Gazeta da Torre
Promovido pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da
USP, seminário sobre a nova ferramenta digital e seus impactos na educação
acontece no dia 21, das 9 às 17 horas, com transmissão ao vivo pela internet
Não sabemos se aconteceu exatamente como visto em 2001:
Uma Odisseia no Espaço, mas é bem provável que o assombro pela tecnologia entre
os primatas tenha sido mesmo bem próximo do que as telas mostraram. Desde a
aurora da humanidade, um fascínio quase religioso e um pavor pela própria
existência da espécie se misturam a cada invenção ou avanço que promete mudar o
mundo como nós o conhecemos. Ficamos entre o deslumbramento de chegar até
Júpiter a bordo da Discovery One e o terror do abandono no espaço sideral
arquitetado pela malícia do supercomputador HAL 9000.
A tecnologia da vez que chega para solavancar as emoções
atende pelo nome pouco charmoso, mas coerente com o mundo de siglas em que
habitamos, de ChatGPT (do inglês Chat Generative Pre-trained Transformer, ou
transformador pré-treinado gerador de bate-papo). Em termos básicos, trata-se
de uma inteligência artificial (IA) capaz de oferecer respostas para os
usuários no formato texto, simulando um bate-papo. A partir de um banco de
dados vastíssimo, estimado em 45 terabytes, o ChatGPT calcula as respostas mais
prováveis para virtualmente qualquer pergunta permitida por sua programação, de
matemática e física quântica até questões existenciais e cultura erudita
(ilegalidades e similares ficam de fora). Em segundos, a IA consegue entregar
textos curtos, objetivos, coerentes e gramaticalmente corretos sobre
praticamente qualquer coisa, que assombram pela eficiência e abrangência.
Seja no campo do ensino ou da pesquisa, para professores
ou estudantes, as inovações que o ChatGPT pode trazer, mesmo que ainda não
muito claras, parecem inevitáveis. É por isso que o Instituto de Estudos
Avançados (IEA) da USP realizará no dia 21 de março, das 9 às 17 horas, o
evento ChatGPT: Potencial, Limites e Implicações para a Universidade. No
formato on-line – com transmissão ao vivo pelo site do IEA -, a programação
reunirá pesquisadores e especialistas da USP e de outras instituições nacionais
para discutir as transformações que a nova tecnologia poderá trazer não só para
o ensino superior, mas para todo o sistema educacional. A coordenação é do
professor Glauco Arbix, do Departamento de Sociologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Financiado pela Microsoft e desenvolvido pela empresa
OpenAI, sediada na Califórnia e criada por Elon Musk e Sam Altman, o ChatGPT
foi aberto para o público em novembro de 2022 e causou sensação. Até o início
de março, a plataforma registrava 120 milhões de usuários ativos e a alta
demanda motivou a companhia a lançar uma versão paga do serviço, com assinatura
de US$ 20 mensais. Desde então, o novo serviço vem alimentando tanto a euforia
dos devotos da tecnologia quanto os horrores apocalípticos de quem teme a
obsolescência da humanidade diante das máquinas. Entre os extremos, uma
catarata de dúvidas a respeito dos impactos que a novidade trará (na verdade,
já vem trazendo) em múltiplos setores da sociedade e a expectativa de uma
revolução na maneira como lidamos com o conhecimento.
“É surpreendente que um processo dessa natureza consiga
gerar artefatos capazes de traduzir textos, de responder perguntas, de gerar
poesias”, afirma Cozman. “O desempenho de modelos de linguagem como o GPT de
fato surpreendeu a própria comunidade acadêmica da área e gerou extraordinário
interesse na sociedade.”
Para o professor Glauco Arbix, todo esse buzz também se
justifica. A chegada do ChatGPT representa de fato um salto no desenvolvimento
da inteligência artificial. Sendo uma plataforma extremamente amigável, que se
comporta de um modo que parece muito inteligente e muito humano, a tecnologia
inspirou grandes expectativas em áreas como saúde, indústria, marketing e
educação.
“O impacto é generalizado, é um ponto de inflexão no ramo
da IA, em especial em uma área chamada de processamento de linguagem natural”,
explica Arbix. “Existem sistemas que estão evoluindo rapidamente, mas, de
repente, esse novo recurso surgiu e se mostrou superior. Ele impressiona e abre
novas possibilidades.”
Processamento de linguagem natural é um ramo das
pesquisas em IA que investiga maneiras de as máquinas compreenderem e
manipularem a linguagem humana. É o tipo de estudo que permite a existência de
atendentes virtuais no Whatsapp ou assistentes que simulam conversações, como a
Alexa. No caso do ChatGPT, seu sistema envolve ainda uma técnica chamada large
language model (LLM), que se baseia em machine learning e deep learning,
possibilitando o processamento de uma quantidade gigantesca de dados, vindos
sobretudo, mas não apenas, da internet. A novidade utiliza também uma
tecnologia chamada transformer – que corresponde ao T da sigla GPT –, um
sistema transformador que gera textos a partir de treinamento.
“Ele se comporta como se fosse um sistema humano, apesar
de não ser”, continua Arbix, que sublinha o potencial da nova tecnologia para a
área da educação. “’E como é muito simples de usar, significa, do ponto de
vista educacional, possibilidades imensas. É possível testar hipóteses, simular
cenários, ampliar a busca por moléculas em um sistema bioquímico e organizar
testes clínicos”, elenca. Dentre outras possibilidades já mapeadas e testadas
por pesquisadores e usuários, a ferramenta pode ainda resumir livros em
segundos, escrever breves dissertações e elaborar poemas ao gosto literário de
seu interlocutor.
“O ChatGPT gera uma situação nova para todos nós, ele
questiona nossos métodos de avaliação, de acompanhamento, de aula, de pedir
exercícios e passar lição de casa”, diz Arbix. Mas o professor não enxerga o
advento da tecnologia apenas no âmbito das preocupações e lembra também as
possibilidades positivas que ela pode trazer. “Há um possível risco dos métodos
tradicionais de avaliação, mas, ao mesmo tempo, um aluno que está com
dificuldades poderia ter uma evolução mais rápida, por exemplo. É uma situação
nova do ponto de vista educacional, que precisa ser bem tratada.”
Talvez o principal medo que tomou conta dos educadores
com a chegada do ChatGPT se refira à facilidade com que os estudantes podem
deixar trabalhos, deveres de casa, redações e provas nas mãos da máquina. Uma
lista de exercícios de matemática que representaria horas de dedicação ou
partes inteiras de um estudo de história ou geografia, por exemplo, poderiam
ser executadas em poucos minutos, com as perguntas certas. Com isso, os métodos
básicos de avaliação como os conhecemos simplesmente virariam fumaça. Foi essa
perspectiva de ruína educacional que levou o Departamento de Educação da cidade
de Nova York a proibir o uso da tecnologia nas escolas, em uma tentativa de
combater as “colas”.
Mas não foi só isso que trouxe preocupação. O plágio
acadêmico é outra sombra projetada pela ferramenta. Como ainda não existe
nenhum software que permita distinguir o que poderia ter sido escrito pela
máquina e por um ser humano, a autoria dos textos fica comprometida. E mais:
como o ChatGPT não cita as fontes das quais se utiliza para produzir suas
respostas, é impossível, pelo menos por enquanto, identificar as referências
usadas em seus textos. Apesar de a tecnologia ter tirado de algum lugar as
informações que oferece, seus autores permanecem desconhecidos, o que gera não
apenas questões problemáticas quanto a direitos autorais, mas permite também
que dados falsos sejam apresentados como verdadeiros, sem possibilidade de
checagem pelo próprio serviço.
Vale lembrar que, apesar de suas respostas serem
coerentes e gramaticalmente bem formuladas, isso não significa que estejam
sempre corretas. Vários testes feitos por usuários mostraram o serviço
inventando pessoas, biografias e instituições, falhando na identificação de
datas e sendo enganado por perguntas mais malandras. Não que isso invalide todo
o projeto, já que a própria OpenAI alerta os usuários para a possibilidade de
erros e a defasagem das informações. O que é preciso, conforme declara Arbix, é
não perder de vista as limitações da novidade para o uso na educação.
“Você pode imaginar que um sistema dessa dimensão acabe
gerando equívocos”, comenta. “O ChatGPT é um sistema que não tem compromisso
com a verdade, seu objetivo não é esse. Suas respostas podem ser verdadeiras,
mas também podem não ser. Porque ele faz conexões, usa estatística avançada
para prever as palavras. É uma potencialização dos sistemas de tradução. A
máquina não faz a mínima ideia do que está falando, ela não sabe, não pensa,
não sente. Ela escreve uma sucessão de palavras transformadas pelos algoritmos.
Está longe de ser um texto que tem as relações de um texto humano. O ChatGPT
faz um trabalho que impressiona, mas ele ainda é uma máquina.”
Para além do plágio e da cola, o que está no radar do
professor são as questões mais complexas que a chegada da tecnologia oferece.
Como saber se o ChatGPT poderia ser considerado coautor de um trabalho
acadêmico? Pode parecer coisa de ficção científica, mas esse é um tema que já
entrou em pauta no exterior. No início deste ano a conceituada revista Nature
rejeitou a possibilidade de coautoria, respondendo ao fato de outras
publicações terem recebido artigos nos quais a tecnologia já apareceu
creditada.
“Nós julgamos importante manter as relações de rigor que
sustentam as bases do ensino acadêmico e científico, o que significa exigir dos
alunos que digam em seus trabalhos e dos pesquisadores que registrem em suas
bibliografias as partes nas quais o ChatGPT foi usado. Isso é uma medida de garantia
da integridade”, adianta Arbix.
Para Virgilio Almeida, professor do Departamento de
Ciências da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que
também participará do evento promovido pelo IEA no dia 21, o seminário ocorre
na hora certa, em sintonia com discussões que tomam contam de uma série de
instituições de ensino superior ao redor do globo. “Se, por um lado, a
ferramenta de IA pode trazer preocupações referentes a avaliações de alunos,
ela pode também ser útil tanto no processo de aprendizado quanto de ensino. E
pode ser uma boa assistente nas tarefas mais administrativas de pesquisa”,
declara Almeida. “O importante é começar a definir regras e políticas para o
uso do ChatGPT no ambiente acadêmico.”
Naomar de Almeida Filho, titular da Cátedra Alfredo Bosi
de Educação Básica do IEA e professor do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) – outro participante do evento -, chama a
atenção para o impacto da chegada do ChatGPT na sala de aula tradicional. Para o
acadêmico, é importante questionar as transformações que a nova ferramenta pode
causar em modelos assentados no que chama de “processos anacrônicos de
avaliação”.
“Na minha opinião, essa tecnologia vai simplesmente
desafiar o velho modelo, obrigando a escola a enfrentar um dilema: assimilar ou
interditar. E nem sou otimista”, reflete Almeida Filho. “Todas as ferramentas
digitais para a metapresencialidade, equivocadamente chamada de EaD, e a
imersão pedagógica mediada por tecnologias já estão disponíveis há mais de uma
década. Nem por isso se verifica uma apropriação criativa mais generalizada no
campo da educação em geral, menos ainda na educação superior. Infelizmente,
acredito que nossos sistemas escolares adotarão restrições normativas e
procedimentos regulatórios que se tornarão obstáculos ao uso pleno, criativo e
crítico da IA na educação. Para que isso aconteça, será preciso desenvolver o
que chamo de ‘competência tecnológica crítica’”.
Com tantas incertezas, os debates do dia 21 têm a
pretensão de contribuir para a elaboração de um documento que ofereça
diretrizes para a USP lidar com o ChatGPT, explica Arbix. A ideia é apresentar
referências à comunidade acadêmica e padronizar a relação com a nova
tecnologia, evitando que seu uso ou proibição – que o professor considera um
equívoco – aconteça de forma individual.
“Nossa ideia é explicar os potenciais e limitações,
cumprir nosso papel de educador”, afirma o docente. “Nossa preocupação é fazer
a integração da tecnologia ao sistema de ensino, fazer a aprendizagem trabalhar
junto à tecnologia, como forma de aumentar nossas capacidades. É humano mais
máquina, não é o robô no lugar do trabalhador. É o robô trabalhando junto,
aumento do rigor, resolvendo problemas, melhorando a segurança.”
Conforme relata Arbix, a ansiedade com a chegada de uma
nova tecnologia não é novidade na história da educação e até mesmo o livro foi
alvo de ataques quando da popularização da imprensa. “Nos séculos 16 e 17
várias universidades condenaram o uso do livro, dizendo que ele colocava nas
mãos de pessoas não treinadas um conhecimento que poderia ser perigoso”, conta
o docente. “Lembre-se também das máquinas de calcular, do laptop, do
smartphone. Você não vai colocar o gênio de volta na lâmpada, ele já escapou.
Você não pode deletar a tecnologia. Temos que aproveitar a oportunidade para
repensar. Muita coisa pode mudar.”
Além de apresentar para o público o que é o ChatGPT, o
evento que acontece no dia 21, das 9 às 17 horas (a programação completa e a
lista de participantes podem ser vistas http://www.iea.usp.br/eventos/chatgpt-potencial-limites-implicacoes-universidade)
trará discussões sobre as possibilidades da nova ferramenta no ambiente
universitário e as perspectivas de seu uso na educação em geral. A transmissão,
ao vivo e sem necessidade de inscrição, será pelo site do IEA (http://www.iea.usp.br/aovivo).
Fonte:Jornal da USP
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