Gazeta da Torre
Estudos de neuroimagem sobre os possíveis efeitos da
ingestão de álcool no cérebro são pouco conclusivos, e têm encontrado
resultados contraditórios. Agora, um trabalho liderado por brasileiros traz uma
evidência mais forte da relação entre consumo de bebida, lesões cerebrais e
piora cognitiva.
A pesquisa não comprova que o álcool causa esses
problemas – relações de causalidade são complexas e demoradas de estabelecer.
Mas a associação do álcool e danos que o estudo verificou é mais robusta porque
as análises foram feitas diretamente em tecidos cerebrais após a morte. Além
disso, foram utilizados cérebros de brasileiros, e são raros os estudos feitos
em população de países de média e baixa renda – aquelas que, na prática, são as
mais atingidas pela demência.
Os resultados apontaram que tanto o consumo moderado
quanto o intenso (oito ou mais doses por semana), mesmo que prévio (na época da
morte a pessoa já era ex-alcoolista), foram associados à arteriolosclerose
hialina e aos emaranhados neurofibrilares de tau.
A arteriosclerose hialina é uma condição de endurecimento
de vasos sanguíneos que dificulta a irrigação cerebral, pode danificar o
cérebro e está ligada ao desenvolvimento de demência vascular. Já os
emaranhados neurofibrilares são estruturas proteicas características da doença
de Alzheimer.
Além disso, o consumo prévio intenso de álcool
(ex-alcoolistas) foi associado à redução da massa cerebral e das capacidades
cognitivas. Para não gerar distorções, o cálculo levou em conta a razão entre o
peso do cérebro e a altura da pessoa. E as capacidades cognitivas foram
aferidas por meio de um questionário feito com familiares ou pessoas próximas,
capaz de indicar se o paciente apresentava declínio cognitivo e sinais de
demência.
O estudo foi publicado no início do mês na Neurology,
periódico da Academia Americana de Neurologia, tendo como primeiro autor
Alberto Justo, que realizou pós-doutorado com supervisão de Claudia Suemoto na
Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
A declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), de
2023, de que nenhum nível de consumo de álcool é isento de prejuízos, se
referia especialmente ao fato do hábito aumentar o risco de vários tipos de
câncer, e fortaleceu a tendência de se desmistificar a ideia dos “níveis
seguros” – ou até benéficos em algum aspecto – da ingestão de álcool. O estudo
da USP chega para fortalecer uma outra frente que também vem sendo investigada:
os possíveis efeitos da bebida na saúde cerebral.
“O grande destaque do estudo, a meu ver, é que os marcadores, principalmente a arterioesclerose hialina, já estão presentes mesmo em quem consome álcool moderadamente”, diz Alberto Justo. Outro destaque, segundo ele, é que o declínio cognitivo foi verificado em todos os grupos de bebedores, tanto os que já tinham cessado antes da morte, quanto nos que ainda bebiam.
A pesquisa
As amostras analisadas vieram do Biobanco para Estudos do
Envelhecimento da USP. Este banco coleta cérebros de pessoas que foram
autopsiadas no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SOV), da USP, mas
não de indivíduos que morreram de causas traumáticas, porque esses casos são
tratados pelo Instituto Médico Legal (IML).
Foram incluídas 1.781 pessoas com mais de 50 anos (idade
média de 75 anos) no momento da morte, cujos parentes mais próximos tiveram
contato no mínimo semanal com o falecido durante os seis meses anteriores ao
óbito.
Todas foram submetidas a autópsias cerebrais em busca de
sinais de lesão, incluindo lesões associadas à demência vascular e doença de
Alzheimer. Para garantir a qualidade, os participantes foram excluídos se os
dados clínicos fossem inconsistentes ou se o tecido cerebral fosse incompatível
com as análises neuropatológicas.
Os pesquisadores também verificaram o peso do cérebro e a
altura de cada pessoa. Os familiares responderam a perguntas sobre o consumo de
álcool dos participantes e outras questões que permitem avaliar se há perda
cognitiva ou indicativos de demência – presentes numa escala validada
denominada Clinical Dementia Rating (CDR).
onsumidores e ex-consumidores intensos de álcool
(ex-alcoolistas) tinham maior risco de apresentar emaranhados tau, o
biomarcador associado à doença de Alzheimer, com chances 41% maiores. Os
ex-alcoolistas também tinham uma menor proporção de massa cerebral em
comparação com a massa corporal, e capacidades cognitivas prejudicadas.
Não foi encontrada ligação entre o consumo moderado ou
intenso três meses antes do óbito e a razão de massa cerebral ou habilidades
cognitivas, mas apenas em ex-alcoolistas (consumo prévio intenso). Este achado
parece contraditório, mas pode ter a ver com um viés da amostra de pacientes do
estudo. Os participantes que bebiam muito no momento do óbito ainda não tinham
desenvolvido outras complicações sérias associadas ao álcool que levariam à
cessação do consumo. Um exemplo de complicação que poderia levar à interrupção
do consumo é a cirrose hepática.
Reserva cognitiva
A reserva cognitiva se refere principalmente ao tempo de
educação formal que uma pessoa teve. “Aqui na Alemanha [onde mora atualmente],
por exemplo, dificilmente uma pessoa fala menos de dois ou três idiomas, ou é
mais velha e não fez faculdade. Essa reserva, de uma certa forma, reforça as
sinapses, as conexões cerebrais. Muitas vezes, mesmo com a presença de vários
biomarcadores de demência, a pessoa não vai apresentar a doença clinicamente”,
explica o pesquisador.
Estima-se que, nos próximos anos, dois terços da
população com demência vão estar em países de baixa e média renda, informação
importante no contexto do estudo sobre o álcool. Enquanto os estudos da América
do Norte e Europa geralmente incluem participantes com 13 ou 14 anos de estudo,
no Brasil, a média é de 4,8 anos de educação.
“Essas pessoas que a gente estudou fazem parte de uma
população miscigenada e com baixa educação, que é uma coisa muito rara de
encontrar em estudos do tipo. No biobanco temos amostras de pacientes que,
epidemiologicamente, traduzem melhor a realidade de quem é mais atingido pela
demência no Brasil”, conclui o cientista.
Fonte:Jornal da USP
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