Gazeta da Torre
Pesquisa avaliou mais de 14 mil pessoas ao longo de oito
anos; participantes que ingeriam alimentos minimamente processados não
apresentaram depressão no período
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a
depressão afeta quase 6% da população brasileira, o que corresponde a cerca de
12 milhões de pessoas. No mundo, são mais de 300 milhões de diagnósticos. O
tratamento envolve terapia e medicação, mas o gerenciamento da doença também
passa pela busca de um estilo de vida mais saudável, priorizando atividade
física, alimentação e sono equilibrados. Diversos estudos associam estes
fatores a uma melhora global e duradoura.
No caso da relação entre hábitos alimentares e depressão,
porém, “muito do que se sabe vem de pesquisas conduzidas em países ricos”,
conta Naomi Ferreira, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP),
destacando a falta de dados que considerem a realidade dos países de baixa e
média renda. Pensando em diminuir essa lacuna, ela liderou um estudo com
brasileiros focado especialmente na relação entre o consumo de alimentos
ultraprocessados e a incidência e persistência da condição psíquica. A pesquisa
envolveu mais de 14 mil pessoas, com dados coletados ao longo de oito anos, e
revelou que uma dieta com alto teor destes produtos tem um impacto substancial
no risco de depressão persistente.
A pesquisa teve o apoio do Laboratório de Fisiopatologia
no Envelhecimento (Gerolab), que investiga o envelhecimento e as doenças
crônico-degenerativas associadas. Claudia Suemoto, professora de Geriatria da
FMUSP e diretora do Biobanco do Gerolab, já verificou anteriormente a associação
entre o consumo de ultraprocessados e o declínio cognitivo na terceira idade, e
foi responsável por supervisionar o trabalho recente. “Os ultraprocessados têm
sido estudados em relação a vários desfechos de saúde”, explica Naomi. O artigo
também contou com a participação de profissionais do Instituto de Psiquiatria
(IPq) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
“As pesquisadoras da FSP trabalharam com o Carlos
Monteiro, cientista brasileiro que descreveu pela primeira vez a classificação
de ultraprocessados”, continua Naomi. Essa classificação, utilizada amplamente
em escala mundial, divide os alimentos em quatro grupos: in natura ou
minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos
processados; e ultraprocessados (que contêm aditivos como corantes e
emulsificantes). No contexto da pesquisa, os grupos 1 e 2 foram unidos, pois os
ingredientes são comumente usados na preparação e tempero de alimentos
naturais.
Ao longo do estudo, houve três períodos de avaliação
(ondas): 2008 a 2010, 2012 a 2014 e 2017 a 2019. Dentre os 13.870 participantes
anteriormente livres de depressão, o grupo que consumia alimentos não
processados ou minimamente processados não apresentou depressão em nenhuma das
ondas avaliadas.
Publicada no Journal of Academy of Nutrition and
Dietetics, a investigação foi realizada a partir de dados do Estudo
Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), que acompanha a saúde de
servidores públicos de seis capitais entre 35 e 74 anos. O Elsa acontece em
diversos centros no País, e tem como objetivo avaliar o risco na população
brasileira para doenças crônicas, em especial, as cardiovasculares e o
diabetes. É considerado um levantamento fundamental para a adequação de
políticas públicas de saúde às necessidades nacionais. Um dos enfoques do
estudo é a dieta da população, associada às condição de vida, diferenças
sociais, relação com o trabalho e gênero.
“O Elsa é um marco, porque é um estudo epidemiológico com
um acompanhamento longo, e envolve uma população de quase 15 mil pessoas”,
destaca Naomi. “Esses dados são muito importantes para entender um fenômeno que
já é analisado em outros contextos socioculturais, mas que tem suas
peculiaridades num País como o nosso, composto de desigualdades e adversidades
do ponto de vista socioeconômico. ”
Perigo dos ultraprocessados
Informações consolidadas na ciência confirmam que uma
alimentação primordialmente in natura auxilia a suprir as necessidades do corpo
humano, reduzir a hipertensão e atrasar a neurodegeneração em pessoas de idade
avançada. A chamada “dieta mediterrânea” fornece alto teor de antioxidantes e
baixas quantidades de gorduras saturadas e açúcares adicionados:
consequentemente, o estresse oxidativo é reduzido, e os níveis inflamatórios
cerebrais diminuem. “A dieta mediterrânea é caracterizada por um consumo
importante de frutas, legumes e verduras, e um consumo baixo de carne vermelha”,
comenta Naomi Ferreira.
Em contrapartida, o consumo diário de ultraprocessados
está relacionado ao aumento de processos inflamatórios, tanto do ponto de vista
sistêmico quanto de neuroinflamação, propiciando perfis desregulados de
neurotransmissores cerebrais. “A dieta ocidental que a população mundial tem
aderido, muito baseada em fast foods e comidas prontas, tem um alto teor de
calorias vazias — ou seja, você ingere a caloria, mas o corpo continua
carecendo de nutrientes fundamentais”, aponta.
“A constituição do alimento ultraprocessado pode causar
desequilíbrios na microbiota intestinal”, continua a pesquisadora. O eixo
intestino-cérebro, que liga o sistema nervoso entérico ao central, participa da
relação: vitaminas e minerais são cruciais para o bom funcionamento do sistema
nervoso, e sua ausência aumenta o risco de diversas doenças, como demência e
Alzheimer. “A intensa deposição das proteínas em um ambiente com mais
marcadores inflamatórios predispõe o indivíduo a apresentar sintomas
neurodegenerativos”, diz.
Métodos de investigação
Para quantificar a incidência da depressão nos pacientes,
o principal método utilizado foi o Clinical Interview Schedule-Revised (CIS-R),
uma entrevista validada para sintomas psiquiátricos. O CSI-R se baseia em cinco
aspectos: fadiga, concentração ou esquecimento, distúrbios do sono, depressão e
ideias depressivas.
Os dados coletados foram comparados com as respostas de
um questionário de frequência alimentar, que avalia padrões alimentares no
período de um ano com base em 114 itens. Por fim, foi realizada a análise de
Cox, que informa o risco do indivíduo desenvolver a depressão ou não, de acordo
com seus hábitos. “Aqueles que consumiam mais ultraprocessados no início do
estudo apresentaram um risco 30% maior de desenvolver o primeiro episódio de depressão”,
realça a Dra. Naomi.
O maior diferencial da pesquisa, entretanto, foi o
enfoque dado à persistência da doença ao longo dos oito anos. A análise de
Cluster, um software estatístico, classificou os participantes do estudo em
três grupos: nenhum diagnóstico de depressão, diagnóstico em somente uma das
avaliações, e diagnóstico em duas ou mais avaliações. Juntamente a essa
estratégia, uma análise de regressão multinomial avaliou o consumo de
ultraprocessados de 1 a 4 e associou ambos os resultados.
“O resultado da depressão persistente foi inesperado
porque não se tinha muitos estudos sobre isso, sabíamos muito pouco a
respeito”, afirma a cientista. Os indivíduos que registraram maior consumo de
ultraprocessados no início do estudo tiveram mais diagnósticos nas avaliações
subsequentes: em relação ao grupo 1, o risco de depressão persistente dos
integrantes do grupo 2 foi 30% maior; o risco do grupo 3 foi 39% maior, e com
relação ao grupo 4, o risco foi 58% maior.
Condição e estilo de vida
O estudo também levou em consideração variáveis
associadas para o desenvolvimento da depressão, como aspectos sociodemográficos
e dados clínicos.
Portanto, a pesquisa também questionou os participantes
sobre seus hábitos, como consumo excessivo de álcool, tabagismo e frequência de
atividade física.
Os resultados revelaram associações a múltiplos fatores:
jovens, mulheres, negros ou pardos, fumantes, pessoas de baixa renda, pessoas
com maior ingestão total de energia diária e maior Índice de Massa Corporal
(IMC) eram mais propensos a receber o diagnóstico na primeira avaliação. Por
outro lado, participantes com um diploma universitário, casados e fisicamente
ativos eram menos propensos a sofrer com a depressão.
A cientista também ressalta que o alto consumo de
ultraprocessados leva ao sobrepeso e à obesidade, e essas condições aumentam o
risco cognitivo em geral. Para ela, um grande desafio é conscientizar a
população da importância de refletir sobre seus hábitos alimentares.
“Se só pensarmos na gratificação a curto prazo, podemos
sacrificar o longo prazo com um transtorno mental e com diversas outras doenças
a que os ultraprocessados estão associados.”
Pelo lado positivo, a análise estatística da substituição
de alimentos demonstra que uma pequena diferença já pode surtir efeitos
relevantes: substituindo 5% do consumo de ultraprocessados pela mesma
quantidade calórica em alimentos minimamente processados, o risco de um
indivíduo desenvolver depressão ao longo dos anos diminui em 6%. Ao substituir
20% desses produtos, é possível reduzir a probabilidade em 22%.
Solucionar este problema em nível social, entretanto, é
uma tarefa complexa, visto que a diversidade socioeconômica da população
brasileira interfere diretamente no acesso à alimentação de qualidade. “Os
ultraprocessados são produzidos de forma a aguentar por muito mais tempo na
prateleira, então são financeiramente mais acessíveis do que o alimento in
natura, e por isso pessoas de renda mais baixa tendem a consumi-los”, finaliza
a pesquisadora.
Fonte:Jornal
da USP
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