Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
A publicação de uma lista da Secretaria de Educação de
Rondônia com a determinação de recolhimento de 43 obras literárias destinadas
às escolas, nos põe em face de orientações de governo que pedem análise e
preocupação. Na objeção política ao livro e à leitura, no Brasil, que esse ato
representa, é a civilização que está sob ataque com a chegada ao poder da
mentalidade do desmonte do Estado brasileiro. Por aí, os eleitos de 2018 dão
indicações de que supõem que, ao elegê-los, o povo abriu mão de seus direitos e
conquistas como nação. Tudo vai se tornando revogável.
Não se trata de um evento de província, que nem por isso
seria menos grave. Trata-se de desdobramento da guerra interna à erudição,
declarada em diferentes atos de governo, como quando há semanas o próprio
presidente sentenciou que os livros didáticos têm palavras demais. No seu
governo, os livros serão, pois, instrumentos de minimização da cultura.
Governos não são eleitos para insultar educadores ou
menosprezar cientistas ou desfazer as conquistas culturais e civilizatórias de
um país. O governo atual não foi eleito para revogar o que somos no que de
melhor temos. Protege-se no silêncio cúmplice da maioria.
As evidências que surgem nos diferentes setores do poder
atual mostram que o regime de 1º de janeiro de 2019 funciona como um corpo
invisível. É regulado por contaminação e identidade de propósitos que reúne os
dispersos e frágeis na formação de um ser coletivo servil e cúmplice. Os
absurdos de Brasília infiltram-se nos poros de Porto Velho e do país inteiro.
O governo de Rondônia filiou-se ao mesmo espírito da
objeção presidencial antipedagógica, interpretou-a e ampliou-a. Entendeu que os
livros arrolados fossem vetados e afastados dos estudantes. No veto, foi usado
o pretexto de terem “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”. Dentre
os autores visados pela medida kafkiana, estão Machado de Assis, o maior
escritor brasileiro (fundador da Academia Brasileira de Letras), Mário de
Andrade (da Academia Paulista de Letras), um dos pais do nosso modernismo,
Euclides da Cunha (da ABL), Ferreira Gullar (da ABL), Rubem Fonseca, Carlos
Heitor Cony (da ABL), Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, Franz Kafka.
Interpelada, a Secretaria da Educação de Rondônia tentou
minimizar as providências não consumadas, mas vazadas. O fato, porém, de que
funcionários tenham se sentido autorizados a tomar a medida obscurantista é uma
indicação de que a intolerância política e o autoritarismo estão de prontidão.
À menor distração, podem invadir e ocupar nossos espaços de expressão e de
liberdade.
A secretaria argumentou que recebera denúncia de que um
dos autores censurados, Rubem Fonseca, usa palavrão em suas obras. Aqui, porém,
não raro, quem não fala, pensa em palavrão. Nestes dias, o presidente fez para
jornalistas o gesto impróprio e obsceno da banana, com o braço. Na linguagem
gestual dos moleques de rua esse é o palavrão dos palavrões. Os repetidores de
sinais do poder veem os palavrões dos outros, mas não os de sua própria cultura
de botequim.
Não é o caso, mas no Brasil e em Portugal palavrão tem a
função de ponto de exclamação falado. Seria falso e hipócrita negar importância
literária ao modo como nos expressamos na vida, quando o palavrão indica a
prioridade do que sentimos em relação ao que pensamos. Já os governantes estão
obrigados a pensar antes de falar e antes de fazer. Caso contrário, ficam aquém
da função que exercem.
A medida esboçada, em Rondônia, vai além e destaca em
rodapé a recomendação: “Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”.
Está aí a impressão digital do sujeito oculto da delação. Rubem Alves foi
educador respeitado, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas),
que lhe reconheceu a competência e os serviços à educação do povo brasileiro ao
lhe conceder o título de seu Professor Emérito.
Ele foi pastor presbiteriano em Lavras (MG), formado pelo
Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, filósofo, teólogo protestante
renomado. Fez doutorado no Seminário Teológico de Princeton, nos EUA, com uma
tese original e renovadora de grande repercussão, sobre Teologia da Esperança.
Poeta, era também autor de livros infantis.
Como aconteceu com outros membros de várias igrejas
protestantes e evangélicas no regime militar, Rubem Alves foi perseguido dentro
de sua própria igreja. Seu pensamento social e educacional teve a envergadura
de pensamento crítico e de questionamento da pastoral da subjugação e do
silêncio em relação às questões sociais e do trabalho. Pastoral que dominou
igrejas que sucumbiram à tentação da teologia da prosperidade, a teologia do
individualismo alienante.
Artigo
publicado no Jornal Valor Econômico
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