Gazeta da Torre
Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Freepik e Pixabay |
Das pinturas rupestres aos espetáculos na Broadway, o
fazer artístico acompanha a humanidade. Mas por que compartilhamos do desejo de
pintar, dançar e cantar? Com o objetivo de explorar a estrutura psicológica da
motivação artística humana, o pesquisador Marco Antonio Correa Varella, do
Instituto de Psicologia (IP) da USP, testou a hipótese de que o engajamento
humano com as artes é resultado da evolução da espécie. Para isso, analisou
respostas de vestibulandos para ingresso em cursos artísticos. A pesquisa
mostrou que as motivações artísticas têm aspectos como especificidade,
autorreforçamento e estabilidade — indicativos de uma característica evolutiva
da nossa espécie —, ou seja, somos animais natural e evolutivamente artísticos.
“O estudo vai ajudar a nos fazer levar as atividades artísticas a sério, como
parte integral da natureza humana”, afirma o pesquisador.
Entre as características que sugerem o caratér evolutivo,
está a especificidade, uma especialização, neste caso, algo voltado
principalmente ao domínio artístico — e não mera curiosidade. Além dessa, há o
autorreforçamento, que acontece quanto o que motiva a atividade é o próprio
prazer intrínseco de realizá-la; e a estabilidade temporal, a relativa
invariância ao longo dos anos, que não varia com as modas e tendências
históricas recentes.
O artigo com os detalhes do estudo foi publicado na
Frontiers in Psychology, em 21 de dezembro de 2021, com financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio de
bolsa de pós-doutorado no Departamento de Psicologia Experimental do IP da USP.
O material faz parte de um número especial de 2021 que
celebra os 150 anos do livro publicado em 1871 A descendência do Homem e a
Seleção em relação ao sexo, de autoria de Charles Darwin (1809-1882), no qual o
naturalista inglês — um dos cientistas a reunir evidências das raízes
evolutivas da musicalidade humana — ressalta a universalidade da mente,
referindo-se aos prazeres que várias populações sentem dançando, engajando-se
em música, atuando, pintando, se tatuando e se autodecorando.
A motivação para usar capacidades artísticas — aquelas voltadas
às habilidades na produção e apreciação das artes — é alvo de estudos há muitas
décadas. Contrariando as ideias evolutivas de Darwin, o psicólogo Steven
Pinker, pesquisador da Universidade de Harvard, Estados Unidos, diz que se
trata de uma característica recente, gerada pela busca por status e prestígio
social. Varella explica que, desse ponto de vista não evolutivo, a motivação
para as artes seria extrínseca, isto é, quando se realiza uma atividade para
obter reforços externos, como trabalhar para ganhar salário e se divertir com
compras. Para essa motivação ser evoluída, dentre outras características como
universalidade e antiguidade, ela deve ser intrínseca (autorreforçamento),
aquilo que se faz pelo próprio prazer em fazer, além de específica e relativamente
estável ao longo da trajetória humana.
Para analisar as motivações, Marco Varella pesquisou o
questionário socioeconômico do vestibular da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), realizado pela Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp
(Comvest), que pergunta aos vestibulandos sobre o motivo de escolha do curso de
Artes (música, dança, artes cênicas, artes visuais e estudos literários). O
artigo contém dois estudos: um com 403.832 pessoas (48,8% mulheres) e o segundo
com 1.703.916 participantes (51% mulheres), de 1987 até 2020, intervalo amplo
para avaliar a estabilidade temporal da tendência. “As perguntas tinham
alternativas mais intrínsecas, como ‘gosto pessoal’, ‘aptidão pessoal’,
‘satisfação pessoal’, e alternativas mais extrínsecas, como ‘influência da
mídia, do professor, da família’, ‘salário’, ‘contribuição social’ e ‘prestígio
social’. Agreguei num fator motivação intrínseca e outro de motivação
extrínseca o conjunto de respostas correspondente”, afirma o pesquisador.
Os dados (de até 35 cidades de até seis Estados
diferentes do Brasil) foram comparados com alguns cursos de não humanas, como
Odontologia, e com cursos de humanas não artísticos, como Pedagogia, para saber
se há um padrão geral motivacional para todos os cursos ou se há especificidade
artística.
De acordo com o pesquisador, no geral de todos os cursos,
os inscritos reportaram de duas a seis vezes mais fatores intrínsecos do que
extrínsecos; já no conjunto de cursos artísticos os vestibulandos reportaram de
10 a 28 vezes mais fatores intrínsecos do que extrínsecos, o que sugere um
perfil mais intrínseco e específico daqueles prestando Artes. Os fatores
intrínsecos se mantiveram constantes ao longo dos anos nos dois estudos para
todos os grupos, mas no grupo dos cursos artísticos ficaram mais constantes
ainda.
“Os resultados dos dois estudos convergiram, não
corroboraram a hipótese de Pinker e corroboraram a hipótese evolutiva, de que
exista um sistema motivacional evoluído, que é intrínseco, específico e estável
temporalmente, voltado para nos encorajar a usar nossas capacidades artísticas
para nos engajarmos em atividades esteticamente orientadas”, completa.
Dizer que somos animais natural e evolutivamente
artísticos significa, para o pesquisador, dizer que, assim como com a linguagem
ou a brincadeira, é bem possível que tenhamos uma propensão evoluída para
desenvolver, ao longo de nossa primeira infância, um sistema motivacional que
nos leva a gostar de arte por si só, a nos interessar por ela e querer repetir
atividades — bem como de desenvolver capacidades específicas que nos permitem
perceber, aprender, acompanhar, nos engajar, produzir, imitar e criar
atividades e produtos esteticamente trabalhados. “Seríamos naturalmente
equipados para fácil e intuitivamente processar informações artísticas”,
completa.
Mas isso não quer dizer que nascemos grandes artistas. De
acordo com Marco, atividades mais modernas como andar de bicicleta, dirigir
carro, ler, digitar ao computador ou resolver equações de segundo grau são
muito mais difíceis de se aprender do que atividades mais ancestrais como,
andar, cantar, falar e brincar, mas todas são, em certo grau, aprendidas. “Esta
facilidade precoce para lidar com essas atividades mais ancestrais indica uma
preparação cognitiva preexistente para aprender e gostar de se aprimorar em
tais atividades”, afirma.
Quais as vantagens evolutivas da propensão artística
universal?
De acordo com o pesquisador, a literatura científica
indica que a artisticidade poderia ter melhorado o desenvolvimento da cognição
em geral, a coordenação motora e a criatividade, através de brincadeiras ou
simulação de situações possíveis — o que
pode ser uma vantagem, em termos de sobrevivência. A utilização de símbolos e
ornamentações em mensagens pode também ser adaptativa, promovendo cooperação e
coesão social, pelos rituais em grupo, o que também é uma vantagem para
sobreviver. Além disso, os fazeres artísticos podem ter aumentado as
oportunidades de acasalamento e desejabilidade de indivíduos, forma de manter e
competir por parceiros, com efeito positivo direto na reprodução dos indivíduos
da espécie. Esta última linha de pesquisa com foco na seleção sexual foi iniciada
por Darwin há 151 anos.
“A contribuição deste estudo se alinha ainda com a universalidade
da atividade artística, com a antiguidade paleolítica das pinturas e gravuras
rupestres, com a precocidade do interesse a engajamento artístico nas crianças,
com a herdabilidade da variação individual nas capacidades artísticas, com a
convergência adaptativa de comportamentos esteticamente orientados em outras
espécies, entre outras fontes de evidência, apontando para o status evoluído da
nossa artisticalidade”, afirma o autor do estudo.
O autor ressalta que não sugere que a tendência artística
seja fixa, imutável, geneticamente determinada, puramente instintiva ou que não
exista espaço para o aprendizado, fatores extrínsecos ou para a cultura. Ele
está propondo que a facilidade de aprendizado artístico, o gosto e interesse
genuíno para atividades esteticamente orientadas e a desenvoltura e fluência
cultural que exibimos para as variadas modalidades artísticas indicam – junto
com sua universalidade, antiguidade, precocidade, herdabilidade e convergência
adaptativa – a existência de uma maquinaria psicológica evoluída, uma cognição
específica e ancestral voltada para o domínio artístico.
Fonte: Jornal da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário