Gazeta da Torre
Por Maria
Luiza Tucci Carneiro, Historiadora e professora da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Em situações de crise – como esta em que o Brasil vive,
abalado pelas fragilidades da nossa democracia –, constatamos que a polarização
radical compromete a vida e negligencia a morte. É neste contexto que avalio o
discurso antissemita e as acusações de genocídio feitas pelo presidente Lula da
Silva ao Estado de Israel e ao povo judeu. Suas declarações emergem como uma
terrível combinação de ingredientes clássicos que compõem o discurso
antissemita de raiz, (re)alimentando versões deturpadas da História. Não foi
por acaso que o ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz,
afirmou que Lula é persona non grata em Israel até que se desculpe em relação à
sua fala comparando a atuação atual de Israel ao Holocausto.
Após o ataque empreendido pelo grupo terrorista Hamas
contra a população civil de Israel em 7 de outubro de 2023, a banalização do
Holocausto ressurgiu em meio aos discursos do presidente Lula reciclados como
arma política contra o Estado de Israel e à comunidade judaica como um todo. É
fato que, desde outubro de 2023, o antissemitismo maquiado de antissionismo
ganhou status de verdade, sendo disseminado por uma legião de racistas que
sustentam discursos acusatórios sem a real dimensão das consequências.
Neste contexto, o antissionismo que mascara o
“antissemitismo de raiz” assimilado por Lula deve ser interpretado como uma recaída
da postura do governo brasileiro simbolizando um retrocesso na nossa luta
contra o racismo, o negacionismo e a xenofobia. Recupera-se, assim, a histórica
tensão entre antissemitismo/antissionismo e os ideais democráticos. As frases
aleatórias e descontextualizadas que Lula tem empregado contra o Estado de
Israel têm despertado sentimentos antijudaicos por parte dos seus correligionários
e, ao mesmo tempo, têm gerado uma certa decepção naqueles que votaram no PT.
Daí a importância de investirmos contra o negacionismo de natureza ideológica e
contra o antissemitismo que, enquanto uma forma de racismo, tem servido aos
grupos, tanto de direita como de esquerda, que atuam no cenário político
nacional e internacional.
Independente de qualquer sigla partidária, negacionistas
e antissemitas sempre tentam impor suas “visões de mundo” deturpadas pela
ignorância dos fatos. Dessa forma, instigam a violência e o ódio, negando e/ou
ignorando a verdade dos fatos históricos, dentre os quais o Holocausto,
genocídio singular na história da humanidade. Os grupos signatários dos
“tratados negacionistas” devem ser qualificados como uma espécie de “perpetradores
da memória”, que por ignorância ou interesses políticos tentam sustentar falsas
versões. Interessa a essas lideranças gerar uma multidão de desmemoriados,
alienados e despossuídos de espírito crítico.
É evidente que a ignorância favorece o avanço de
movimentos “antis” que, valendo-se das crises sociais, vêm a público no formato
de discursos de ódio. Assim, sob este viés, poderemos avaliar a proliferação de
novas cepas de perpetradores das mais distintas linhagens: racistas,
revisionistas, negacionistas, populistas, neonazistas, fascistas, dentre outros
“istas” e “ismos”. O debate sobre este tema passa, necessariamente, pela
compreensão dos direitos humanos, levando-nos a refletir acerca da
responsabilidade do Estado sobre a vida do cidadão.
Aqui retomamos o tema da banalização do Holocausto: o
fato do Holocausto ser uma categoria única dentre tantos outros genocídios, tem
servido aos negacionistas, neonazistas e antissemitas para desmoralizar os
testemunhos das vítimas, dentre as quais temos seis milhões de judeus
assassinados pelos nacional-socialistas e colaboracionistas. Aliás, esta é mais
uma das razões para o Estado brasileiro estimular (e não negar) a memória
pública de um dos episódios mais abomináveis da história: o Holocausto, além de
estimular o processo de implementação de dois Estados: o Estado de Israel e o
Estado Palestino.
Neste Brasil multirracial – que desde o seu descobrimento
convive com o racismo (histórico e estrutural) e a discriminação contra negros,
judeus, indígenas, ciganos, doentes mentais e dissidentes políticos – fica
difícil falarmos em uma política de intolerância zero, pois esse ódio, assim
como a ignorância, tem raízes seculares neste país. Se por um lado as
lideranças políticas têm dificuldades em assumir a verdade histórica e promover
a justiça social, por outro, os negacionistas aproveitam-se das redes sociais
para instigar o linchamento virtual daqueles que clamam pelos seus direitos,
incluindo o direito à vida e o direito de existir enquanto nação.
Essa equidistância pragmática herdada do governo Vargas
foi retomada em 1975, quando o governo brasileiro, atingido pela crise mundial
do petróleo, optou por uma postura radical: votou na Assembleia Geral da ONU a
favor da Resolução n. 3379, que qualificava o “Sionismo como forma de racismo e
discriminação racial”. Com o fim da Guerra Fria alguns países árabes e
muçulmanos, junto com Cuba, Coreia do Norte e Vietnã, não mudaram suas posições
apesar da Resolução n. 4686, de 1991, ter anulado a decisão da Resolução n. 3379.
A grande guinada do Estado brasileiro no reconhecimento
da centralidade do racismo na estruturação das desigualdades sociais foi dada
em 2001, por ocasião da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância,
promovida pela ONU em Durban, na África do Sul. Em meio ao debate, os países
árabes tentaram desviar o foco da reunião ao comparar, novamente, o sionismo ao
racismo. Felizmente, no documento final, os países participantes, incluindo o Brasil,
proclamaram que o Holocausto não deve ser nunca esquecido, além de condenarem a
persistência e o reaparecimento do neonazismo, do neofascismo e das ideologias
violentas baseadas em preconceitos raciais ou nacionais. Declararam, por
consenso, que esses fenômenos “não se podem justificar em qualquer caso, nem em
qualquer circunstância”.
Atualmente – analisando as recentes falas do presidente
Lula da Silva classificando as ações de Israel como genocídio, comparando-as ao
Holocausto [sic] – constatamos que o eixo de argumentação emerge desfocado,
destituído de saber e do sentimento de humanidade que privilegia o direito à
vida. O Holocausto não deve ser visto como um “item ocasional da conduta do
Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial”, e sim como uma política
meticulosamente planejada pelas lideranças do Estado nacional-socialista alemão
e executado por meio de aparatos repressivos do poder, como a polícia e a
censura. Calculismo, burocracia, antissemitismo e fanatismo foram ingredientes
que garantiram sucesso à fórmula acionada por Adolf Hitler, que, a partir de
1933, encontrou um ambiente de crise propício à proliferação de suas ideias
antissemitas.
Daí a importância de distinguirmos o que realmente foi o
Holocausto, que, pela força de suas singularidades, é hoje considerado como um
genocídio sem precedentes na história da humanidade: exatamente por ultrapassar
a ideia de “tragédia judaica”, por envolver outras minorias em diferentes
escalas e, ao mesmo tempo, por trazer para o debate a questão humana, ainda que
irrepresentável em sua absoluta excepcionalidade, como querem alguns.
Enfim: não podemos dar chance à proliferação da mentira
que fundamenta a “teoria da cegueira”. Antes de empregar de forma irresponsável
as palavras Genocídio e Holocausto, todo cidadão deve estar atento às
persistências e ambiguidades dos discursos racistas. Tais “enganos” corroem a
democracia alimentando visões distorcidas com o propósito de acuar, perseguir,
isolar e, até mesmo, exterminar aqueles que não se encaixam no modelo
idealizado como “normal”. Revisitando o nosso passado e avaliando a atual crise
humanitária vivenciada por israelenses e palestinos na Faixa de Gaza durante o
conflito Israel versus grupo terrorista Hamas, questiono: a quem serve a
cultura da ignorância que privilegia o terror e a mediocridade?
Uma coisa é certa: a ignorância mata, sendo hoje uma
espécie de “vírus” que abre fissuras para a proliferação de novas cepas
racistas das mais distintas linhagens. Enquanto resíduos criptografados no
inconsciente coletivo, os arquétipos antissemitas sugerem (e instigam) os seres
humanos a endossar ações para a violência e o ódio sem limites. Assim,
considero que, atualmente, os mitos sobre os judeus emergem reciclados,
simultaneamente e em várias partes do mundo, corroídos por preconceitos
seculares que carregam nas suas entranhas o germe da intolerância. Para a
escala do ódio basta um passo.
Fonte: Jornal da USP
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