Gazeta da Torre
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Gilberto Gil
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Rua da Aurora, Recife |
Era uma tarde ensolarada do mês de agosto, na minha amada
cidade do Recife. Eu transitava pela rua da Aurora, no centro desta nossa linda
cidade. O céu estava sem nuvens e com uma coloração azul intensa. O rio
deslizava sereno, carregando reflexos do céu, em direção ao mar que o chamava.
O cenário parecia um convite para os poetas se inspirarem.
Antes de prosseguir com o assunto que pretendo comentar,
abro logo um parêntese para uma observação com ares de protesto. Refiro-me a
estas mudanças de nomes das ruas da nossa cidade, para homenagear governador
"fulano de tal", Dr. "sicrano", deputado "beltrano".
Ora, ora, nossa cidade sempre foi conhecida pelos nomes poéticos das nossas
ruas, a saber: Aurora, Rua do Sol, Rua das Flores, Águas Belas. Indo além,
temos as ruas da Saudade, do Sossego, da União, da Harmonia. O poeta Manoel
Bandeira certa feita demonstrou essa preocupação com a prática dos vereadores
de se ocuparem de mudar os nomes das ruas para homenagear políticos e
"doutores". No poema "Evocação do Recife", ele fala nos
"lindos nomes das ruas da minha infância". Preservar a poesia dos nomes
dessas ruas é respeitar a história da cidade e sua identidade.
Mas voltemos ao assunto tema desta crônica. Transitando
pela rua da Aurora nesta linda tarde, deparo-me com um cidadão vindo ao meu
encontro, fitando-me com rosto que me pareceu angustiado. Ao cruzar comigo,
pediu-me "um trocado". Instintivamente, atitude defensiva que
comumente adotamos, respondi que nada tinha e segui em frente. Entretanto,
lembrei que tinha sim um dinheiro miúdo no meu bolso, de modo que me virei e,
para minha surpresa, o cidadão também, no mesmo instante, se virava, e então
nos fitamos. Começamos então a caminhar um em direção ao outro no mesmo exato
instante. Sem pronunciar uma única palavra, olhamo-nos e lhe entreguei o
dinheiro. Neste momento, ele agradeceu e disse que ainda não tinha feito
nenhuma refeição naquele dia. E assim ele seguiu, em movimentos lentos,
carregando as suas dores. Suas roupas, seu semblante triste e seu ar resignado
indicavam que o mundo o recebeu com pouca hospitalidade.
Fiquei impressionado com a coincidência de movimentos que
tivemos e comentei o fato com um amigo meu, que logo disse que o que tinha
acontecido foi uma sincronicidade. Ele me explicou superficialmente o
significado do termo e eu procurei me aprofundar um pouco no tema.
Carl Gustav Jung, o psicólogo suíço que cunhou o termo
"sincronicidade", definia-a como a ocorrência simultânea de eventos
aparentemente não relacionados, mas que possuem um significado especial para
quem os vivencia. No meu encontro na rua da Aurora, não foi apenas uma
coincidência que tanto eu quanto o homem nos virássemos no mesmo instante. Foi
como se uma força invisível orquestrasse aquele momento de compaixão e
generosidade.
A Dança Invisível do Universo
Essas experiências revelam uma conexão invisível no
universo, incentivando atenção plena e reflexão. Exemplos cotidianos incluem
telefonemas inesperados ou encontros fortuitos que parecem mais do que mero
acaso. A ideia central é que o universo nos envia mensagens e que, ao
percebê-las, podemos entender melhor nossa relação com o todo.
Jung sugeria que as sincronicidades são janelas para uma
dimensão mais profunda da existência, onde mente e matéria se encontram numa
dança cósmica. Talvez o maior ensinamento seja o convite à atenção plena.
Quando estamos verdadeiramente presentes, conseguimos perceber as conexões
sutis que permeiam nossa existência.
Meu encontro na rua da Aurora me ensinou que a
generosidade é uma via de mão dupla. Ao ajudar aquele homem, recebi algo muito
maior: a confirmação de que estamos todos conectados numa teia invisível de
significados. Este encontro pode ser interpretado como um momento em que duas
almas se reconheceram numa dança cósmica de necessidade e abundância. O homem
precisava de ajuda, eu tinha condições de ajudar, e o universo conspirou para
que esse encontro acontecesse da forma mais harmoniosa possível. Não foi apenas
uma transação material, mas um intercâmbio de humanidade.
Sincronicidades no Cotidiano
As sincronicidades estão por toda parte, basta termos
olhos para vê-las. Quantas vezes não pensamos em alguém e, minutos depois, essa
pessoa nos telefona? Ou quando procuramos desesperadamente por uma informação e
ela aparece "por acaso" numa conversa de elevador? Esses eventos
aparentemente triviais podem carregar significados profundos quando os observamos
com atenção.
Acontece também de estarmos pensando muito em algo e
repentinamente aparecerem situações relacionadas com aquilo que só nós mesmos
tínhamos conhecimento. Planejando uma viagem, de repente encontramos uma pessoa
distribuindo panfletos com informações sobre viagens.
Os sinais, portanto, podem vir de pensamentos, imagens,
sonhos, conversas, mensagens em livros ou filmes, etc. É o universo facilitando
e mandando recados.
Convite à Atenção
Então, insistindo na questão, talvez o maior ensinamento
das sincronicidades seja o convite à atenção plena. Quando estamos
verdadeiramente presentes, abertos ao momento, conseguimos perceber as conexões
sutis que permeiam nossa existência. É como se o universo estivesse
constantemente nos enviando mensagens, mas só as captamos quando sintonizamos
na frequência correta.
A vida moderna, com sua pressa e suas distrações
constantes, muitas vezes nos impede de perceber essas sincronicidades. Estamos
tão focados em nossos smartphones, em nossas preocupações e em nossos planos
futuros, que perdemos a capacidade de estar verdadeiramente presentes. As
sincronicidades nos convidam a desacelerar, a prestar atenção aos detalhes, a
estar abertos ao inesperado.
Meu encontro na rua da Aurora me ensinou que a
generosidade é uma via de mão dupla. Ao ajudar aquele homem, recebi algo muito
maior em troca: a confirmação de que estamos todos conectados numa teia
invisível de significados.
As sincronicidades nos lembram que a vida é muito mais
rica e misteriosa do que nossa mente racional consegue compreender. Elas nos
convidam a abraçar o mistério, a aceitar que nem tudo precisa ter uma
explicação lógica para ter significado. Como diria Gilberto Gil, "mistério
sempre há de pintar por aí". E que bom que é assim, pois são esses
mistérios que tornam a vida uma aventura digna de ser vivida, repleta de
surpresas, risos e momentos de profunda conexão com o todo.
Talvez a verdadeira sabedoria esteja em aprender a dançar
com essas sincronicidades, em vez de tentar explicá-las ou controlá-las.
Afinal, como bem sabia o poeta Fernando Pessoa, "o mistério das coisas é a
mais bela coisa que há".
Márcio Nilo
Agosto/2025