Gazeta da Torre
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Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor
titular da USP e consultor político
Fosse escolher a lenda mitológica que mais se assemelha à
sua vida, provavelmente o povo brasileiro colocaria a história do castigo de
Sísifo entre as preferidas. Sísifo, que viveu vida solerte, conseguiu livrar-se
da morte por duas vezes, sempre blefando. Rei de Corinto, não cumpria a palavra
empenhada, até que Tânatos veio buscá-lo em definitivo para levá-lo ao Hades.
Como castigo, os deuses o condenaram impiedosamente a rolar montanha acima um
grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desaba montanha abaixo.
O povo brasileiro se sente no estado de um eterno
recomeço. Quando acha que as coisas estão se normalizando, o desastre aparece.
Por isso, o homem comum se vê numa ilha ameaçada por pequenas e grandes
catástrofes. Escândalos explodem aqui e ali, devastando o tecido institucional.
A corrupção continua a aumentar seu Produto Interno Bruto. E até escancara seus
métodos. O governo promete realizar a reforma tributária, que claudica no
Congresso. Impostos e tributos diminuirão? Promessa para boi dormir. Decepciona
a performance do nosso aluno, principalmente no terreno da matemática. Lula
pede menos advogados e mais formandos de ciências exatas. Dá condições para
isso?
Os jovens se afastam da política, área da qual sempre
tomaram distância. Analisemos o caso dos infantes e adolescentes. Conectam-se
horas e horas por meio de seus celulares. Comunicam-se com quem? Com seus egos.
Desenvolvendo a linguagem? Não. Apenas consolidam o que tenho chamado de
linguagem tatibitate. Comunicação com um rapazinho de 13 anos.
— Como está você?
— Bem.
— Conte-me como foi sua aula de história?
— Legal.
— O professor é bom, o que ele ensinou?
— Joia.
— Conte-me como foi o seu dia ontem? Lembra-se?
— Legal.
A linguagem patinante se encerra com um abrupto tchau,
bj.
Para onde esta geração do “oi” está nos levando? Para os
campos das balbuciações, o início dos tempos, a aurora da linguagem falada.
Quem leu um livro neste ano? Quantas páginas tinha? Cinco, sete, dez páginas?
Estamos vivenciando tempos de socialização do universo de conteúdo. O Google e
outras ferramentas de busca ajudam a Humanidade a encontrar respostas para as
questões mais complexas. A famosa (mesmo com pouco tempo de vida) inteligência
artificial tem respostas rapidíssimas para os mais encrencados problemas. Mas
ainda está na fase de amadurecimento.
Já contei uma vez. Perguntando sobre minha pessoa, meus
livros e outros escritos, deu uma resposta com dados parcialmente corretos,
corrigidos com calorosas desculpas ante discordâncias. O pior erro foi me jogar
nas Filipinas, a terra do Ferdinando Marcos, o ditador cuja esposa, Imelda,
tinha uma coleção de milhares de sapatos. Onde a turma do “oi, tudo bem” nos
levará? E a IA vai ajudar esta geração a sair de seu cantinho nas redes? A
procurar sair do turbilhão de “ais, ois, bye, legal, tudo bem, sim, não”?
Onde está o fervor cívico? O amor à pátria? O sentimento
de nação?
Alexis de Tocqueville, há quase 200 anos, em Democracia
na América assim descrevia a alma norte-americana: “Existe um amor à pátria que
tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e
indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde o homem nasceu.
Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o
respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam
estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.
Que amor à pátria pode existir em espíritos tomados pelo
pavor, pela violência de tiros a esmo, pelas balas perdidas, pelos assaltos que
infestam as ruas centrais e periféricas, pela bandidagem que monta seus
escritórios no interior dos cárceres? Que espírito público pode vingar no seio
das massas quando as elites dividem espaços de poder, de forma egocêntrica e
ignominiosa, que volta a colocar na ordem do dia o lamento de Simon Bolívar, o
timoneiro, quando, um dia, retratou a sofrida América Latina: “Não há boa fé na
América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis, as
constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é
anarquia e a vida um tormento. A única coisa que se pode fazer na América é
emigrar”.
Emigrar foi a opção de milhares de brasileiros em tempos
não muito remotos. Hoje, muitos retornam à casa sob o patrocínio de uma
aparente estabilidade econômica, grifada com uma angustiante interrogação.
Emigrar também foi uma opção de milhões de brasileiros, que, nas últimas
décadas, saíram do campo para as cidades, à procura de emprego. Estabilidade
que traga a segurança do emprego e o conforto de um salário razoável, capaz de
prover as necessidades mínimas. Estabilidade que permita a todos divisar, com
nitidez, a linha do horizonte. O consumidor coloca em seu balcão de prioridades
a necessidade de saber quanto dinheiro terá no início e no final de cada mês.
Tal sentimento eleva a taxa de nacionalidade. Viver sob a ilusão de ganhos
inflacionários já não mais faz a cabeça do poupador. Ele quer mais é se sentir
integrante do selecionado grupo de cidadãos do Primeiro Mundo que tem na moeda
um fator de equilíbrio social.
Não basta, contudo, a estabilidade monetária. Os
brasileiros sonham em recuperar outros sinais antigos de bem-estar. A chama
telúrica que se apaga com o violento sopro da inchação das metrópoles e o
crescimento desordenado dos bairros volta a se acender no coração de segmentos
de todas as classes sociais. A verdade é que o fator econômico, no País,
canibalizou o fator político. Hoje, a política procura resgatar seu
protagonismo, arreganhando a bocarra para agarrar nacos do orçamento nacional.
E as massas, como se comportam? Observando. Refugiando-se
nas 800 mil organizações não governamentais, que passam a abrigar suas
demandas. Hora de arregalar os olhos.
Fonte: Jornal da USP
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