Gazeta da Torre
Por Maria
Luiza Viacava Sigoli e Flávia Alexandroni Dias, estudantes de Psicologia, e
Jaroslava Varella Valentova, professora do Instituto de Psicologia da USP
Ao pensar em processos de modificação da aparência,
imagino que o que venha primeiro à mente sejam os procedimentos de cirurgia
plástica ou o uso de maquiagem, isto é, comportamentos focados na estética que
fazem uso de tecnologias relativamente recentes. No entanto, a prática de mudar
a aparência em humanos não só engloba diversos outros comportamentos, como é
utilizada há mais de 100 mil anos.
Qualquer hábito que gere mudanças no corpo entram nesse
nicho, ou seja, a variação de roupas, os comportamentos de higiene, os cortes
de cabelo, o uso de perfumes, de acessórios, de cosméticos, de maquiagem, os
procedimentos cirúrgicos, o bronzeamento, as tatuagens, os piercings, a barba,
exercício físico e muitos outros. Neste sentido, a maioria de nós está
frequentemente modificando nossa aparência de diferentes maneiras. E como esta
tendência de modificar a aparência existe na maioria das populações conhecidas,
uma grande parte dos nossos ancestrais provavelmente já possuía esses costumes.
Algumas destas mudanças de aparência são reversíveis (como o uso de cosméticos)
enquanto outras são irreversíveis (como tatuagens ou procedimentos cirúrgicos).
Existem diversos fatores que explicam a persistência da
modificação de aparência em seres vivos, como no caso de larvas de insetos que
utilizam materiais variados como pedras ou lama para proteger os corpos moles.
Semelhantemente, roupas e vestimentas humanas servem para proteção contra a
temperatura, a incidência do sol, a salinidade, a umidade e contra possíveis
danos causados pela perturbação da pele. Em parte por causa de fatores
ecológicos, as populações humanas mudam as aparências de formas distintas em diferentes
lugares do planeta. Estas modificações também dependem do conhecimento
tecnológico e do acesso aos materiais locais. Por exemplo, o creme dental com
flúor, que estamos acostumados a utilizar em nossa sociedade, serve para
proteger, desinfetar e branquear os dentes, sendo este tipo de dentes um sinal
de saúde e atratividade em nossa cultura. Porém, em várias culturas antigas,
como no antigo Japão com o costume famoso Ohaguro, havia uma mistura para
sanitizar os dentes que deixava os dentes pretos. Esta mudança de aparência era
julgada como atraente e também como um marcador humano em contraste aos
demônios com dentes brancos.
As mesmas modificações de aparência podem ao mesmo tempo
servir para diferentes fins. Por exemplo, humanos modificam a aparência para
exibirem a qual grupo social pertencem e ao mesmo tempo a quais grupos sociais
não pertencem, como no caso de roupas distintas de jogadores e fãs de
diferentes times de futebol. Em alguns casos, a mudança da aparência pode
sinalizar status social, especificamente com o uso de materiais raros e
valiosos, como joias de metais caros, penas de aves dificilmente encontradas ou
até dentes e garras de predadores perigosos. Atingir uma aparência rara é, em
geral, algo visto positivamente, como, por exemplo, atingir um corpo magro em
sociedades com abundância de recursos. Estas mudanças, assim, sinalizam o
esforço que a pessoa fez para alcançar o material ou forma corporal custosa. As
alterações pelas cirurgias plásticas podem parecer como um meio de encurtar o
caminho duro para atingir essas modificações, o que – estudos mostraram – faz
com que as pessoas que se utilizam dessas cirurgias ou até de edições de
fotografias sejam percebidas como menos confiáveis por terceiros.
Outras modificações de aparência acontecem só em alguns
momentos ou períodos limitados, como forma de marcar um período especial que
geralmente muda o status social da pessoa. Por exemplo, casamentos ou
formaturas e, em outras culturas, puberdade ou circuncisão são rituais que
marcam uma mudança social e/ou biológica, e durante o processo se usam táticas
de mudança de aparência diferenciadas, às vezes reversíveis (ex. vestido de
noiva), às vezes duradouras (ex. aliança).
Como exibido, os fatores socioculturais são cruciais nas
mudanças de aparência. Um simples corte de cabelo, por exemplo, pode nos
comunicar sinais de status social, etnia, religião, orientação política,
gênero, status de relacionamento, entre outros. Essas mudanças não só refletem
a individualidade de cada um, por exibirem preferências específicas em relação
à aparência, como refletem as características culturais daquela sociedade. Por
exemplo, nas sociedades em que lábios volumosos são muito valorizados, será
mais frequente a realização de procedimentos de preenchimento labial ou uso de
técnicas de maquiagem que passem a impressão de lábios maiores.
Subjacente a toda variedade individual, cultural e
ecológica, com distintas técnicas locais para mudanças de aparência, temos os
fatores biológicos e evolutivos. Isso significa que o comportamento de alterar
a aparência ajudou nossos ancestrais, seja aumentando a sobrevivência (como o
que ocorre na camuflagem), seja estimulando a reprodução (indicação de status e
exibição sexual, por exemplo). Nesse caso, modificar a aparência é um mecanismo
adaptativo e evolutivamente antigo que existe em diversas espécies, aumentando
a sobrevivência e reprodução dos indivíduos, sendo, ao mesmo tempo, uma tática
que serve para fins sociais, como marcação do próprio grupo social.
Para exemplificar, podemos nos apoiar em um comportamento
muito frequente: a maquiagem. A maquiagem afeta a atratividade feminina ao
simular indicadores biológicos, como a idade, simetria ou contraste manipulando
a própria percepção e a do outro – estudos psicológicos demonstraram que
mulheres com maquiagem são avaliadas por terceiros como mais atraentes do que
mulheres sem maquiagem. Além disso, elas se autoavaliam como mais confiantes,
com uma maior autoestima e até mais saudáveis quando estão usando cosméticos.
Isso mostra aquilo que foi exibido anteriormente, que ao mesmo tempo que
vontades individuais e fatores socioculturais permeiam essas mudanças
estéticas, elas contribuem para a sobrevivência e/ou o sucesso reprodutivo do
indivíduo, o que faz com que esse comportamento tenha sido mantido ao longo da
evolução.
Portanto, com tudo que foi exposto acima, percebe-se a
influência das mudanças de aparência nas nossas sociedades atuais e na história
da humanidade e de outras espécies. Elas estão presentes há muitos e muitos
anos e isso se dá tanto pelo seu envolvimento com o sucesso social e
reprodutivo dos indivíduos, como por ser tão notável em expressar preferências
individuais e sinalizadores sociais de populações com culturas específicas.
Assim, conclui-se que os instrumentos de modificação da aparência possuem um significativo
papel individual, social e evolutivo e, exatamente, devido a sua importância e
frequência nas mais diversas populações e espécies, tal área deve ser muito
pesquisada, visto que estudos sobre esses comportamentos ainda são bem
escassos.
Fonte: Jornal da USP
--- divulgação ---
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