Gazeta da Torre
Escola pública do município de Moreno-PE. Foto:Bobby Fabisak |
E o que precisa ser feito para, mais do que se educar, se
formar cidadãos
Diante de tantos desafios que o Brasil tem enfrentado nos
últimos anos – pandemia e a discussão sobre vacinas, retorno da inflação,
governo errático, para ficarmos só com alguns –, talvez a educação seja o maior
deles. Porque a crise na educação brasileira não é recente, não é de hoje,
apesar de ter sido exponenciada nos últimos anos – e o País ter cinco ministros
da área em menos de quatro anos talvez seja a síntese da crise educacional pela
qual o Brasil enveredou. Não vale falar aqui de questões pastorais, disputa de
influências e pedidos e propostas canhestras. Tudo isso é mais consequência do
que causa. O fato é que a educação brasileira é como um grande e pesado avião
que tem tido vários percalços em sua viagem rumo ao futuro. Só que,
diferentemente das viagens dos aviões de carreira, a turbulência intermitente é
a regra, não a exceção. E o destino ainda parece incerto.
No livro A Escola Pública em Crise, resultado de um
seminário internacional realizado em 2019 na Faculdade de Educação da USP
(FE-USP), é dito na apresentação: “Entendemos que o campo da educação e a
escola pública mais especificamente vivem uma crise histórica”. Mas, afinal,
que crise é essa que tem na escola pública seu ponto de partida mas não se
resume a ela? “Naquele momento, entendíamos que havia uma crise estrutural, que
tinha a ver já com um governo federal que assumiu o poder desprovido de
qualquer compromisso com uma pauta educacional. Entendíamos que o Brasil estava
sem projeto e sem rumo no tocante às políticas educativas. Acreditamos que o
cenário que visualizávamos naquele ano de 2019 apenas se aprofundou”, explica a
professora e pesquisadora da FE Carlota Boto, uma das organizadoras do volume.
“Nos últimos anos, nós tivemos sucessivas trocas de
ministros da Educação, sem que houvesse uma diretriz sobre qual é a orientação
a ser dada para a melhoria do ensino público. Se nós perguntarmos quais são as
prioridades das políticas públicas no campo da educação, não saberemos
responder a essa pergunta”, avalia ela. Já para Bernardete Gatti, conselheira
da Câmara de Educação Superior e integrante do Comitê Consultivo da Cátedra
Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP,
o desafio é “privilegiar o bem comum, o bem público, o respeito à diversidade,
mantendo princípios éticos e sociais, sem desesperançar”. “O panorama hoje se
nos apresenta repleto de dilemas desorientadores”, afirmou ela em recente
entrevista ao Jornal da USP.
Entre esses dilemas parece estar a inescapável questão
tecnológica e o chamado letramento digital – tanto solução quanto problema
quando o quadro a ser compreendido é o da educação. Para o professor sênior do
Instituto de Física da USP (IF) e coordenador acadêmico da Cátedra Alfredo Bosi
de Educação Básica do IEA, Luís Carlos de Menezes, se os anos de pandemia
“escancararam e aprofundaram as desigualdades do País, especialmente na
educação”, eles também tiveram outro condão: “difundir recursos tecnológicos de
informação e comunicação que se mostraram importantes para o ensino”, afirmou
ele recentemente ao Jornal da USP. E aí talvez residam o problema e o dilema
tecnológico. O pesquisador e professor da Faculdade de Educação Ocimar Alavarse
comenta que os dados indicam uma defasagem na leitura e resolução de problemas
matemáticos por parte dos alunos. “Essas duas competências são muito
importantes”, diz. “A capacidade de leitura interfere no aproveitamento de
todas as disciplinas da escola, assim como na resolução de problemas, que,
embora associada à matemática, diz respeito à lógica e ao raciocínio”, afirmou ele, em entrevista à Rádio USP, sobre
a mudança no Ensino Médio.
Sem planejamento, sem futuro?
Políticas públicas: talvez essas sejam as palavras
mágicas que poderiam abrir as portas para um futuro mais promissor da educação
no Brasil – e para todos os envolvidos, não só na escola básica, mas em todos
os níveis. Mas essas palavras parecem esquecidas, em um mutismo governamental
que não vem necessariamente de hoje. E isso, ao se falar de um Ministério da
Educação que tem uma verba de quase R$ 160 bilhões. Mas o problema,
aparentemente, não é falta de dinheiro. “O problema da educação no Brasil é um problema
que envolve, sim, o financiamento. Mas envolve também o uso da verba. A
impressão que dá é a de que o MEC hoje não sabe onde aplicar seus recursos. Não
há projetos, não há diretriz, não há orientação. Falta interesse em investir na
educação pública”, analisa Carlota Boto. “Esse atual governo federal não tem
projeto para a educação. Aquilo que foi desenhado pelos últimos governos também
não ajuda. A BNCC do Ensino Médio, por exemplo, desmontou com as disciplinas
clássicas dessa etapa de ensino. Assim, pode-se perguntar como se dará a
formação de um jovem, se essa formação não contempla uma sólida base de
História, de Filosofia e de Geografia, para citar somente três exemplos”,
afirma a professora da Faculdade de Educação, se referindo à Base Nacional Comum
Curricular, o instrumento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver
ao longo das etapas e modalidades da educação.
Nessa falta crônica de planejamento – que coloca em risco
um futuro mais tangível para milhões de brasileiros – acaba-se, também, se
perdendo aquilo que foi conquistado. É o caso do Inep, o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. O instituto – que leva o nome
de um dos principais educadores da história brasileira, ao lado de nomes como
Paulo Freire e Darcy Ribeiro, que não encontraram sucessores do mesmo nível em
um passado recente – fornece a base de dados para a realização de levantamentos
estatísticos e avaliações em todos os níveis e modalidades de ensino, como o
Enem. Mas a recente crise no Inep, no final do ano passado, quando um grupo de
servidores do instituto – às vésperas do Enem – solicitou afastamento alegando
“falta de comando técnico” e “clima de insegurança e medo”, colocou todo o
trabalho em risco.
“Eu diria que nós incorporamos todas as crianças e jovens
na escola. Cumprimos, portanto, a primeira geração de direitos educacionais.
Falta enfrentarmos a segunda geração – com vistas à qualidade de ensino – e a
terceira geração, que postula o descentramento do currículo. Além disso, é
preciso que não nos esqueçamos de que o currículo tem uma dimensão de
aprendizado da convivência. Não há mundo individual sem uma dimensão coletiva”,
afirma Carlota Boto. “Sendo assim, há que se proporcionar, para além da
dimensão cognitiva do aprendizado de saberes e conhecimentos, a habilidade da
convivência com o outro, com o diferente, com o diverso. Mudar o foco da
educação em prol do coletivo requer, antes de tudo, vontade política. É preciso
interpretar esse mundo coletivo. E proporcionar condições para que os alunos
também o façam”, acredita ela.
“Os gráficos sobre analfabetismo no Brasil mostram em que
país vivemos, hoje, e que Brasil Fernando Henrique, Lula e Dilma receberam e
tiveram que administrar e alfabetizar. Cada um à sua maneira tentou enfrentar o
problema sem destruir o que já havia sido feito antes. Agora o desafio é outro,
imenso, formar de fato o brasileiro. Alfabetizando o que ainda falta e a
pandemia da covid ampliou, desenvolvendo habilidades, oferecendo aos estudantes
conhecimento para que ele possa sobreviver no mundo contemporâneo”, acrescenta
Janice Theodoro.
Já quanto ao binômio retórica x ação, a situação é ainda
mais complexa, acredita Janice Theodoro. “Para a educação ser igual para todos,
a sociedade deveria evoluir em direção a uma melhor distribuição de renda e de
acesso à cultura”, afirma a professora. “Uma vida equilibrada marcada pela
ética requer aprendizado, exige modelos de identidade com base no bem comum,
convívio social com pouca violência e muita discussão e participação política.
Cultura e educação andam coladas. Só juntas permitem ver a proporção das
coisas, o tamanho do mundo, ensinando a lidar com a diferença. Não é fácil.”
A professora Carlota Boto vai no mesmo diapasão.
“Historicamente, a educação tem sido enfatizada no discurso político, sem que
haja um correspondente investimento nas políticas públicas. Porém, nos últimos
anos, eu diria que nem isso vem acontecendo. Há um vácuo nas ações e outro
vácuo nos discursos. Esse governo federal não fala de educação. Quando fala,
menciona questões de ideologia. Sobre as questões do conteúdo, da melhoria da
escola pública, não se diz nada”, afirma ela. “E, no entanto, a educação do
futuro deverá ser intercultural, engajada com as pautas do ambiente. Deve ser
uma pedagogia do respeito, da inclusão, da pertença a um mundo comum, que
proporcione padrões de convivência que sejam pautados pela tolerância à
diferença. Aliás, é mais do que tolerância com o diferente. Trata-se
efetivamente de abraçar a diferença, em nome da valorização de sociedades que,
por princípio, são multiculturais e multiétnicas. A convivência com o outro é
também por si só um elemento educativo. É preciso levar as escolas a desenvolverem
práticas democráticas na interação entre professores e alunos, mas cuidar
também para que se ensine os alunos a serem críticos em relação ao próprio
conhecimento aprendido. Trata-se de uma postura crítica e analítica diante do
mundo: diante das desigualdades, diante das injustiças. Trata-se também de uma
nova relação com o conhecimento e com os valores.”
Que cidadãos estamos formando?
Diante dessas questões colocadas, é importante se
perguntar: afinal, que cidadãos estão sendo formados? De que forma? É o que a
professora Janice Theodoro afirmou há pouco: o desafio é formar o brasileiro,
mesmo com uma bolha social a separar estudantes cultural e educacionalmente. E
aí nos deparamos com um dilema: por quais caminhos seguir? Tem-se investido em
uma formação talvez mais “tecnicista”, de formação, digamos, de “cérebro de
obra”, do que de cidadãos?
“Sim, a formação hoje preconizada é tecnicista. Em nome
do que se passa a compreender como projeto de vida, circunscreve-se o aluno à
sua situação de existência atual, como se ele estivesse destinado à fatalidade
de permanecer nesse seu lugar de nascimento. Isso vai acentuar a distância
entre os projetos de vida dos jovens de camadas mais abastadas e aqueles
pretensamente mais modestos projetos de vida dos jovens mais pobres. É isso que
se espera: que os projetos correspondam ao caráter estático da sociedade
brasileira, com suas fraturas e desigualdades”, afirma Carlota Boto. “A ação
educativa tem alguma autonomia em relação às políticas que a estruturam. Então,
pelo empenho, pela dedicação e pela competência de professores em todos os
recantos deste País, há sim cidadãos sendo formados. Mas isso é uma formação a
contrapelo. Formamos cidadãos críticos e comprometidos com um mundo mais justo
apesar da lógica de um modelo político que vai em direção contrária.”
Fonte: Jornal da USP
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