é
humano. Mas lembrar que ainda somos os adultos e temos mais recursos que as
crianças, até porque cognitivamente entendemos completamente o que está
acontecendo e a necessidade de estarmos em casa. Então vamos aproveitar para
trabalhar temas com as nossas crianças como empatia.
P. Por outro lado, trabalhar com as crianças em casa
também causa uma carga de estresse sobre os adultos.
R. Mães e pais não deveriam se cobrar para ter a mesma
produtividade que teriam se eles tivessem na empresa, sem ninguém atrapalhando.
Isso não vai acontecer, de jeito algum. É importante lembrar e sentir que estão
fazendo o possível dentro da situação que a gente tem.
P. Como lidar com a nossa própria ansiedade e ajudar as
pessoas queridas que estão em sofrimento?
R. Nesses momentos de grandes crises, é preciso voltar o
olhar para alguns aspectos positivos. É um momento de introspecção, de ficar em
casa, mas também é um momento de tentar frear esse ritmo alucinante que a gente
tinha, de entrega de trabalho, de não prestar atenção nas pessoas, para poder
fazer o contrário. Cuidar das pessoas. Cuidar de coisas que nos são caras, como
nossos familiares, e das pessoas de quem a gente gosta. O momento de crise
sempre leva as pessoas a um limite, mas são situações como essas que também
podem levar as pessoas e encontrarem melhores ferramentas para lidar com suas
emoções e ajudar o próximo. Existem algumas coisas muito significativas que
estão sendo feitas que mostram o poder de comunidade, da solidariedade. Isso
nos ajuda a nos sentir seguros e acolhidos, mesmo fechados nas paredes de cada
uma de nossas casas.
P. Falamos até agora de pessoas ainda não afetadas
diretamente pelo coronavírus, mas já há pessoas em luto e muitos países, como
Itália e Espanha. Como lidar com esse sofrimento?
R. Nosso costume no Brasil é de abraçar, beijar, tocar… E
a gente não vai poder fazer isso por algum tempo, o que nos causa muito
desconforto emocional. Tudo isso pode, de fato, ajudar a dificultar muito o
processo de luto dos enlutados. E, de certa forma, mesmo que não tenhamos
vivido essas mortes diretamente, todos já estamos vivendo um processo de luto.
Porque estamos sofrendo as perdas nesse processo de quarentena. Inclusive a
perda do que a gente imaginava de mundo, que era o que nos dava segurança. E
isso é uma questão significativa pra nossa saúde mental, ter a mínima noção do
que vai ser o amanhã, o que a gente perdeu em todos os âmbitos. Desde a nossa
privação de liberdade, do medo pelos mais velhos, pelos profissionais que estão
aí tendo que continuar a trabalhar em algum serviço essencial. Coletivamente
falando, do ponto de vista psicológico, é como se a gente estivesse em uma
guerra contra um agente biológico. E a nossa cultura nunca passou por uma
guerra. A gente nunca foi privado, apesar de termos tido algumas privações. O
que explica a resistência do isolamento. Mas muitos psicólogos estão abrindo
canais de conversa on-line, até gratuitas, para acolher essas pessoas
enlutadas, pessoas que sintam necessidade em momentos de extremo estresse,
apoio psicológico a profissionais de saúde que estão na linha de frente dessa
luta. É preciso procurar ajuda. E ajudar. E se manter presente na vida dessas
pessoas, das pessoas enlutadas, mesmo que à distância, mesmo virtualmente.
Fonte:El País/Marina Novaes
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