Gazeta da Torre
Best-seller do feminismo mundial sobre saúde da mulher, ‘Nossos
corpos por nós mesmas’ tem projeto de tradução e adaptação para a realidade
brasileira concluído; envolvendo coletivos feministas, editoras independentes e
universidades públicas, obra acaba de ser lançada no País
Acaba de nascer no Brasil um livro que foi gestado por
mais de 100 pessoas envolvidas em um amplo trabalho de tradução, edição e
adaptação do best-seller do feminismo mundial Our Bodies, Ourselves.
Popularmente conhecido como OBOS, o livro se aprofunda em variadas questões
sobre saúde e sexualidade da mulher, sob a perspectiva de dupla competência:
mulheres linguistas, tradutoras, médicas, cientistas sociais e advogadas
coordenam a adaptação da obra no País, inspirando e informando outras mulheres.
Em português, a obra foi intitulada ‘Nossos corpos por nós
mesmas’ e está disponível em pré-venda no site da editora independente Ema
Livros. São 1168 páginas tratando de temas como menstruação, menopausa, sexo
seguro, métodos contraceptivos, gravidez, orientação sexual, gênero, saúde
mental, imagem corporal, maternidade, entre outros. A versão em língua
portuguesa inclui informações sobre o sistema e os serviços de saúde
brasileiros, além de relatos autênticos que contemplam a diversidade de gênero,
raça e classe social.
Na edição inédita e completa, as organizadoras contam as
fases do trabalho que chegou a ter um primeiro volume, com sete capítulos,
publicado em 2021. Dois anos depois, foi possível entregar ao público
brasileiro uma nova edição com todos os capítulos, após receberem subsídios do
Coletivo Feminista de Boston, responsável pela publicação original em inglês na
década de 1970.
O OBOS já foi traduzido para mais de 30 línguas e só
contornou as burocracias brasileiras e a falta de interesse das grandes
editoras com uma triangulação entre a organização do livro original, o pioneiro
Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade de São Paulo e duas universidades
públicas: a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já o trabalho de co-edição e de adaptação para
o contexto cultural brasileiro contou com a participação de pesquisadoras e
profissionais de saúde e tradução da USP. Entre elas, Luciana Carvalho Fonseca,
professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade. Docente do Departamento de Letras Modernas e dos programas de
pós-graduação em Letras Estrangeiras e Tradução e Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês – ambos da FFLCH -, seus projetos de pesquisa abrangem
tradução feminista, mulheres tradutoras e gênero e tradução.
“Ainda que a ideia e o impulso de traduzir tenha partido
da universidade pública – das professoras Érica Lima, da Unicamp, e Janine
Pimentel, da UFRJ, junto a seus alunos e alunas de tradução – ela só foi
possível quando o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde de São Paulo serviu de
elo com a organização americana. A tradução e a adaptação, portanto, só foi
possível dentro de um sistema em que o ‘mercado’ não dá as cartas. Ou seja,
dentro de um sistema público de ensino, pautado pela visão de coletividade e
serviço à sociedade, e dentro do movimento social de base, representado pelo
coletivo feminista”, afirma Luciana, destacando o empenho de mais de cem
pessoas, que trabalharam voluntariamente ou foram remuneradas com valores
simbólicos.
Contrações
Os mais de 50 anos que distanciam a primeira edição até o
lançamento no Brasil foram marcados pela organização de movimentos sociais
feministas e por um despertar de uma parcela da classe médica. “Cansadas de
narrativas perversas sobre sua saúde e sexualidade, as mulheres tomaram em suas
mãos a tarefa de traduzir o que se sabia, mapeando os vieses e incertezas.
Desafiando o saber estabelecido, trouxeram a experiência concreta das mulheres
com seu corpo, saúde, adoecimento, e seu confronto com o sistema de saúde –
analisado também em seus aspectos históricos e de gênero, antes de o conceito
ser consagrado”, lembra Simone Diniz, médica e professora da Faculdade de Saúde
Pública da USP, no prefácio da edição brasileira. Ela define o OBOS como
precursor ao dar voz e integrar o movimento crítico interno à própria medicina,
“que deu à luz ao que chamamos hoje de Medicina Baseada em Evidências”, diz.
Nos Estados Unidos, o movimento começou em Boston, quando
um grupo de mulheres participou de uma conferência de libertação feminina, no
Emmanuel College. Em um workshop intitulado Mulheres e seus corpos, elas
compartilharam suas experiências com médicos e a frustração de saberem tão
pouco sobre o funcionamento de seus próprios corpos. Conhecimento que se
restringia à medicina.
“Perpetuava uma relação paternalista, em relação às
mulheres, ao minimizar seus sintomas e seu nível de dor, além de, muitas vezes,
nem sequer levar em conta seu consentimento em termos de tratamentos
aplicados”, conta Luciana, destacando que a história da medicina é marcada pela
dominação patriarcal. Livros como Unwell Women, de Elinor Cleghorn; The Woman
in the Body, de Emily Martin, e Witches, Midwives and Nurses, de Barbara
Ehrenreich e Deirdre English, dão exemplos de como o corpo masculino era
tratado como padrão, enquanto o feminino como desvio. Também é extensamente
relatado que a dor em mulheres era atribuída a problemas psicológicos, e como o
casamento e a reprodução eram receitados como solução para problemas femininos
de saúde.
“O livro Our Bodies, Ourselves vem, portanto, romper com
a tradição médica de visão patriarcal ao possibilitar uma real transformação
social em relação ao conhecimento sobre o corpo feminino. A partir da primeira
edição, ele vira também um verdadeiro movimento transnacional, pois passa a
inspirar mulheres em outros países a também tomarem as rédeas em relação aos
processos relacionados à sua saúde sexual e reprodutiva”, diz.
Dilatações
Depois da conferência libertadora, o grupo de mulheres de
Boston formou o Doctor’s Group, precursor do OBOS. Em 1970, se juntaram à New
England Free Press para publicar um livro didático de 193 páginas em papel
jornal grampeado, intitulado Mulheres e seus corpos. Custando 75 centavos, a
publicação foi considerada revolucionária por falar francamente sobre
sexualidade e aborto, até então ilegal em todo o território estadunidense.
Foram nove edições, revisadas e atualizadas
progressivamente, até a última que vendeu mais de 4 milhões de cópias. Em 2011,
a revista Time reconheceu Our Bodies, Ourselves como um dos 100 melhores livros
de não ficção em inglês desde a fundação da Time, em 1923. No ano seguinte, foi
considerado pela livraria do congresso norte-americano um dos 88 livros que
moldaram a América.
Por se tratar de uma obra traduzida para países da
África, Ásia, Oriente Médio, América Latina e Europa, a publicação do OBOS em
outras línguas se configurou em um desafio de adaptação para os mais diferentes
contextos de atenção à saúde da mulher. Um exemplo do impacto do OBOS na linguagem
usada para se referir ao corpo da mulher ocorreu no Japão, como apresentado no
livro:
“No caso do japonês, palavras que nomeiam partes do corpo
como a vulva, os pelos pubianos e o osso púbico eram escritas usando caracteres
chineses que traziam o sentido de ‘vergonha’ ou ‘obscuridade’. Perceba que eles
usavam caracteres chineses e não japoneses para falar sobre a vulva, como se
não existissem palavras para nomeá-la. Isso mudou quando uma livraria de
Shokado, parceira de OBOS no Japão, revisou esses caracteres chineses com
nuance negativa para criar termos neutros ou positivos da adaptação em japonês
de OBOS. Dessa forma, desde sua publicação, pelos menos um dos termos, seimo,
que podemos traduzir como ‘pelo sexual’, foi integrado a alguns dos dicionários
japoneses mais recentes. Além disso, agora há também uma tendência crescente na
sociedade japonesa de evitar caracteres chineses que significam ou trazem o
significado de ‘vergonha’ ou ‘obscuridade’. Ao contrário dessa antiga prática,
atualmente a língua apresenta caracteres neutros ou katakana-go – palavras
estrangeiras transformadas em palavras japonesas – para falar de corpos
masculinos e femininos.”
O livro também destaca como o projeto de tradução em
Israel mudou a forma de se referir ao corpo e às diferentes fases do sistema
reprodutivo da mulher, além ter unido árabes e judias no processo:
“As mulheres notaram que ambas as culturas valorizam a
capacidade das mulheres de gerar filhos, sendo o fim da fertilidade, muitas
vezes, fonte de desespero. Assim, apesar de esse comportamento ter profundas
raízes históricas e políticas, esse grupo se preocupa com a pressão colocada
sobre as mulheres para que tenham filhos e aumentem sua comunidade étnica; além
disso, o grupo também se volta às atitudes sociais que afetam mulheres que não
podem escolher não ter filhos ou que já passaram da idade fértil. Mas o que
isso tem a ver com tradução e, mais especificamente, com a tradução do livro em
inglês para o hebraico ou para o árabe? Vejamos: valores culturais com
frequência são refletidos na linguagem. Por exemplo, os termos comuns em
hebraico que se relacionam à menopausa podem ser traduzidos como ‘a idade de
murchar’, também trazendo sentidos como o de estar ‘desgastada’, ‘usada’ ou
‘esgotada’. Já em árabe, o termo significa ‘anos de desespero’. Forte, não?
Assim, enquanto desenvolviam as adaptações em hebraico e árabe para o OBOS, o
grupo, chamado Mulheres e seus corpos, estava determinado a usar termos
respeitosos e que celebrassem as mulheres. Então, com o apoio e a ajuda de
mulheres da comunidade, o grupo finalmente estabeleceu para o hebraico o termo
Emtza Ha’hayim, ou ‘meia-idade’, e, para o árabe, San’al Aman, que significa
‘anos de segurança’”.
Concepção
A edição brasileira foi realizada por Luciana Fonseca e
Ana Basaglia, por meio de duas editoras feministas independentes (Ema Livros e
Editora Timo), e do apoio de duas pós-graduandas e uma pesquisadora de
pós-doutorado da FFLCH, na USP. Para Luciana, um projeto tão complexo, feito a
tantas mãos, precisava de uma edição sensível e feminista, que descortinasse
uma grande coletividade repleta de anseios em relação ao produto final. “A
posição dos créditos e o grande número de paratextos reflete a riqueza,
multiplicidade e união de vozes das pessoas que trabalharam no e pelo projeto,
e foi isso que buscamos valorizar no processo de edição”, afirma ao Jornal da
USP.
No OBOS Brasil, Luciana e Ana descrevem uma conversa que
tiveram com Amelinha Teles, fundadora e presidente honorária da União de
Mulheres de São Paulo. Presa política durante a ditadura militar, Amelinha
contou sobre como o conteúdo do OBOS influenciou as lutas pelo Programa de
Atenção Integral de Saúde da Mulher (PAISM), elaborado em 1983, no contexto da
redemocratização do Brasil. O programa defendia o direito à saúde em todas as
fases da vida.
“Amelinha nos ensinou que a ‘saúde integral em todas as
fases da vida’ foi aprendida pelas feministas brasileiras por meio do OBOS,
virou movimento social e ecoou na marcante e famosa Carta das mulheres aos
constituintes, de 26 de agosto de 1986, em que a expressão ‘todas as fases de
sua vida’, bem como ‘garantia da livre escolha pela maternidade’, entre tantas
outras que você encontrará neste livro, estavam presentes como reivindicações
das brasileiras à Assembleia Constituinte, instalada em 1987 para trabalhar no
texto da atual Constituição de 1988″, relatam as editoras no posfácio da obra
que se encontra disponível no link;
Judy Norsigian e Norma Swenson, co-fundadoras do Coletivo
de Boston e OBOS, demonstraram grande satisfação em receber o que chamaram de
“nossa mais nova irmã: uma tradução e adaptação completa e minuciosa em
português desse guia global, feitas por mulheres que conhecem a realidade atual
do Brasil”. E completaram: “Esta é uma excelente versão do clássico livro
feminista, que tem ajudado milhões de pessoas em todo o mundo a encontrar
informações confiáveis sobre seu corpo, sexualidade, relacionamentos, problemas
de saúde e assistência médica”.
O projeto OBOS Brasil está nas redes sociais:
https://www.instagram.com/obosbrasil/
https://twitter.com/obosbrasil
Fonte: Jornal da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário