Gazeta da Torre
“Um projeto piloto que não só estudasse a realidade das
mulheres na música brasileira, mas que também tivesse uma vertente proativa, de
formação e promoção de trabalho em rede, e que servisse de amplificador das
vozes dessas mulheres — daí o nome AmplifyHer.”
Conforme o pesquisador português José Dias, foi a partir
dessa premissa que se desenvolveu o AmplifyHer: Dando Voz à Experiência de
Mulheres Músicas no Brasil. Participam do projeto pesquisadores da USP, da
Universidade Metropolitana de Manchester (MMU), na Inglaterra, e da Edinburgh
Napier University, em Edimburgo, na Escócia. O estudo tem financiamento do
programa Global Challenges Research Fund, do Reino Unido, que apoia pesquisas
ligadas aos desafios enfrentados por países em desenvolvimento.
Dias, pesquisador principal do projeto, diz que o debate
sobre as disparidades de gênero na indústria musical está, felizmente, na
“ordem do dia”. “No meu caso particular, também enquanto músico, comecei a
querer perceber melhor essas desigualdades e, mais importante, a tomar a
iniciativa de contribuir para o conhecimento da verdade, promover esse debate e
fazer parte dessa luta”, explica Dias.
A equipe do AmplifyHer conta com os pesquisadores
brasileiros Rogério Costa, professor do Departamento de Música da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP, Lílian Campesato, doutora pela USP e
artista, e Ana Fridman, professora do Instituto de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É também parceiro do projeto o núcleo
Sonora: Músicas e Feminismos ( http://www.sonora.me/sonora/ ), rede colaborativa que reúne artistas e
pesquisadores.
O estudo foi realizado com um grupo de 12 mulheres
musicistas, em sua maioria com atuação na cidade de São Paulo, ligadas ao jazz,
à música experimental, à música erudita e à música popular. Elas aparecem nas
fotos publicadas nesta página.
Dias conta que o projeto foi desenhado para promover
mudanças, e por isso está organizado em três pilares: estudo de caso, formação
e divulgação. A primeira fase dividiu três grupos focais, com quatro
participantes cada, e foram gravadas entrevistas individuais com as musicistas.
“Esses vídeos foram a base para os electronic press kits (EPK) de cada
participante. Para nós sempre foi muito importante que cada participante
sentisse que o seu EPK é de fato seu, que a representa e ao seu trabalho e que
pode ser usado como ferramenta de promoção profissional”, relata o pesquisador.
O trabalho de áudio e vídeo foi feito por Tide Borges, Marina Mapurunga e Paulo
Assis, pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Sonologia (NuSom) da USP.
A segunda fase consistiu em quatro sessões de formação
para as participantes. Foram abordadas estratégias de autopromoção na música, a
importância do trabalho em redes de apoio e os passos mais recentes dados na
Europa pelo feminismo na indústria musical, conta Dias. A terceira fase
consiste na divulgação dos resultados do estudo através da distribuição de um
relatório, disponibilizado na página do Sonora, juntamente com os vídeos EPK.
“Uma das razões por que optamos por apenas 12 participantes é que não queríamos
que a quantificação e os números diluíssem as vozes, as experiências e, em
alguns casos, o processo riquíssimo de tomada de consciência das suas próprias
realidades”, afirma o pesquisador.
O objetivo é ampliar o estudo para outras regiões do País
e do mundo. “Em inícios do próximo ano vamos dar o passo seguinte, em que
gostaríamos muito de poder contar com as participantes neste estudo para
servirem de embaixadoras e mentoras do AmplifyHer”, explica Dias. “Da mesma
forma, o projeto tem servido de piloto para um semelhante no Reino Unido, que
deve iniciar-se em março de 2022, e outro, mais adiante, no nível europeu.”
Para Dias, o AmplifyHer “é espelho de uma academia que
não se fecha, mas que vai ao encontro das pessoas, que não impõe uma voz, mas
que dá voz às pessoas, e que se vê como um agente ativo de mudança da sociedade
para melhor”.
Diversidade na pesquisa e desafios analisados
A diversidade etária e étnica foi um ponto importante na
seleção das musicistas participantes do projeto. Elas foram divididas em grupos
etários que correspondem a pontos distintos na carreira: novos talentos, entre
os 20 e 39 anos de idade, e artistas estabelecidas, entre os 40 e 55 anos. Além
disso, metade das participantes é negra, enquanto a outra é branca.
“Uma das maiores falácias de quem não conhece ou nunca
fez estudos de gênero é pensar na ‘voz da mulher’, em singular, como se ‘a mulher’
fosse uma realidade monolítica”, afirma Dias. “Para nós era vital mostrar como,
num conjunto pequeno de mulheres, numa mesma cidade, existem tantas realidades
diferentes, únicas. Que as questões de idade e etnia são decisivas na
experiência de ser mulher na música.”
De acordo com Lílian Campesato, pesquisadora envolvida no
projeto, a seleção desse grupo torna a pesquisa mais rica, e o reflexo que se
tem da sociedade brasileira dentro da amostra é tanto melhor quanto mais
diversa possível. Lílian ressalta que, dentre os desafios levantados pelo
estudo, o recorte étnico-racial evidenciou uma discrepância no acesso a
recursos econômicos. “As mulheres brancas afirmam que o acesso a esses recursos
foi fundamental para o desenvolvimento da sua prática, e as mulheres negras
afirmam que a falta de acesso foi marcante na sua trajetória”, diz.
Dias acrescenta que existe um conjunto de entraves comuns
às mulheres negras na música no Brasil. “Muitas vezes, sem projetos
comunitários, não existe qualquer possibilidade de se experimentar música. E,
na generalidade, as mulheres brancas têm uma percepção muito reduzida – ou
mesmo inexistente – da experiência de discriminação racial de que são alvo as
musicistas negras”, aponta o pesquisador.
Já entre os grupos etários, foi observada uma maior
consciência da necessidade de mudança na geração mais recente. Ao mesmo tempo,
os entraves parecem continuar os mesmos com o passar das décadas: “A
dificuldade em ter filhos, em gerir a vida familiar e carreira profissional, a hipersexualização
e a discriminação que vem, por vezes, de colegas masculinos”, enumera Dias.
Para o pesquisador, esses desafios estão interligados,
sendo um dos principais a ausência de mulheres em postos de decisão. Por isso,
elas não têm o poder de influenciar políticas e comportamentos, e o ciclo nunca
se quebra. “Essa é a principal razão por que as narrativas à volta da mulher e
da música têm sido feitas na voz masculina, que oblitera, muitas vezes por
completo, a mulher. As noções erradas de que não existem mulheres compositoras
ou instrumentistas ou mesmo os juízos de valor típicos do universo masculino
para descrever competências musicais são prova de um monopólio da voz masculina
na indústria musical: os professores, críticos, historiadores, curadores,
diretores de festival e mesmo pesquisadores – esse universo é profundamente patriarcal”,
afirma o pesquisador.
Lílian ressalta a questão da maternidade e a dificuldade
enfrentada na conciliação da vida pessoal e profissional, com jornadas duplas
ou triplas de trabalho para muitas mulheres. “Nas respostas, a parte que teve
filhos disse que foi muito difícil conciliar. A parte delas que não teve disse
que escolheram não ter filhos por acreditarem em uma impossibilidade de seguir
a profissão como elas sonhavam. Ou seja, não teriam condições de fazê-lo se tivessem
filhos”, conta Lílian.
Particularidades brasileiras
José Dias, que é português, conta que trabalhando na
Inglaterra percebeu maior cuidado e interesse com o tema das desigualdades.
“Aqui na Inglaterra já existia, de fato, um impacto tangível dos estudos, dos
debates e das vozes que promovem a igualdade de gênero na música. E nos últimos
três ou quatro anos, um pouco por toda a Europa, os pesquisadores e as
associações que trabalham essas questões começaram a ser chamados para informar
as tomadas de decisão das políticas culturais, dos planos estratégicos das
redes de promotores de festivais e a forma como os diversos agentes lidam com
esse tema”, observa o pesquisador. Ele exemplifica com a iniciativa Keychange
Manifesto, um acordo que determina que festivais de música devem ter 50% de
artistas femininas dentre suas atrações principais, e que tem tido notável
adesão.
“Na minha pesquisa, deparei-me com os números da
realidade brasileira e confesso que fiquei bastante chocado. Por exemplo, em
estudos anteriores ao nosso, constata-se que no Brasil as mulheres arrecadam
apenas 9% do total de receitas da indústria musical, que 76% das profissionais
da música não chegam a ter filhos e 84% dizem ter sofrido discriminação
sexual”, ressalta Dias.
O pesquisador destaca que o lugar da mulher na música é
uma extensão de seu lugar na sociedade — no caso brasileiro, marcado por
inúmeros preconceitos, dentre eles o de gênero. Apesar de o estudo não ter fins
comparativos, foram analisados desafios ligados ao contexto do País. “O fato de
as mulheres brasileiras sentirem receio de ir tocar em determinados lugares a
determinadas horas é um bom exemplo da realidade brasileira”, observa Dias.
“Mas eu diria que é no nível das mentalidades que existem as maiores
diferenças. Na Europa, a distribuição equitativa de tarefas domésticas é muito
mais comum e estabelecida, as mulheres mais naturalmente assumem lugares de
chefia e a igualdade de gênero está na agenda dos agentes culturais.”
No Brasil, além do machismo, soma-se aos desafios a
questão do racismo. Conforme aponta o professor da ECA Rogério Costa, um dos
pesquisadores do projeto, “as mulheres negras relatam esse duplo problema:
serem discriminadas enquanto mulheres e também enquanto mulheres negras”.
Ele acrescenta que, em alguns segmentos da música, as
mulheres são particularmente excluídas. “Por exemplo, na música instrumental
brasileira, no chamado jazz brasileiro, muitas vezes as mulheres são
consideradas performers ou artistas de segunda classe. E, quando há uma mulher
que toca muito bem, se diz que é uma mulher que ‘toca como homem’”, afirma
Costa. Para o professor, há ainda a visão preconceituosa de que as mulheres
seriam incapazes de lidar com a manipulação de tecnologias de gravação e
amplificação, restringindo o acesso a esse conhecimento.
Como mudar o cenário?
Lílian Campesato destaca que uma das formas de combater o
desequilíbrio de gênero na música é expor o problema, a partir de pesquisas
como a AmplifyHer. Dessa visibilidade, seria possível promover mudanças com a
construção de políticas públicas específicas, desenvolvidas junto aos órgãos
competentes.
Para a pesquisadora, o próprio material EPK desenvolvido
pelo projeto pode ter papel crucial na disseminação do tema. “Os vídeos são
muito impactantes, podem ser usados em sala de aula, em mesas de debate… Com
eles conseguimos criar uma empatia, e as mulheres encontram ressonância e
identificação com aquelas questões. Pode contribuir para uma política feminista
de construção de conhecimento e de escuta”, analisa.
Além disso, tanto Lílian quanto Rogério Costa ressaltam a
importância de redes de apoio femininas e feministas, que permitem o
compartilhamento de experiências e o enfrentamento das exclusões.
Dias pensa que também é preciso envolver os homens no
debate. “Quanto mais cedo percebermos que todos nos beneficiamos com uma
indústria igualitária em termos de gênero, melhor. Um festival que tenha
artistas masculinos e femininos em igual número é relevante, é diferente, e
oferece mais que música – oferece um modelo de sociedade”, explica o
pesquisador. “Quando os curadores, diretores e promotores masculinos de
festivais perceberem isso, teremos meio caminho andado.”
Dar maior exposição às mulheres na música, sobretudo, é
fundamental. “Quantas compositoras são estudadas nas escolas de música, quantas
maestrinas dirigem orquestras de juventude, quantas contrabaixistas,
percussionistas, guitarristas ou saxofonistas são convidadas para dar master
classes? Esses pequenos passos vão fazer toda a diferença”, completa o
pesquisador português.
Fonte:Jornal da USP.
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