Gazeta da Torre
Por mais que soe estranha a transmissão ao vivo, com ares
de espetáculo, de uma decisão técnica, a reunião da Anvisa que liberou o uso
emergencial das vacinas da Oxford e a Coronavac no país serviu como episódio
didático de uma novela, até aqui, dominada por desavenças políticas,
desconfiança e desinformação.
Última etapa antes do início da imunização, a aprovação
da agência nacional de vigilância sanitária foi o programa de domingo para uma
multidão que só agora, dez meses após o início da pandemia, vê uma luz num
túnel escurecido por sandices e negacionismos de toda ordem.
Relatora do pedido de aprovação das vacinas, Meiruze
Freitas foi quem deu a melhor resposta para quem passou os últimos meses
alimentando e sendo alimentado por teorias da conspiração de inspiração
xenobófica, incutida na expressão "vacina chinesa" -- aprovada domingo (17/01/2021), a
Coronavac foi desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o
laboratório chinês Sinovac.
"Guiada pela ciência e pelos dados, a equipe
concluiu que os benefícios conhecidos e potenciais dessas vacinas superam seus
riscos. Os servidores vêm trabalhando com dedicação integral e senso de urgência",
disse Meiruze Freitas.
Em seu pronunciamento, ela lembrou que, até o momento,
"não contamos com alternativa terapêutica aprovada para prevenir ou tratar
a doença causada pelo novo coronavírus". Era uma resposta ao mantra
governista segundo o qual as mortes por coronavírus no país, que já se
aproximam de 210 mil, teriam sido evitadas caso fosse adotado tratamento
precoce --seja lá o que isso significa.
"Compete a cada um de nós, instituições públicas e
privadas, sociedade civil e organizada, cidadão, cada um na sua esfera de
atuação tomarmos todas as medidas ao nosso alcance para no menor tempo possível
diminuir o impacto sobre a vida do nosso país”, disse a relatora, justificando
seu voto.
A repercussão no Twitter foi imediata. "Viva a
ciência", "Viva o SUS" e "Vem Vacina" tomaram a
dianteira na rede social favorita de Jair Bolsonaro, o negacionista-mor da
pandemia. Seus apoiadores até tentaram, como resposta, sacar do coldre a
hashtag #tratamentoprecocesalvavidas. Ficaram falando sozinhos.
Minutos após a aprovação, a enfermeira Monica Calazans,
54, que há dez meses está na linha de frente de um hospital em São Paulo, se
tornou a primeira brasileira imunizada. João Doria (PSDB), como se usasse ainda
o slogan “acelera”, que marcou sua campanha, estava ao seu lado, com uma camisa
escura, bandeira do Brasil ao centro, e recado de que a vacina do Butantan, o
instituto paulista, é a vacina do Brasil.
Cenas assim tendem a ser repetidas e repetidas nos próximos capítulos, estes com finais mais alegres, e menos macabros, do que os anteriores.
O capítulo deste domingo (17/01/2021), com a votação às claras da
Anvisa, para quem quisesse assistir, foi antes de tudo uma resposta sorora, ao
vivo e em cores, ao negacionismo que aprofundou fissuras e alargou a tragédia
do coronavírus no país.
Obstáculos para a vacinação
A campanha agora esbarra no atraso do Ministério da Saúde
em conceber um plano. Enquanto outros países começavam a se vacinar em
dezembro, a pasta ainda não havia sequer apresentado um esboço. O Governo
também foi pressionado pelos planos do governador de São Paulo, João Doria, de
iniciar a imunização no Estado esta semana. No final, após meses menosprezando
publicamente a Coronavac, acabou anunciando sua compra e distribuição no plano
de imunização. O governador pretende se lançar candidato à Presidência em 2022
e é rival político de Bolsonaro. Ele posou ao lado da enfermeira Mônica
Calazans, que havia recebido o placebo durante a fase de testes e, neste
domingo, foi a primeira brasileira vacinada em território nacional após a
aprovação da Anvisa. Pazuello diz que a aplicação em São Paulo “está em
desacordo com a lei”.
O presidente vem apostando no “tratamento precoce” —e
ineficaz, segundo a comunidade científica— contra a covid-19. Um exemplo disso
ocorreu na última semana durante a visita de Pazuello a Manaus, onde lançou um
aplicativo que prescreve hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina,
azitromicina e doxiciclina para pacientes —medicamentos não possuem eficácia
comprovada contra a doença e foram rejeitados pela Organização Mundial da Saúde
e pela Sociedade Brasileira de Infectologia.
A campanha também esbarra nas dúvidas da população de se
vacinar. Uma pesquisa Datafolha de dezembro mostrou que metade da população
rejeita a Coronavac, pejorativamente chamada de “vacina chinesa”. Esse
descrédito foi estimulado inclusive por Bolsonaro. O mandatário também disse em
outras ocasiões que não será obrigatório se vacinar e diz que todos os
imunizantes são “experimentais” e, portanto, arriscados. Na última terça,
quando o Butantan anunciou a eficácia geral de seu imunizante, boa parte da tropa
bolsonarista, incluindo os filhos do presidente, foram às redes sociais
criticar Doria e fazer ilações sobre a vacina.
Fontes:Matheus Pichonelli (Yahoo Notícias) I Breiller Pires e Felipe Betim (El País), Jornalistas
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